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JANIO DE FREITAS
A hora do vencedor
Lula foi atingido por uma
caprichada maldade, não faz
diferença se voluntária ou não. O
pacto que o argentino Néstor
Kirchner propôs ao Brasil e à Venezuela, para uma frente de negociação em bloco com o FMI, só
podia ter de Lula a resposta positiva, sob pena de que ele desmoralizasse sozinho toda a sua discurseira internacional contra as dívidas, as relações injustas impostas
pelos países ricos e a opressão do
sistema financeiro mundial. Mas
a resposta positiva sujeita Lula a
convocações e cobranças que não
pode atender, e fica ele outra vez
sob risco de desmoralizar tudo o
que diz mundo afora. É difícil admitir que Kirchner não tenha elaborado uma vingança deliciosa. E
justificada.
A vitória espetacular da Argentina, conquistando o desconto de
76% da sua dívida em títulos, é
um fato de importância imensurável não só para o próprio país.
O povo argentino voltará a contar
com mais de US$ 80 bilhões (sem
considerar-se o acúmulo dos juros
futuros a perder de vista) que se
destinavam a ser lucro fácil dos
especuladores financeiros, da
própria Argentina e internacionais. A especulação já havia ganho muito com os negócios em títulos argentinos. E há indícios
convincentes de que grande parte
dos credores externos desses títulos, senão mesmo a maioria deles,
é composta por argentinos que
contrabandearam dinheiro para
o exterior.
Mas, para fora da Argentina, o
seu feito não é menor. Provou que
há caminhos, sim, sem sujeição
ao FMI, ao pagamento de juros
que mais empobrecem e sem as
políticas contrárias aos investimentos necessitados, tantos deles
desesperadamente, pelo país. A
Argentina provou a falsidade da
afirmação, feita por Lula como
justificativa do seu governo, de
que a "herança maldita" da situação brasileira não permitia alternativa responsável à atual política econômica. Em comparação
com a Argentina recebida por
Kirchner, o Brasil recebido por
Lula era um paraíso, felizmente
com mais 4 milhões de evas que
de adãos.
Kirchner, Hugo Chávez e Lula
fizeram um aperto tríplice de
mão, como que firmando o pacto
para os fotógrafos. Mas Lula tem
alguns pactos anteriores, que têm
prevalecido sobre tudo: sua palavra, o PT, as necessidades da infra-estrutura nacional, a urgências sociais, e por aí. São acordos
feitos aqui e fora, que explicam
desde a política econômica e o
atrelamento ao FMI, até pormenores como a ocupação da presidência do Banco Central por um
ex-banqueiro dos Estados Unidos
e deputado eleito pelo PSDB, duas
condições que Lula e o PT sempre
abominaram. Nem é certo que
Lula ou algum de seus auxiliares
conhecesse Henrique Meirelles
antes de tê-lo como seu futuro
presidente do Banco Central e detentor da carta-branca que se conhece.
No momento crucial da decisão
de Kirchner, entre aceitar o socorro estrangulante proposto pelo
FMI (à maneira do aceito por
Fernando Henrique e por Lula)
ou optar, como fez, pelo direito
soberano da Argentina de tentar
uma solução própria, o governo
brasileiro adotou uma atitude repulsiva. Antonio Palocci, como já
narrado aqui, em telefonemas ao
ministro da Economia argentino,
Roberto Lavagna, deixou claro
que a Argentina não contaria sequer com a compreensão, quanto
mais com o apoio do Brasil. O governo Lula ficara com o FMI e
procurava induzir a aceitação do
acordo.
O pacto agora proposto por
Kirchner é uma risonha vingança. Mas é também, dada a vitória
grandiosa da Argentina, um prenúncio de mudanças nas relações
latino-americanas em que o governo Lula assumia posição preponderante. Kirchner tem o que
dizer e seus êxitos, entre os quais o
crescimento lá que Lula prometera aqui, o autorizam a fazê-lo.
Até o FMI teve que aplaudir, na
quinta-feira, a conclusão bem-sucedida da fórmula corajosa e inteligente de redução da dívida argentina. O governo Lula recolheu-se, silencioso.
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