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DEPOIMENTO
Carta a d. Manuel Parrado Carral
OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO
S. Paulo, 3 de maio de 2007
Prezado dom Manuel Carral,
Antes de mais nada, gostaria
de agradecer sua honrosa presença como celebrante da missa em memória de meu pai, Octavio Frias de Oliveira, a ser
realizada no próximo sábado.
Faço esse agradecimento em
nome de minha mãe, d. Dagmar, de meus irmãos Maria Helena, Luís e Maria Cristina, e
em meu próprio nome.
Julguei oportuno que alguns
subsídios sobre meu pai lhe
fossem transmitidos, até porque ele e o senhor não se conheceram pessoalmente. É o
que tentarei fazer a seguir de
forma breve e resumida. Não
abordarei a personalidade pública de meu pai, que tem recebido bastante divulgação nos
últimos dias.
Diferente de minha mãe, que
é católica, meu pai era agnóstico. Pensava que não é possível
comprovar nem a existência de
Deus nem o contrário. Mas admitia que a religião é uma consolação útil para quem acredita
e achava errado solapar qualquer forma de fé.
Ele foi um homem dinâmico,
pragmático e empreendedor.
Nasceu numa família de posses
que empobrecera. Sair da pobreza foi o impulso que o levou
a trabalhar cedo, deixando o colégio ainda adolescente. Sempre se definiu como empresário
ou mero comerciante. Tinha
um temperamento franco e otimista. Não cultivava ódios, era
propenso à conciliação. Sua curiosidade natural o levava a
perguntar e se interessar pelo
próximo. Não era afeito a hierarquias e convenções sociais.
O valor mais importante para
ele, o que mais suscitava seu
respeito, era o trabalho. Nada
resiste ao trabalho, ele repetia.
Costumava repreender delicadamente os filhos quando
crianças se jogassem papel no
chão, por exemplo, com o argumento de que fazê-lo era desrespeitar o trabalho da pessoa
que limpava o local.
Preocupava-se pouco com o
futuro e quase nada com o passado, pois era dessas pessoas
que vivem para o presente.
Gostava dos prazeres da vida,
embora fosse moderado em tudo, por disciplina e hábito. Dizia palavrões (mas era incapaz
de maledicência). Foi cético
quanto à natureza humana.
Mesmo assim, acho que não
exagero ao dizer que ele era um
agnóstico que agia, sem se dar
conta disso, como cristão.
Penso que era cristão na simplicidade dos hábitos, no apego
à verdade, na consideração pelos outros, no amor à família.
Era comum uma pessoa que
se aproximasse do cotidiano de
meu pai ficar surpresa com seu
despojamento. Ele não tinha
vícios nem passatempos, a menos que se considere o trabalho
como tais. Vivia com parcimônia, não se importava com objetos de consumo, não era dado a
luxos, nunca colecionou nada,
detestava ostentação. Abominava também o desperdício.
Fez o possível para educar seus
filhos e netos nessa mentalidade austera.
Quanto ao apego à verdade,
era simplesmente seu modo de
ser. É provável que eu nunca o
tenha visto mentir. Era de uma
franqueza, não raro a respeito
dele próprio, sempre definida
como desconcertante. Desprezava a hipocrisia, ironizava todo moralismo, sorria dos belos
sentimentos e boas intenções
que usamos para dissimular a
dureza da realidade. Sua pedagogia como pai, intuitiva mas
meditada, era uma escola da
verdade. Tratava as crianças
com carinho, mas como seres
pensantes.
Meu pai trouxe da infância
uma atitude de respeito pelo
sofrimento alheio. Ele próprio
sofreu aos 7 anos quando sua
mãe, d. Elvira, morreu de forma
inesperada. Seu pai, o juiz Luiz
Torres de Oliveira, certa vez
adotou a família de um operário que perdera o emprego por
causa de uma decisão judicial.
Mas a infância de meu pai já
transcorreu em meio a dificuldades materiais. Adulto, conheceu o triunfo e o desastre,
os dois impostores do verso de
Kipling que ele gostava de citar.
Para ele, o dinheiro logo se
tornou algo que não deveria ser
desfrutado, e sim empregado
como instrumento para gerar
mais riquezas e empregos.
Mencionava às vezes um ditado
comercial que diz "é imoral
perder dinheiro nos negócios".
E explicava que quem comete
esse erro acaba arrastando para
o infortúnio funcionários, fornecedores e até credores -junto com seus dependentes.
Sei que meu pai fazia contribuições discretas, como era de
seu feitio, a algumas instituições de solidariedade social, e
que por meio dos jornais ajudou muitas outras. Mas acredito que a principal doação tenha
sido a de sua inteligência extraordinária e energia quase
inesgotável à tarefa de criar os
empregos que ao longo de seis
décadas sustentaram milhares
de famílias.
No esboço deste elogio sumário, devo acrescentar a figura
do marido, pai, avô, irmão, tio e
sogro profundamente amoroso
que ele foi. Suas maneiras informais, sua disposição acolhedora e bem-humorada já despertavam simpatia à sua volta.
Sem prejuízo das homenagens
devidas à dimensão pública e
jornalística que a imagem de
meu pai assumiu, seu desaparecimento causou um grau de
emoção, até de contrariedade,
incomum na despedida de um
homem de idade avançada.
Mas suas qualidades humanas só podiam ser apreciadas
por inteiro em casa. Ele era
compreensivo, doce, afetuoso.
Era tolerante, amigo e encorajador. Não tinha preconceito,
nem culpa, nem mágoa. Era
companheiro para qualquer
aventura, um entusiasta dos sonhos dos outros. Formou tarde
esta que seria sua família definitiva, razão pela qual tinha urgência de ensinar e compartilhar. No entanto, teve tempo
para amar sua família sem
pressa e como poucos amaram;
foi também amado por ela até o
último instante de uma vida luminosa e -até onde isso é possível- feliz.
Escrever este relato levantou
um turbilhão de lembranças e
sentimentos. Encerro por aqui,
prezado d. Manuel, em respeito
a seu tempo e também porque o
assunto seria para mim interminável. Perdoe o zelo de filho.
Espero ter traduzido alguma
noção do homem que meu pai
foi e continua a ser na vida dos
que o conheceram.
Um abraço cordial do
Otavio Frias Filho
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