São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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JANIO DE FREITAS

A hora do vencedor

Lula foi atingido por uma caprichada maldade, não faz diferença se voluntária ou não. O pacto que o argentino Néstor Kirchner propôs ao Brasil e à Venezuela, para uma frente de negociação em bloco com o FMI, só podia ter de Lula a resposta positiva, sob pena de que ele desmoralizasse sozinho toda a sua discurseira internacional contra as dívidas, as relações injustas impostas pelos países ricos e a opressão do sistema financeiro mundial. Mas a resposta positiva sujeita Lula a convocações e cobranças que não pode atender, e fica ele outra vez sob risco de desmoralizar tudo o que diz mundo afora. É difícil admitir que Kirchner não tenha elaborado uma vingança deliciosa. E justificada.
A vitória espetacular da Argentina, conquistando o desconto de 76% da sua dívida em títulos, é um fato de importância imensurável não só para o próprio país. O povo argentino voltará a contar com mais de US$ 80 bilhões (sem considerar-se o acúmulo dos juros futuros a perder de vista) que se destinavam a ser lucro fácil dos especuladores financeiros, da própria Argentina e internacionais. A especulação já havia ganho muito com os negócios em títulos argentinos. E há indícios convincentes de que grande parte dos credores externos desses títulos, senão mesmo a maioria deles, é composta por argentinos que contrabandearam dinheiro para o exterior.
Mas, para fora da Argentina, o seu feito não é menor. Provou que há caminhos, sim, sem sujeição ao FMI, ao pagamento de juros que mais empobrecem e sem as políticas contrárias aos investimentos necessitados, tantos deles desesperadamente, pelo país. A Argentina provou a falsidade da afirmação, feita por Lula como justificativa do seu governo, de que a "herança maldita" da situação brasileira não permitia alternativa responsável à atual política econômica. Em comparação com a Argentina recebida por Kirchner, o Brasil recebido por Lula era um paraíso, felizmente com mais 4 milhões de evas que de adãos.
Kirchner, Hugo Chávez e Lula fizeram um aperto tríplice de mão, como que firmando o pacto para os fotógrafos. Mas Lula tem alguns pactos anteriores, que têm prevalecido sobre tudo: sua palavra, o PT, as necessidades da infra-estrutura nacional, a urgências sociais, e por aí. São acordos feitos aqui e fora, que explicam desde a política econômica e o atrelamento ao FMI, até pormenores como a ocupação da presidência do Banco Central por um ex-banqueiro dos Estados Unidos e deputado eleito pelo PSDB, duas condições que Lula e o PT sempre abominaram. Nem é certo que Lula ou algum de seus auxiliares conhecesse Henrique Meirelles antes de tê-lo como seu futuro presidente do Banco Central e detentor da carta-branca que se conhece.
No momento crucial da decisão de Kirchner, entre aceitar o socorro estrangulante proposto pelo FMI (à maneira do aceito por Fernando Henrique e por Lula) ou optar, como fez, pelo direito soberano da Argentina de tentar uma solução própria, o governo brasileiro adotou uma atitude repulsiva. Antonio Palocci, como já narrado aqui, em telefonemas ao ministro da Economia argentino, Roberto Lavagna, deixou claro que a Argentina não contaria sequer com a compreensão, quanto mais com o apoio do Brasil. O governo Lula ficara com o FMI e procurava induzir a aceitação do acordo.
O pacto agora proposto por Kirchner é uma risonha vingança. Mas é também, dada a vitória grandiosa da Argentina, um prenúncio de mudanças nas relações latino-americanas em que o governo Lula assumia posição preponderante. Kirchner tem o que dizer e seus êxitos, entre os quais o crescimento lá que Lula prometera aqui, o autorizam a fazê-lo.
Até o FMI teve que aplaudir, na quinta-feira, a conclusão bem-sucedida da fórmula corajosa e inteligente de redução da dívida argentina. O governo Lula recolheu-se, silencioso.


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