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Bispo criticava o capitalismo e o comunismo
ALDO PEREIRA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Os cristãos devem manter
posição eqüidistante do capitalismo e do comunismo. (...) Nós
não queremos nada com o comunismo porque ele é ateu,
materialista e supressor dos direitos humanos; e, pelas mesmas três razões, somos contra o
capitalismo."
Quando fez essa declaração
ao jornal "O Estado de S. Paulo", em maio de 1977, d. José
Ivo Lorscheiter era secretário-geral da influente CNBB (Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil). "A Igreja não é um
partido político", insistia.
Achava discriminatória a
idéia de um partido explicitamente cristão. Mas não se omitia no protesto contra excessos
repressivos que o regime militar impunha à esquerda na década de 1970.
Quando iniciou a carreira
clerical, d. Ivo não cogitava tão
atribulada missão. Os avós tinham sido imigrantes alemães
que, na segunda metade do século 19, vieram expropriar de
obstinados guaranis o fértil vale do rio Caí. Dom Ivo tinha
apenas 12 anos quando o seu
pai decidiu que, naqueles cafundós, só a cruz podia ser alternativa à enxada.
Dez anos de diligente estudo
de filosofia em seminário abriram ao jovem José Ivo a oportunidade de especializar-se em
teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
Voltou de lá doutorado, ordenado e despojado do casulo
provinciano. No mesmo ano de
sua ordenação, 1952, d. Hélder
Câmara fundava a CNBB.
Após dez anos de magistério,
sagraram-no bispo auxiliar de
Porto Alegre. Dos 44 aos 60
anos, a partir de 1971, serviu a
CNBB, primeiro no cargo de secretário-geral (duas gestões sucessivas de quatro anos), depois como presidente (idem).
Na maior parte desses 16
anos, d. Ivo se dividiu entre a
diocese de Santa Maria (que assumiu em 1974), a CNBB e outras responsabilidades. Entre
estas, cuidou da organização da
visita do papa João Paulo 2º ao
Brasil em 1980.
Mas nada lhe ocupava a mente e o tempo como a política.
Aliou a CNBB ao variegado
marxismo da época para pleitear o restabelecimento de liberdades suprimidas pelo regime militar. Mas advertia haver
aí só uma aliança tática: a longo
prazo, previa que intratáveis
incompatibilidades acabariam
por contrapor as duas forças.
Negociações e resultados
Em contatos reservados, o
general Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1978) promovia
seu projeto de "distensão lenta,
gradual e segura" rumo à devolução do poder a um governo
democrático civil. Em 1977, o
senador Petrônio Portela mediava o degelo entre, de um lado, o governo e, de outro, entidades como a CNBB e a Ordem
dos Advogados do Brasil. Dos
entendimentos sobrevieram a
revogação da censura, o restabelecimento do habeas corpus
e a ab-rogação do sufocante Ato
Institucional n.º 5. Mas nem a
CNBB nem seus aliados demoveram Geisel da decisão de interpor mais uma gestão militar,
a do general João Baptista Figueiredo (1979-85), na transição para o poder civil.
Figueiredo obteve relativo
êxito na contenção do terrorismo direitista, e promoveu, sim,
"anistia ampla, geral e irrestrita". Mas deixou para o sucessor
a convocação de eleições diretas e a constituinte, que d. Ivo e
seus aliados pleiteavam.
As relações com o governo civil de José Sarney (1985-89)
não foram muito mais fáceis do
que com os militares. O apoio
do clero a movimentos de reforma agrária contrariava a comunidade ruralista aliada do
governo. Quando Sarney condecorou alguns bispos para
aplacá-los, d. Ivo não compareceu para receber sua medalha.
Em 1988, a promulgação de
nova Constituição coroou duas
décadas da campanha cívica da
CNBB, mas d. Ivo já não presidia a entidade. No ano anterior,
a contragosto, ele transferira o
cargo a d. Luciano Mendes de
Almeida. ("Místico demais", teria resmungado d. Ivo.) Recolheu-se a sua diocese de Santa
Maria, à qual só renunciaria em
2004 por imposição do limite
canônico de idade.
A Constituição de 1988, seu
justo orgulho, resultou algo espúria, prolixa e concessiva a interesses corporativistas. Depois da longa noite, o dia amanhecera um tanto cinzento.
Mas, quem sabe, manhãs mais
luminosas ainda virão entrar
pela janela que d. Ivo ajudou a
abrir. Questão de fé.
ALDO PEREIRA, 74, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.
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