São Paulo, segunda-feira, 06 de setembro de 2004

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ENTREVISTA DA 2ª

CAMILA GIORGETTI

Pesquisadora comparou como são vistos moradores de rua de Paris e de SP

"Ataques expressam visão higienista do paulistano"

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

Como a sociedade paulistana vê e trata seus moradores de rua? Essa é a pergunta que a socióloga Camila Giorgetti, 32, fez em sua tese de doutorado, apresentada em abril na PUC-SP. O trabalho, em parceria com o Institut d'Etudes Politiques, na França, ainda leva a questão um pouco além. Compara os dados de São Paulo com os de Paris. O resultado não é motivo de orgulho: os brasileiros se mostraram mais preconceituosos, principalmente os policiais.
Giorgetti classifica essa atitude como "higienista". "Escolhi esse termo porque a idéia manifestada é a de higiene, como se as pessoas quisessem limpar a cidade da presença dos moradores de rua. São associados a parasitas."
Para a pesquisadora, os ataques como os que têm ocorrido no centro são, antes de tudo, uma expressão do preconceito que permeia a maior parte da sociedade. Algo que ultrapassa a questão da segurança e a da oferta de vagas em albergues -deficiências que têm motivado troca de farpas entre a prefeitura e o governo estadual. "Enquanto houver preconceito, não haverá política pública eficaz, e os moradores de rua continuarão expostos à violência."
No trabalho, Giorgetti utilizou três fontes de dados: notícias sobre moradores de rua publicadas nos últimos dez anos no francês "Le Monde" e na Folha, projetos de lei voltados a essa população apresentados no Conselho de Paris e na Câmara paulistana no mesmo período e entrevistas.
Foram feitas 1.116 entrevistas -com policiais, médicos, assistentes sociais, políticos e transeuntes (537 franceses e 579 brasileiros)- para detectar as diferenças de opinião. Entre os policiais brasileiros, por exemplo, 70% acham que os moradores de rua perturbam a sociedade. Entre os policiais franceses, a proporção é inversa: 30% têm essa opinião.
O número de moradores de rua nas duas cidades não é muito discrepante, segundo os dados utilizados no trabalho. Em 2000, São Paulo tinha cerca de 8.900, de acordo com a Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). Em Paris, variava de 7.600 a 8.300, por um levantamento de 1998. Leia a seguir a entrevista.

 

Folha - Quais as diferenças no modo como os moradores de rua são vistos em São Paulo e em Paris?
Camila Giorgetti -
Nas duas cidades, há essa tendência higienista. A diferença é que, em São Paulo, essa visão existe também por parte do poder público. Em Paris, você até tem políticos que, individualmente, fazem um discurso higienista, mas não existem leis nesse sentido. Outro fato particular daqui é a arquitetura antimendigo -as pessoas protegem as entradas de prédio com objetos pontiagudos. Há até o caso de uma engenhoca colocada na marquise de um teatro para espantar os moradores de rua com água.

Folha - Dê exemplos dessa atitude no poder público?
Giorgetti -
Os piores anos para a população de rua foram os dos prefeitos [Paulo] Maluf [1993 a 1996] e de [Celso] Pitta [de 1997 a 2000]. No mandato de Erundina [1989 a 1992], foi criado um convênio entre a prefeitura e as igrejas que faziam o trabalho com moradores de rua. Foi um passo importante. Quando Maluf entrou, começaram os problemas. Faltaram verbas e espaços públicos foram cercados para impedir que os moradores de rua os ocupassem.

Folha - E na Câmara?
Giorgetti -
No Legislativo, havia projetos de caráter higienistas, como um que expulsava as pessoas dos viadutos, de autoria do Hanna Garib [ex-vereador e deputado cassado sob a acusação de integrar esquema de propina]. Outra proposta do Garib era colocar apoio de braço nos bancos para impedir que os moradores de rua dormissem neles. O então vereador Mário Noda, propunha a distribuição de casinhas de papelão.

Folha - Qual a explicação para as pessoas serem mais preconceituosas em São Paulo?
Giorgetti -
Baixa escolaridade e desigualdade social. As pessoas com menor índice de escolaridade têm tendência mais higienista. Acredito que isso aconteça por falta de informação dessa população para entender os problemas estruturais que fazem com que as pessoas tenham de ir para a rua. Então se apegam a explicações simplistas. Em vez de entender que há um problema de emprego, de moradia, vêem a situação como uma escolha pessoal: está assim porque bebe. Em Paris, as principais explicações para a existência dos moradores de rua são a ruptura familiar e o desemprego. Isso já muda a forma como o morador de rua é visto. Com isso, lá é consenso que o morador de rua é um problema social. Entre nós, isso não ocorre.

Folha - E a desigualdade social?
Giorgetti -
Nas entrevistas em São Paulo, as pessoas sempre se colocavam num dos extremos: ou eram muito preconceituosas ou não tinham preconceito nenhum. Nossa sociedade é muito desigual e a pessoa, ao responder à entrevista, ou quer a manutenção da ordem vigente ou quer uma total transformação da sociedade. Na França, as pessoas eram mais flexíveis. Aqui, para muitas pessoas, posicionar-se em relação ao pobre é se posicionar em relação a todo um contexto no qual ela está sendo beneficiada. Uma das perguntas, por exemplo, é se é o morador de rua que tem de mudar para que sua situação melhore ou se a sociedade tem de mudar. Se a pessoa está sendo beneficiada, não quer que a sociedade mude.

Por que os policiais são os mais higienistas?
Giorgetti -
Uma das perguntas que fiz a eles é se já tinham agredido um morador de rua. Quase 50% dos entrevistados disseram que já tinham agredido. Em Paris, são 10%. Também perguntei se eles achavam os moradores de rua violentos, e disseram que não. Dá para questionar, então, se essa violência não é gratuita. Em Paris, por exemplo, há uma brigada voluntária de atendimento aos moradores de rua que reúne policiais. Aqui, acham que esse trabalho não deve ser realizado por eles, que levar essas pessoas para um albergue é algo que extrapola o raio de ação da polícia e ficam revoltados em ter de fazer isso.

Folha - Sobre os ataques, a senhora já disse que não é um problema de segurança. Por quê?
Giorgetti -
No caso específico do massacre dos moradores de rua, o problema é o preconceito de toda a sociedade. As pessoas acabam transferindo suas frustrações para o outro e, como o morador de rua não trabalha, simboliza a sujeira etc., acaba sendo vítima disso. Alguém insatisfeito pode questionar como o morador de rua, que não trabalha, tem albergue, sopa, cama e ele, que trabalha, tem de viver com um salário horrível. Muita gente pensa assim.

Folha - Qual a diferença entre os albergues de São Paulo e de Paris?
Giorgetti -
Muitos aqui recebem 100, 200 pessoas. Não dá para fazer um trabalho social intensivo com tanta gente. Acaba sendo um atendimento emergencial. Em Paris, o poder público também deixa a desejar, mas a maior parte do trabalho é feita por instituições da sociedade civil; e nelas a qualidade é de primeira. Têm unidades menores e bonitas, que realmente acolhem os moradores de rua. Além disso, as regras são bem menos rígidas. Aqui, os albergues têm uma lista dizendo o que não pode fazer. A autonomia do morador de rua fica comprometida. Promove-se uma infantilização da população atendida.


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