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ORIGENS DA CRISE
PT virou "partido-empresa", diz sociólogo
FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL
A promiscuidade da direção do
Partido dos Trabalhadores com
interesses privados -simbolizada no Land Rover recebida de
uma empresa pelo secretário-geral Silvio Pereira- tem origem
no início dos anos 90, num processo acelerado de burocratização
e centralização de decisões, "espécie de stalinização do PT" promovida pelo ex-ministro José Dirceu,
afirma o sociólogo Rudá Ricci, 42.
Ricci elaborou o programa de
política agrária na campanha de
Lula, em 1989, e coordenou a
campanha do ex-deputado petista Plínio de Arruda Sampaio ao
governo de São Paulo, em 1990.
Deixou o PT há doze anos. "Era
evidente para todo o mundo que
havia foco nas eleições e que o
partido acabava necessitando de
muitos recursos. Mas mesmo
quem sabia disso se surpreende
com o grau de desconstituição da
base moral", diz.
Ele responsabiliza Dirceu por
ter promovido uma "politização
acelerada" dos diretórios, excluído dirigentes não-afinados com
sua linha e transformado o PT
num "partido-empresa", mais
voltado para ganhar eleições.
Esse modelo previa "um corpo
de captação de recursos financeiros, com grande autonomia e
próximo das conveniências privadas que demonstram interesse
em financiar o partido".
Professor da PUC de Minas,
Ricci optou por ser consultor e assessor de ONGs e pastorais sociais. "Não somos iguais às pessoas que operaram desse jeito
com a política brasileira", diz.
Folha - A contaminação do PT pelo "mensalão" e pelas malas de dinheiro já era previsível anos atrás?
Rudá Ricci - Nesse grau, no nível
em que está sendo exposto agora,
não. Mas a origem já era previsível por muitos militantes, lideranças de movimentos sociais que
criticavam a direção nacional.
Folha - Quais eram os sinais de
que a burocracia do partido poderia se comprometer com grandes
contribuições privadas?
Ricci - Esses sinais eram muitos
evidentes a partir de 1990, e isso ficou muito claro em 1994. A burocratização estava afastando a base
social do PT, a militância.
Folha - O que ocorreu?
Ricci - Os intelectuais do partido
perderam qualquer expressão política. O partido foi se tornando
cada vez mais pragmático. Ou, no
jargão da esquerda, voltado apenas para a ação tática. Qualquer
pensamento mais estratégico, como o desenvolvimento do país,
foi ficando subordinado aos acordos políticos momentâneos.
Folha - Como foi essa mudança?
Ricci - Quando José Dirceu assumiu a secretaria de organização
do diretório estadual de São Paulo, nos anos 80, montou uma
equipe básica a seu redor e fundou diversos diretórios municipais no interior de São Paulo, na
região oeste, mais despolitizada.
Na região metropolitana, no ABC
e no litoral paulista havia oposição ao nome de José Dirceu.
Folha - Por que Dirceu era questionado dentro do partido?
Ricci - Ele começou estruturando o partido nos diretórios municipais com militantes muito jovens. Lembro-me do Rogério Buratti [ex-secretário de Governo na
gestão do prefeito Antonio Palocci Filho, em Ribeirão Preto, é investigado na CPI dos Bingos]. Naquele período, era um homem
importante na estrutura montada
por José Dirceu. Ele tentou fazer
uma politização acelerada dos diretórios, depois espraiada para as
principais bases e direções estaduais executivas do PT. Forçava a
exclusão de correntes que não se
vinculavam à sua.
Folha - E no movimento sindical?
Ricci - Na estrutura sindical, que
não tinha uma ligação tão direta
com Dirceu, também houve uma
acelerada burocratização e o controle político da máquina por três
grandes nomes: Delúbio Soares,
tesoureiro da CUT na época, Gilmar Carneiro, que era o secretário-geral, e Jorge Lorenzetti, secretário nacional de formação.
Esse tripé montou uma estrutura
de extremo controle interno. Obviamente, movimentava muitos
recursos financeiros, inclusive de
financiamentos feitos por outras
centrais sindicais internacionais.
Folha - Quais eram os papéis de
Carneiro e de Lorenzetti?
Ricci - Gilmar Carneiro criou
uma estrutura de controle que
buscava identificar quem era
quem entre os afiliados do PT.
Folha - Ele aparecia nos esquemas de financiamento?
Ricci - Não. Mas o orçamento do
sindicato dos bancários de São
Paulo [que Carneiro presidiu]
correspondia ao orçamento de todos os municípios baianos, com
exceção de Salvador.
Folha - E Lorenzetti?
Ricci - É de Santa Catarina. Extremamente bem-preparado, tinha muitos contatos internacionais. Tinha bom trânsito com
Dirceu, o que era raro na CUT.
Fazia a ponte com as organizações internacionais sindicais e os
partidos social-democráticos que
financiavam os programas de formação da CUT.
Folha - Isso acontecia apenas em
épocas de eleições?
Ricci - Não, de maneira alguma.
Havia o tempo inteiro entradas
através do sistema de formação
sindical. O que, aliás, envolve
quase todas as centrais sindicais.
Folha - Quais foram os efeitos
dessa burocratização?
Ricci - Afastou o partido e a central sindical de suas bases sociais.
O partido se dirigiu prioritariamente para o processo eleitoral. O
PT se afastou de estratégias mais
globais, mais de longo prazo.
Folha - Como isso se refletiu nas
campanhas eleitorais?
Ricci - Em 1989, dez dias antes da
eleição, as pesquisas davam Lula
como eleito. Pela primeira vez, essa nova esquerda percebe que dá
para ganhar as eleições.
Era o momento de se estruturar
uma campanha de massa que
quebrasse aquele patamar de 30%
dos votos, a base eleitoral do PT
nos grandes centros metropolitanos. Se ampliavam os acordos, as
negociações com outros partidos.
Na área sindical, em 1993, 1994,
houve a filiação da CUT à Ciols
(Confederação Internacional das
Organizações dos Sindicatos Livres). Havia uma disputa com a
Força Sindical. A CUT precisava
filiar o máximo de confederações
e sindicatos. Esses dois interesses
se unem: eleger Lula e fortalecer a
CUT.
Folha - O que esses dois processos
têm a ver com as denúncias atuais?
Ricci - É a partir de 1994 que essa
estrutura fica mais elaborada, ganha um corpo nacional. A surpresa que a militância está tendo hoje, com as denúncias, ocorre porque o partido e a CUT vinham
num processo muito acelerado de
centralização, de controle, de tentativas de expurgos e intimidação
de qualquer oposição interna e
distanciamento de sua base social.
Folha - Já havia uma máquina para a captação de recursos privados?
Ricci - Essa máquina política voltada para a eleição já está totalmente estruturada entre 1994 e
1998. E tem que se alimentar. Técnicos em elaboração de políticas
públicas passam a ficar subordinados à direção de marketing de
campanha. O PT se volta absolutamente para as eleições.
Folha - Nessa época, o Delúbio
Soares já era uma figura atuante
como operador de recursos?
Ricci - Delúbio Soares é conhecido como o homem do dinheiro
na CUT em toda a década de 90.
Folha - Esse "partido dentro do
partido", como o sr. define, ampliou a hostilidade a José Dirceu?
Ricci - As campanhas de 1994 e
1998 começam a estremecer as relações do PT com a base social.
Nos movimentos mais organizados, os militantes começavam a
estranhar as mudanças internas
do PT. Mas havia tolerância.
Folha - E nas eleições seguintes?
Ricci - A campanha de 2002 foi
totalmente desfigurada, o que é
acentuado em 2004. Até então, o
PT não fazia campanha de rua
contratando cabo eleitoral. O PT,
na gestão de José Genoino, criou
uma estrutura moderna de informação e comunicação com todos
os diretórios municipais. O PT virou um partido-empresa.
Folha - Qual o efeito dessa opção?
Ricci - O partido perdeu a sua característica política, ideológica.
Construiu um discurso eleitoral
leviano, sem se aprofundar em
nenhum aspecto muito polêmico.
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