São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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JANIO DE FREITAS

Quem manda no mandato


Eleitos não representam quem os elegeu; partidos não representam nem a sua própria vontade

O TRÂNSITO libertino e recompensado de deputados, para lá e para cá, de um partido para outro, tem algo do velho "trottoir", sugere mesmo um meretrício político. É causa de muitos dos males da política e dos governos no Brasil, mas, antes de causa, é efeito de outros males. Entre os primeiros deles, o sistema político minado por deformações e brechas na legislação dirigida às eleições, aos partidos, ao exercício dos mandatos e ao funcionamento da Câmara e do Senado. Por isso, e por mais motivos, a proibição de mudança de partido não terá o efeito moralizante que lhe é atribuído, e nem é certo que dure.
Indicador claro, na Câmara já existe projeto para proteção legal às transferências feitas até 30 de setembro, e não até o 27 de março fixado pelo Supremo Tribunal Federal. Além disso, não são previsíveis dificuldades para projetos de lei que dêem autorização explícita a mudanças de partido, exceto nos já demarcados períodos pré-eleitorais. Primeiro, por dispensar emenda constitucional, já que a Constituição deixa em aberto a transferência de partido, não a incluindo entre os vários motivos para perda do mandato, como decidiram o Tribunal Superior Eleitoral (naquele 27 de março) e, agora, o STF. E ainda porque as transferências convêm ao governo, que é o seu maior patrocinador: assim aumenta o número de parlamentares subordinados.
Aí está, por sinal, a razão básica da repulsa, mais ética e moral do que política, provocada pelo chamado troca-troca. A transferência não é reprovável por si mesma. O sistema legislativo brasileiro tomou como base o dos Estados Unidos, no qual ainda há pouco um senador importante mudou de partido. Com a proibição decidida pelo STF, sob a forma de perda e devolução do mandato ao partido, pelo deputado que se tenha transferido ou tente transferir-se sem motivo grave comprovado na Justiça, o Brasil se torna (até onde pude verificar) o único país a estabelecer tal proibição sob regime de democracia política.
Não foi (só?) pelo gosto de ouvir a própria voz que os ministros do STF ocuparam-se por quase 14 horas, em dois dias, e falaram em média 1h10 cada, para enfim chegar ao seu voto. O que julgavam eram mandados de segurança (dos emagrecidos PSDB, PPS e DEM), decisões, em geral, sem maior demora, por se tratar de reconhecer ou negar a recusa, por determinada autoridade, de algum "direito líquido e certo". O STF precisou, porém, de exaustivas elaborações especulativas para construir uma via, embora sinuosa e com trechos pedregosos, de tecnicidades e racionalidades até a proibição desejada pela maioria dos ministros.
O jornalismo caminha no chão. E, como agravante, a mim falta altura para alcançar o teor propriamente jurídico e filosófico dos pronunciamentos nas duas sessões do STF. Não foi isso, no entanto, que a mim e a outros impediu de reconhecer, nas exposições de quase todos os ministros, os partidos, os políticos, o eleitor -a vida política do Brasil- tal como os conheço. Pareciam falar de partidos idealmente, como se fossem associações centradas em idéias e práticas a serviço do interesse nacional e do bem-estar social, isto é, do desejado pelo eleitor. Não apareceu a realidade dos partidos brasileiros, que não têm nem querem ter representatividade, porque se constituem como sociedades de interesses eleitorais e, para grande número dos sócios, sobretudo materiais. Em nossa realidade, se os eleitos não representam a vontade de quem os elegeu, os partidos não representam nem o que seria sua própria vontade, expressa nos estatutos, quanto mais a do eleitor.
Lembrada, relembrada e homenageada mais de uma vez, esta conceituação reflete bem o problema a que me refiro: "Quando vota, o eleitor vota primeiro no partido, e não no candidato". Foi dita pelo então senador Paulo Brossard. Era verdadeira, de uma verdade até óbvia, à época de sua formulação, quando o voto foi, antes de tudo, pela democracia e por isso no MDB depois PMDB, ou a favor da ditadura, logo, na Arena depois PDS. Trazida do seu cenário histórico, como foi, para a atualidade dos partidos e dos eleitores, o conceito não tem mais o sentido que lhe foi atribuído, influente na decisão.
Mal começam a discussão e os efeitos práticos do decidido pelo STF. Na sacudidela que provoca já se vê um mérito. Mas o necessário, mesmo, é que viesse forçar reformas capaz de levar os partidos e seus programas; a Câmara, o Senado e sua dívida de decência e trabalho; os eleitores e suas inúteis aspirações, todos aos papéis que lhes cabem, de fato. E isso não está à vista.


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