São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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Agronegócio levou problemas, dizem antropólogos

RAFAEL CARIELLO
DA SUCURSAL DO RIO

A concentração de um grande número de índios guarani em pequenas extensões de terra nas reservas indígenas do sul de Mato Grosso do Sul, resultado do avanço do agronegócio no Estado, criou uma penúria que não existia entre eles e que é responsável hoje pelos problemas de desnutrição e de mortalidade infantil que enfrentam.
Antropólogos que trabalham com os caiuás em Dourados (MS) afirmam que a pobreza e a desnutrição são conseqüências de uma crise na produção agrícola desses índios agravada por outra crise, de ordem cultural.
O professor da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) Rubem Thomaz de Almeida afirma que os caiuá sempre ocuparam de maneira esparsa grandes territórios, organizados em famílias extensas de três ou quatro gerações associadas a outras famílias aliadas, sem se aglutinarem em "aldeias".
Fábio Mura, doutorando do Museu Nacional (centro de referência internacional em antropologia, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro) e professor da UEMS, explica que, nas reservas em que foram confinados depois do avanço da criação de gado e do plantio da soja, famílias rivais foram obrigadas a viver juntas. Conflitos entre essas famílias (provocados por acusações de feitiçaria, por exemplo), antes resolvidos pelo deslocamento de uma delas para outras regiões, foram potencializados.
Além disso, o "capitão" da reserva, "intermediário entre o Estado e a população indígena, cargo que é imposto pelo Estado", diz Mura, pertence sempre a um certo grupo de famílias e tende a privilegiá-las na divisão de recursos recebidos dos governos.
Entre os índios guaranis (grupo que inclui os caiuás), ele diz, não há a figura da comunidade, da coisa pública. É um erro, portanto, tratar o capitão como uma espécie de "prefeito" da reserva. Daí que o Fome Zero Indígena, ele diz, seja "um desperdício enorme de dinheiro". "Você vai ter algumas famílias opulentas, e outras passam a viver na penúria." São essas últimas que começam a enfrentar mais gravemente os problemas de desnutrição e mortalidade, para além do problema geral de falta de terras para cultivo.
Mura calcula que uma comunidade estável de índios caiuá, com suas famílias extensas associadas, comporte de 300 a 350 índios e necessite de cerca de 10 mil hectares para viver sem desequilíbrios. Em Dourados (a 218 km de Campo Grande), onde seis crianças morreram por desnutrição neste ano, vivem cerca de 11 mil índios em 3.540 hectares. Seguindo os cálculos de Mura, seriam necessários mais de 300 mil hectares de terra para toda essa população.
Além disso, não é qualquer terra que importa para os caiuás. Eles acreditam ser seu dever cuidar de um território específico, de onde são originários. Separados dessa terra e impossibilitados de cumprir o seu dever, vêem o mundo em desordem. Por isso, muitos deles dizem, afirma Mura, que o mundo está próximo de acabar.
A conseqüência dessa desordem do mundo é uma desordem social. Os índios atribuem os problemas de violência familiar, subnutrição e alcoolismo a esse desequilíbrio originário.
Dois preconceitos sobre os índios -as supostas pouca afeição ao trabalho e tendência ao alcoolismo- também são atacados pelo antropólogo e relacionados a essa desordem "fundiária". No caso do consumo de álcool, a desorganização cultural teria modificado um uso tradicional de bebida fermentada (cauim) durante rituais indígenas.
Quanto ao trabalho, Mura diz que, tradicionalmente, os índios trabalhavam duas ou três horas por dia nas suas culturas de subsistência, o que era suficiente para suas necessidades, dedicando o restante do tempo à socialização. "Com as condições ecológicas atuais, com três horas você não consegue produzir o necessário para consumo", diz Mura. Ou seja, não são os índios que trabalham pouco, mas as condições de produção é que mudaram.


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