São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2007

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Bispo criticava o capitalismo e o comunismo

ALDO PEREIRA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Os cristãos devem manter posição eqüidistante do capitalismo e do comunismo. (...) Nós não queremos nada com o comunismo porque ele é ateu, materialista e supressor dos direitos humanos; e, pelas mesmas três razões, somos contra o capitalismo."
Quando fez essa declaração ao jornal "O Estado de S. Paulo", em maio de 1977, d. José Ivo Lorscheiter era secretário-geral da influente CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). "A Igreja não é um partido político", insistia.
Achava discriminatória a idéia de um partido explicitamente cristão. Mas não se omitia no protesto contra excessos repressivos que o regime militar impunha à esquerda na década de 1970.
Quando iniciou a carreira clerical, d. Ivo não cogitava tão atribulada missão. Os avós tinham sido imigrantes alemães que, na segunda metade do século 19, vieram expropriar de obstinados guaranis o fértil vale do rio Caí. Dom Ivo tinha apenas 12 anos quando o seu pai decidiu que, naqueles cafundós, só a cruz podia ser alternativa à enxada.
Dez anos de diligente estudo de filosofia em seminário abriram ao jovem José Ivo a oportunidade de especializar-se em teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Voltou de lá doutorado, ordenado e despojado do casulo provinciano. No mesmo ano de sua ordenação, 1952, d. Hélder Câmara fundava a CNBB.
Após dez anos de magistério, sagraram-no bispo auxiliar de Porto Alegre. Dos 44 aos 60 anos, a partir de 1971, serviu a CNBB, primeiro no cargo de secretário-geral (duas gestões sucessivas de quatro anos), depois como presidente (idem).
Na maior parte desses 16 anos, d. Ivo se dividiu entre a diocese de Santa Maria (que assumiu em 1974), a CNBB e outras responsabilidades. Entre estas, cuidou da organização da visita do papa João Paulo 2º ao Brasil em 1980.
Mas nada lhe ocupava a mente e o tempo como a política. Aliou a CNBB ao variegado marxismo da época para pleitear o restabelecimento de liberdades suprimidas pelo regime militar. Mas advertia haver aí só uma aliança tática: a longo prazo, previa que intratáveis incompatibilidades acabariam por contrapor as duas forças.

Negociações e resultados
Em contatos reservados, o general Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1978) promovia seu projeto de "distensão lenta, gradual e segura" rumo à devolução do poder a um governo democrático civil. Em 1977, o senador Petrônio Portela mediava o degelo entre, de um lado, o governo e, de outro, entidades como a CNBB e a Ordem dos Advogados do Brasil. Dos entendimentos sobrevieram a revogação da censura, o restabelecimento do habeas corpus e a ab-rogação do sufocante Ato Institucional n.º 5. Mas nem a CNBB nem seus aliados demoveram Geisel da decisão de interpor mais uma gestão militar, a do general João Baptista Figueiredo (1979-85), na transição para o poder civil.
Figueiredo obteve relativo êxito na contenção do terrorismo direitista, e promoveu, sim, "anistia ampla, geral e irrestrita". Mas deixou para o sucessor a convocação de eleições diretas e a constituinte, que d. Ivo e seus aliados pleiteavam.
As relações com o governo civil de José Sarney (1985-89) não foram muito mais fáceis do que com os militares. O apoio do clero a movimentos de reforma agrária contrariava a comunidade ruralista aliada do governo. Quando Sarney condecorou alguns bispos para aplacá-los, d. Ivo não compareceu para receber sua medalha.
Em 1988, a promulgação de nova Constituição coroou duas décadas da campanha cívica da CNBB, mas d. Ivo já não presidia a entidade. No ano anterior, a contragosto, ele transferira o cargo a d. Luciano Mendes de Almeida. ("Místico demais", teria resmungado d. Ivo.) Recolheu-se a sua diocese de Santa Maria, à qual só renunciaria em 2004 por imposição do limite canônico de idade.
A Constituição de 1988, seu justo orgulho, resultou algo espúria, prolixa e concessiva a interesses corporativistas. Depois da longa noite, o dia amanhecera um tanto cinzento. Mas, quem sabe, manhãs mais luminosas ainda virão entrar pela janela que d. Ivo ajudou a abrir. Questão de fé.


ALDO PEREIRA, 74, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.


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