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ENTREVISTA DA 2ª
CAMILA GIORGETTI
Pesquisadora comparou como são vistos moradores de rua de Paris e de SP
"Ataques expressam visão higienista do paulistano"
AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL
Como a sociedade paulistana vê
e trata seus moradores de rua? Essa é a pergunta que a socióloga
Camila Giorgetti, 32, fez em sua
tese de doutorado, apresentada
em abril na PUC-SP. O trabalho,
em parceria com o Institut d'Etudes Politiques, na França, ainda
leva a questão um pouco além.
Compara os dados de São Paulo
com os de Paris. O resultado não é
motivo de orgulho: os brasileiros
se mostraram mais preconceituosos, principalmente os policiais.
Giorgetti classifica essa atitude
como "higienista". "Escolhi esse
termo porque a idéia manifestada
é a de higiene, como se as pessoas
quisessem limpar a cidade da presença dos moradores de rua. São
associados a parasitas."
Para a pesquisadora, os ataques
como os que têm ocorrido no
centro são, antes de tudo, uma expressão do preconceito que permeia a maior parte da sociedade.
Algo que ultrapassa a questão da
segurança e a da oferta de vagas
em albergues -deficiências que
têm motivado troca de farpas entre a prefeitura e o governo estadual. "Enquanto houver preconceito, não haverá política pública
eficaz, e os moradores de rua continuarão expostos à violência."
No trabalho, Giorgetti utilizou
três fontes de dados: notícias sobre moradores de rua publicadas
nos últimos dez anos no francês
"Le Monde" e na Folha, projetos
de lei voltados a essa população
apresentados no Conselho de Paris e na Câmara paulistana no
mesmo período e entrevistas.
Foram feitas 1.116 entrevistas
-com policiais, médicos, assistentes sociais, políticos e transeuntes (537 franceses e 579 brasileiros)- para detectar as diferenças de opinião. Entre os policiais
brasileiros, por exemplo, 70%
acham que os moradores de rua
perturbam a sociedade. Entre os
policiais franceses, a proporção é
inversa: 30% têm essa opinião.
O número de moradores de rua
nas duas cidades não é muito discrepante, segundo os dados utilizados no trabalho. Em 2000, São
Paulo tinha cerca de 8.900, de
acordo com a Fipe (Fundação
Instituto de Pesquisas Econômicas). Em Paris, variava de 7.600 a
8.300, por um levantamento de
1998. Leia a seguir a entrevista.
Folha - Quais as diferenças no
modo como os moradores de rua
são vistos em São
Paulo e em Paris?
Camila Giorgetti
- Nas duas cidades,
há essa tendência
higienista. A diferença é que, em
São Paulo, essa visão existe também
por parte do poder público. Em
Paris, você até tem
políticos que, individualmente, fazem um discurso
higienista, mas
não existem leis
nesse sentido. Outro fato particular
daqui é a arquitetura antimendigo
-as pessoas protegem as entradas
de prédio com objetos pontiagudos.
Há até o caso de
uma engenhoca colocada na marquise de um teatro para espantar
os moradores de rua com água.
Folha - Dê exemplos dessa atitude no poder público?
Giorgetti -Os piores anos para a
população de rua foram os dos
prefeitos [Paulo]
Maluf [1993 a
1996] e de [Celso]
Pitta [de 1997 a
2000]. No mandato de Erundina
[1989 a 1992], foi
criado um convênio entre a prefeitura e as igrejas
que faziam o trabalho com moradores de rua. Foi
um passo importante. Quando
Maluf entrou, começaram os problemas. Faltaram
verbas e espaços
públicos foram
cercados para impedir que os moradores de rua os
ocupassem.
Folha - E na Câmara?
Giorgetti - No Legislativo, havia
projetos de caráter higienistas, como um que expulsava as pessoas
dos viadutos, de autoria do Hanna Garib [ex-vereador e deputado
cassado sob a acusação de integrar esquema de propina]. Outra
proposta do Garib
era colocar apoio
de braço nos bancos para impedir
que os moradores
de rua dormissem
neles. O então vereador Mário Noda, propunha a
distribuição de casinhas de papelão.
Folha - Qual a explicação para as
pessoas serem
mais preconceituosas em São Paulo?
Giorgetti -Baixa
escolaridade e desigualdade social.
As pessoas com
menor índice de
escolaridade têm
tendência mais higienista. Acredito
que isso aconteça
por falta de informação dessa população para entender os problemas estruturais
que fazem com que as pessoas tenham de ir para a rua. Então se
apegam a explicações simplistas.
Em vez de entender que há um
problema de emprego, de moradia, vêem a situação como uma escolha pessoal: está
assim porque bebe. Em Paris, as
principais explicações para a existência dos moradores de rua são a
ruptura familiar e
o desemprego. Isso já muda a forma como o morador de rua é visto.
Com isso, lá é consenso que o morador de rua é um
problema social.
Entre nós, isso
não ocorre.
Folha - E a desigualdade social?
Giorgetti -Nas
entrevistas em
São Paulo, as pessoas sempre se colocavam num dos extremos: ou
eram muito preconceituosas ou
não tinham preconceito nenhum.
Nossa sociedade é muito desigual
e a pessoa, ao responder à entrevista, ou quer a manutenção da
ordem vigente ou quer uma total
transformação da sociedade. Na
França, as pessoas eram mais flexíveis. Aqui, para muitas pessoas,
posicionar-se em relação ao pobre é se posicionar em relação a
todo um contexto no qual ela está
sendo beneficiada. Uma das perguntas, por exemplo, é se é o morador de rua que tem de mudar
para que sua situação melhore ou
se a sociedade tem de mudar. Se a
pessoa está sendo beneficiada,
não quer que a sociedade mude.
Por que os policiais são os mais
higienistas?
Giorgetti - Uma das perguntas
que fiz a eles é se já tinham agredido um morador de rua. Quase
50% dos entrevistados disseram
que já tinham agredido. Em Paris,
são 10%. Também perguntei se
eles achavam os moradores de
rua violentos, e disseram que não.
Dá para questionar, então, se essa
violência não é gratuita. Em Paris,
por exemplo, há uma brigada voluntária de atendimento aos moradores de rua que reúne policiais. Aqui, acham que esse trabalho não deve ser realizado por
eles, que levar essas pessoas para
um albergue é algo que extrapola
o raio de ação da polícia e ficam
revoltados em ter de fazer isso.
Folha - Sobre os ataques, a senhora já disse que não é um problema de segurança. Por quê?
Giorgetti - No caso específico do
massacre dos moradores de rua, o
problema é o preconceito de toda
a sociedade. As pessoas acabam
transferindo suas frustrações para
o outro e, como o morador de rua
não trabalha, simboliza a sujeira
etc., acaba sendo vítima disso. Alguém insatisfeito pode questionar
como o morador de rua, que não
trabalha, tem albergue, sopa, cama e ele, que trabalha, tem de viver com um salário horrível. Muita gente pensa assim.
Folha - Qual a diferença entre os
albergues de São Paulo e de Paris?
Giorgetti - Muitos aqui recebem
100, 200 pessoas. Não dá para fazer um trabalho social intensivo
com tanta gente. Acaba sendo um
atendimento emergencial. Em
Paris, o poder público também
deixa a desejar, mas a maior parte
do trabalho é feita por instituições
da sociedade civil; e nelas a qualidade é de primeira. Têm unidades
menores e bonitas, que realmente
acolhem os moradores de rua.
Além disso, as regras são bem menos rígidas. Aqui, os albergues
têm uma lista dizendo o que não
pode fazer. A autonomia do morador de rua fica comprometida.
Promove-se uma infantilização
da população atendida.
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