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ENTREVISTA DA 2ª/ANTÔNIO FONSECA
Se nada for feito, febre amarela urbana deve voltar
Médico da Fiocruz avalia que país está próximo de uma epidemia de dengue 4, mais grave que a atual, no Rio
A febre amarela urbana ameaça Rio e São Paulo, avalia o clínico Antônio Sérgio Almeida Fonseca, médico que em 1986 examinou em Nova Iguaçu (cidade na região metropolitana do Rio) o primeiro caso de dengue após décadas sem registros. A falta de eficácia do poder público no combate ao mosquito Aedes aegypti, transmissor das duas doenças, trará de volta, inevitavelmente, a febre amarela em sua forma urbana, estima o especialista.
SERGIO TORRES
DA SUCURSAL DO RIO
A população brasileira está
"totalmente exposta" às doenças ao mosquito Aedes aegypti.
Em entrevista a Folha, Fonseca, 51, assessor da Vice-Presidência de Serviços de Referência e Ambiente da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz)
alerta sobre o risco de retorno
da febre amarela urbana.
Além disso, o especialista
prevê que muito em breve haverá, em alguma grande cidade
brasileira, uma epidemia de
dengue mais grave do que a
atual, em curso no Rio. Desta
vez provocada pelo vírus tipo 4,
existente em países fronteiriços e no Caribe e que não é registrado no Brasil desde 1982.
"Se estivesse sendo feita alguma coisa não teria voltado o 2",
disse ele, referindo-se à epidemia no Rio, responsável pela
morte de 44 pessoas até sexta-feira no Rio e 67 em todo o Estado.
FOLHA - O sr. fala que essa epidemia demonstra o despreparo das
autoridades de saúde. Por quê?
ANTÔNIO SÉRGIO DA FONSECA -
Uma doença como a dengue
tem mecanismo de transmissão conhecido. Tem as formas
de prevenir, de atuar, conhecidas. Tem previsibilidade do que
pode vir a acontecer. Logo, você
tem de tentar montar uma estratégia que seja mais eficaz.
Por mais que se esperasse, havia um despreparo completo.
Isso é fundamental. Certamente nossa rede não estava preparada para isso. Em tese, era de
se esperar que não houvesse
nenhum óbito.
Se a gente pegar a história
desde quando começou, em
1986, há uma série de elementos que vão prevendo a sucessão de coisas que aconteceram
nesses 22 anos. No final da década de 70 já se falava sobre o
risco da urbanização da febre
amarela, por conta do ressurgimento do Aedes aegypti e da
população que vinha aumentando. Existia a preocupação
da entrada da febre amarela.
Um mosquito que tinha sido
eliminado foi reintroduzido.
Em 1986, em Nova Iguaçu,
nos primeiros casos, que tive
oportunidade de atender, achávamos até que era febre tifóide.
Era uma família inteira, todas
próximas do mesmo local. A
gente não estava acostumado.
Dengue a gente sabia de livro.
Até que o vírus foi isolado na
Fiocruz, era o dengue 1. Isso se
estendeu rapidamente pelo
município do Rio.
FOLHA - Por que sempre no Rio?
FONSECA - O Rio apresenta algumas condições que favorecem isso. É cidade com problema habitacional sério. Um não-acesso de grande parte da população à água encanada, principalmente em favelas. O Rio
tem a característica de ter uma
periferia central. Você tem no
centro morro da Providência,
morro do Estácio. Na zona sul,
morro do Chapéu Mangueira,
Pavãozinho. As cidades se organizam e as periferias vão ficando cada vez mais afastadas. No
Rio, ela está dentro.
FOLHA - Então não tem jeito?
FONSECA - É uma situação que
permite o surgimento de criadouros. Além das condições climáticas, que são favoráveis. Em
1986 foram casos relativamente simples, com muita sintomatologia, mas sem maior gravidade. Uma epidemia volumosa,
mas de certa forma benigna,
como a maioria dos casos de
dengue. O que se temia, pelos
estudos, é que a sucessão de entrada de outros vírus em períodos curtos permite o surgimento de formas mais graves da
doença.
Dois anos depois entrou outro vírus, o 2, que está circulando atualmente. Fez uma segunda epidemia. Aí apareceram os
primeiros casos de febre hemorrágica da dengue. A partir
do Rio essas epidemias foram
nacionalizadas, atingiu o Brasil
como um todo. A partir daí tivemos epidemias sucessivas em
Estados diferentes.
FOLHA - Se era previsível porque
não se impediu a propagação da
doença?
FONSECA - As estratégias foram
muito voltadas para a propaganda. A estratégia montada ao
longo desses 22 anos foi focada
na destruição dos criadouros.
Mas ela é muito informativa.
Ela recomendava fazer isso.
Existe uma precarização clara da contratação dos profissionais que já foram chamados de
mata-mosquitos, hoje agentes
de endemias. Eles têm contratos precários. É leviano para
mim falar da questão da formação, mas acredito que essa formação talvez não seja a mais
adequada. E existe uma desarticulação completa da estrutura do trabalho dos agentes de
endemias, da área de vigilância
sanitária, com a área do atendimento básico.
Ao longo desses anos o Brasil
investiu em proposta de mudança do modelo assistencial,
trabalhando a atenção básica
com a estratégia de saúde da família, atingindo índices de cobertura ótimos, o que não existe no Rio.
Aqui é muito baixo, 8%. A
gente sabe que nas grandes cidades é mais difícil. Atingir
uma cobertura completa na cidade menor é muito mais fácil.
Agora, no Rio existe um aparelho público estatal grande de
saúde. Modificar esse modelo é
mais difícil. Rio e São Paulo tiveram grandes dificuldades.
FOLHA - Isso foi fundamental para
a atual epidemia?
FONSECA - Uma cobertura baixa
do programa de saúde da família. Uma cidade onde você tem
uma periferia central. Uma cidade que foi vítima da entrada
dos três vírus, sucessivas epidemias, clima favorável, déficit
habitacional. O Rio tem atenção básica, mas no modelo convencional, o posto de saúde. O
saúde da família vai aonde o indivíduo está e trabalha com
membros da própria comunidade. Vai ter uma possibilidade
de transformação muito maior.
FOLHA - Por que não se adotou
uma estratégia específica?
FONSECA - Ela foi muito focada
na responsabilização do cidadão. "O culpado é você porque
tem bromélia, o culpado é você
porque deixa água empoçada,
que não tampa as caixas d'água". É falho.
Outra coisa falha é que as medidas têm que ser contínuas e
acompanhadas de grandes
exemplos. Quando você identifica um depósito de carros oficiais abandonado com água
dentro, ora, como você vai poder falar com uma mãe que tem
que botar terrinha no vaso? Ela
faz isso, e a filha fica doente
porque do outro lado o poder
público não deu conta de eliminar um grande criador.
FOLHA - O vírus 4 já ameaça?
FONSECA - A epidemia de dengue de 2002 entrou em janeiro.
Quando voltei para trabalhar
depois do Ano Novo eu estranhei: vai estourar alguma coisa.
Em 2002 a coisa foi muito mais
explosiva. Era a entrada de um
vírus. A população toda está exposta. É o risco que a gente corre com a entrada do 4.
FOLHA - E quando chega o 4?
FONSECA - Está batendo na trave, a gente pode dizer isso. A
qualquer momento. Roraima é
perto da Venezuela, do Caribe,
onde o vírus circula. A população brasileira está totalmente
exposta. Talvez ainda não tenha tido essa explosão porque o
vírus está em área de baixa densidade demográfica. Uma epidemia dessa monta certamente
vai começar na região Sudeste.
Ou nas capitais do Nordeste.
Ela precisa de um aglomerado urbano importante. A entrada de um novo vírus é algo esperado. Desde 1986 eles têm entrado sucessivamente.
FOLHA - O que está sendo feito pelas autoridades em relação ao 4?
FONSECA - Acho que se estivesse sendo feita alguma coisa não
teria voltado o 2. Acho que está
sendo feito muito pouco. Tem
coisas de longo prazo, que dizem respeito a articulações entre os diversos setores; em envolvimento de poder público,
privado e comunitário. Tem
que haver no poder público a
articulação entre as esferas federais, estaduais e municipais.
Nas municipais, articulação de
educação, saúde, saneamento,
habitação.
FOLHA - Mas isso não existe?
FONSECA - É muito pouco, estamos engatinhando.
FOLHA - Só no Rio?
FONSECA - Diria que nos país inteiro. Alguns locais estão mais
avançados, pelo menos no campo da saúde existem alguns
avanços. A estruturação de um
sistema de saúde, com atenção
básica eficaz, ações articuladas
no setor público, envolvendo a
participação da comunidade.
FOLHA - O alto número de mortes
mostra que o médico, de um modo
geral, não estava preparado para
diagnosticar a doença?
FONSECA - É uma análise difícil.
A teoria é uma, a prática, outra.
Sabíamos de ler, de literatura, o
manejo do dengue em criança,
mas só fomos ter experiência
prática agora. Por outro lado,
isso vai um pouco além da preparação do profissional. A forma de vinculação dele com o
conhecimento do que é uma rede, o despreparo da atenção básica. Está faltando uma qualidade no nosso filtro. O filtro é a
atenção básica.
FOLHA - Por que a febre amarela
urbana não chegou ainda?
FONSECA - A urbanização da febre amarela é outro capítulo. É
doença de primatas, silvícola. O
homem entra acidentalmente
quando penetra nesses ambientes. Para ter a urbanização,
precisa, primeiramente, uma
quantidade de pessoas contaminadas vindas dessas áreas e
uma população maior de Aedes
do que tem hoje. O que a gente
costuma dizer é que se nada for
feito daqui a alguns anos será
inevitável a urbanização.
FOLHA - Inevitável em quantos
anos?
FONSECA - Se você não monitorar a população de Aedes, se você não fizer investimento no
controle das migrações... A diferença da febre amarela é que
existe uma vacina eficaz, que
protege por dez anos. Se a gente não tiver controle rígido dessas migrações, é inevitável. Rio
e São Paulo são os dois grandes
riscos, pois têm uma população
explosiva em termos de densidade demográfica e baixa cobertura vacinal para febre amarela.
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