São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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ORIGENS DA CRISE

PT virou "partido-empresa", diz sociólogo

FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL

A promiscuidade da direção do Partido dos Trabalhadores com interesses privados -simbolizada no Land Rover recebida de uma empresa pelo secretário-geral Silvio Pereira- tem origem no início dos anos 90, num processo acelerado de burocratização e centralização de decisões, "espécie de stalinização do PT" promovida pelo ex-ministro José Dirceu, afirma o sociólogo Rudá Ricci, 42.
Ricci elaborou o programa de política agrária na campanha de Lula, em 1989, e coordenou a campanha do ex-deputado petista Plínio de Arruda Sampaio ao governo de São Paulo, em 1990. Deixou o PT há doze anos. "Era evidente para todo o mundo que havia foco nas eleições e que o partido acabava necessitando de muitos recursos. Mas mesmo quem sabia disso se surpreende com o grau de desconstituição da base moral", diz.
Ele responsabiliza Dirceu por ter promovido uma "politização acelerada" dos diretórios, excluído dirigentes não-afinados com sua linha e transformado o PT num "partido-empresa", mais voltado para ganhar eleições.
Esse modelo previa "um corpo de captação de recursos financeiros, com grande autonomia e próximo das conveniências privadas que demonstram interesse em financiar o partido".
Professor da PUC de Minas, Ricci optou por ser consultor e assessor de ONGs e pastorais sociais. "Não somos iguais às pessoas que operaram desse jeito com a política brasileira", diz.

Folha - A contaminação do PT pelo "mensalão" e pelas malas de dinheiro já era previsível anos atrás?
Rudá Ricci -
Nesse grau, no nível em que está sendo exposto agora, não. Mas a origem já era previsível por muitos militantes, lideranças de movimentos sociais que criticavam a direção nacional.

Folha - Quais eram os sinais de que a burocracia do partido poderia se comprometer com grandes contribuições privadas?
Ricci -
Esses sinais eram muitos evidentes a partir de 1990, e isso ficou muito claro em 1994. A burocratização estava afastando a base social do PT, a militância.

Folha - O que ocorreu?
Ricci -
Os intelectuais do partido perderam qualquer expressão política. O partido foi se tornando cada vez mais pragmático. Ou, no jargão da esquerda, voltado apenas para a ação tática. Qualquer pensamento mais estratégico, como o desenvolvimento do país, foi ficando subordinado aos acordos políticos momentâneos.

Folha - Como foi essa mudança?
Ricci -
Quando José Dirceu assumiu a secretaria de organização do diretório estadual de São Paulo, nos anos 80, montou uma equipe básica a seu redor e fundou diversos diretórios municipais no interior de São Paulo, na região oeste, mais despolitizada. Na região metropolitana, no ABC e no litoral paulista havia oposição ao nome de José Dirceu.

Folha - Por que Dirceu era questionado dentro do partido?
Ricci -
Ele começou estruturando o partido nos diretórios municipais com militantes muito jovens. Lembro-me do Rogério Buratti [ex-secretário de Governo na gestão do prefeito Antonio Palocci Filho, em Ribeirão Preto, é investigado na CPI dos Bingos]. Naquele período, era um homem importante na estrutura montada por José Dirceu. Ele tentou fazer uma politização acelerada dos diretórios, depois espraiada para as principais bases e direções estaduais executivas do PT. Forçava a exclusão de correntes que não se vinculavam à sua.

Folha - E no movimento sindical?
Ricci -
Na estrutura sindical, que não tinha uma ligação tão direta com Dirceu, também houve uma acelerada burocratização e o controle político da máquina por três grandes nomes: Delúbio Soares, tesoureiro da CUT na época, Gilmar Carneiro, que era o secretário-geral, e Jorge Lorenzetti, secretário nacional de formação. Esse tripé montou uma estrutura de extremo controle interno. Obviamente, movimentava muitos recursos financeiros, inclusive de financiamentos feitos por outras centrais sindicais internacionais.

Folha - Quais eram os papéis de Carneiro e de Lorenzetti?
Ricci -
Gilmar Carneiro criou uma estrutura de controle que buscava identificar quem era quem entre os afiliados do PT.

Folha - Ele aparecia nos esquemas de financiamento?
Ricci -
Não. Mas o orçamento do sindicato dos bancários de São Paulo [que Carneiro presidiu] correspondia ao orçamento de todos os municípios baianos, com exceção de Salvador.

Folha - E Lorenzetti?
Ricci -
É de Santa Catarina. Extremamente bem-preparado, tinha muitos contatos internacionais. Tinha bom trânsito com Dirceu, o que era raro na CUT. Fazia a ponte com as organizações internacionais sindicais e os partidos social-democráticos que financiavam os programas de formação da CUT.

Folha - Isso acontecia apenas em épocas de eleições?
Ricci -
Não, de maneira alguma. Havia o tempo inteiro entradas através do sistema de formação sindical. O que, aliás, envolve quase todas as centrais sindicais.

Folha - Quais foram os efeitos dessa burocratização?
Ricci -
Afastou o partido e a central sindical de suas bases sociais. O partido se dirigiu prioritariamente para o processo eleitoral. O PT se afastou de estratégias mais globais, mais de longo prazo.

Folha - Como isso se refletiu nas campanhas eleitorais?
Ricci -
Em 1989, dez dias antes da eleição, as pesquisas davam Lula como eleito. Pela primeira vez, essa nova esquerda percebe que dá para ganhar as eleições.
Era o momento de se estruturar uma campanha de massa que quebrasse aquele patamar de 30% dos votos, a base eleitoral do PT nos grandes centros metropolitanos. Se ampliavam os acordos, as negociações com outros partidos.
Na área sindical, em 1993, 1994, houve a filiação da CUT à Ciols (Confederação Internacional das Organizações dos Sindicatos Livres). Havia uma disputa com a Força Sindical. A CUT precisava filiar o máximo de confederações e sindicatos. Esses dois interesses se unem: eleger Lula e fortalecer a CUT.

Folha - O que esses dois processos têm a ver com as denúncias atuais?
Ricci -
É a partir de 1994 que essa estrutura fica mais elaborada, ganha um corpo nacional. A surpresa que a militância está tendo hoje, com as denúncias, ocorre porque o partido e a CUT vinham num processo muito acelerado de centralização, de controle, de tentativas de expurgos e intimidação de qualquer oposição interna e distanciamento de sua base social.

Folha - Já havia uma máquina para a captação de recursos privados?
Ricci -
Essa máquina política voltada para a eleição já está totalmente estruturada entre 1994 e 1998. E tem que se alimentar. Técnicos em elaboração de políticas públicas passam a ficar subordinados à direção de marketing de campanha. O PT se volta absolutamente para as eleições.

Folha - Nessa época, o Delúbio Soares já era uma figura atuante como operador de recursos?
Ricci -
Delúbio Soares é conhecido como o homem do dinheiro na CUT em toda a década de 90.

Folha - Esse "partido dentro do partido", como o sr. define, ampliou a hostilidade a José Dirceu?
Ricci -
As campanhas de 1994 e 1998 começam a estremecer as relações do PT com a base social. Nos movimentos mais organizados, os militantes começavam a estranhar as mudanças internas do PT. Mas havia tolerância.

Folha - E nas eleições seguintes?
Ricci -
A campanha de 2002 foi totalmente desfigurada, o que é acentuado em 2004. Até então, o PT não fazia campanha de rua contratando cabo eleitoral. O PT, na gestão de José Genoino, criou uma estrutura moderna de informação e comunicação com todos os diretórios municipais. O PT virou um partido-empresa.

Folha - Qual o efeito dessa opção?
Ricci -
O partido perdeu a sua característica política, ideológica. Construiu um discurso eleitoral leviano, sem se aprofundar em nenhum aspecto muito polêmico.


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