|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Pontífice ataca "patologias" da modernidade
Para ele, assim como a fé pode se tornar fundamentalista, a razão às vezes se descola de valores que servem de balizamento
"A assistência aos pobres e a
luta contra a pobreza são
prioridade na vida das
igrejas na América Latina",
disse Bento 16 em discurso
DA REPORTAGEM LOCAL
O papa Bento 16 é tão "paradoxal" quanto a Igreja Católica,
afirma o sociólogo Francisco
Borba, do Núcleo Fé e Cultura
da PUC-SP. Essa complexidade
se manifesta principalmente
no modo como ele apresenta a
ligação entre fé e razão, e como
vê a relação entre estrutura de
poder da igreja e sua ação social
no mundo secular.
Por ter combatido duramente a Teologia da Libertação nos
anos 80, muitos, dentro da própria igreja, acreditavam que o
papa reprimiria as experiências
católicas, particularmente no
terceiro mundo, ligadas à defesa dos pobres e da justiça social.
A principal crítica do papa à
corrente que tinha como expoente, entre outros, o brasileiro Leonardo Boff, se referia no
entanto ao uso feito por esses
teólogos do marxismo como
instrumento para compreender a própria igreja.
O questionamento do caráter
transcendente da igreja e de
sua estrutura de poder era portanto mais problemático para
ele do que o uso do marxismo
para a compreensão das desigualdades no mundo secular.
Em sua encíclica "Deus é
Amor", escrita ainda no primeiro ano de pontificado, Bento 16
fala, em última instância, da
presença da igreja no mundo e
de seu dever de atuação social.
O papa afirma ali que "algo de
verdade existe" na perseguição
proposta pelo marxismo de
uma "ordem justa" social.
"A igreja é a família de Deus
no mundo; nessa família, não
deve haver ninguém que sofra
por falta do necessário", afirma
o papa no mais importante documento de seu pontificado.
Em outro momento, num
discurso aos núncios apostólicos da América Latina (espécie
de embaixadores da igreja em
cada país da região), Bento 16
afirma que "a assistência aos
pobres e a luta contra a pobreza
são e permanecem uma prioridade fundamental na vida das
igrejas na América Latina".
Ele, no entanto, volta a fazer
carga contra o marxismo em
sua encíclica. A principal se
confunde com a crítica à modernidade. Diz que "o tempo
moderno, sobretudo a partir do
oitocentos, aparece dominado
por diversas variantes de uma
filosofia do progresso, cuja forma mais radical é o marxismo".
Para Bento 16, assim como há
"patologias da fé" -quando ela
se torna fundamentalista, sem
apoio na razão-, há "patologias
da razão" ou patologias da modernidade -quando ela se descola de valores e de experiências de fé que podem lhe servir
de balizamento moral.
Segundo Luiz Felipe Pondé,
professor do Departamento de
Teologia da PUC-SP, o papa
desconfia da capacidade de a
razão explicar tudo e não aceita
reduzir o ser humano a um objeto da biologia, psicologia ou
da sociologia. A idéia de que o
progresso dará conta de tudo,
sua promessa de felicidade e
solução, é criticada por Bento
16 em sua encíclica: "Não há
qualquer ordenamento estatal
justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor".
É também o amor -ou, posto
de outra forma, Deus- que dá
fundamento para sua crítica da
razão. "A fé tem, sem dúvida, a
sua natureza específica de encontro com o Deus vivo -um
encontro que nos abre novos
horizontes muito para além do
âmbito da própria razão."
É por isso que Francisco Borba afirma que não se compreenderá esse papa se não se
aceitar que ele é antes de tudo
um místico. "O grande problema para ele, seu grande enfrentamento com a cultura pós-moderna, é reafirmar que um Deus
está sempre concretamente ao
lado do homem", diz. "Diante
disso, uma razão sadia se sabe
incapaz de dar conta até o fim
do fenômeno humano."
O lado mais "panzer" desse
pontífice apareceu justamente
no enfrentamento do que considerava ser uma "patologia" da
fé e, depois, no de uma "patologia" da modernidade.
O primeiro caso ocorreu no
já famoso discurso na Universidade de Regensburg, na Alemanha, em setembro passado, em
que o papa afirmava que "não
agir racionalmente é contra a
natureza de Deus". Ele citou,
sem endossá-lo, um imperador
bizantino do século 15, que criticou o profeta Maomé por "sua
ordem para espalhar a fé que
pregava pelo medo da espada".
O segundo, quando, em março, definiu o segundo casamento como uma "praga" do "ambiente social contemporâneo",
mantendo a distinção cristã de
perdoar quem erra ao mesmo
tempo em que aponta o erro.
"Sim, ele é paradoxal. A igreja
é por excelência paradoxal porque ela trabalha com uma totalidade a que o homem não consegue racionalmente aderir",
afirma Borba. Para Pondé, a
aparência de contraditoriedade
em discursos e gestos do então
cardeal e do atual papa tem a
ver com a dificuldade da "sensibilidade marqueteira" moderna em lidar com a sutileza e
complexidade dos problemas.
"Ele não faz como os tradicionalistas, que transformam a
vida em pedra, nem como os
modernos, que a transformam
em éter", diz Pondé. "As pessoas têm dificuldade em entender esse princípio católico que
condena o segundo casamento
e, ao mesmo tempo, é profundamente misericordioso com
quem sofre com isso."
"A diferença entre o catolicismo e o protestantismo é que,
no catolicismo, tudo acaba em
missa."
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Frase Índice
|