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JANIO DE FREITAS
Quem manda no mandato
Eleitos não representam quem os elegeu; partidos não representam nem a sua própria vontade
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O TRÂNSITO libertino e
recompensado de deputados, para lá e para
cá, de um partido para outro,
tem algo do velho "trottoir",
sugere mesmo um meretrício
político. É causa de muitos
dos males da política e dos governos no Brasil, mas, antes
de causa, é efeito de outros
males. Entre os primeiros deles, o sistema político minado
por deformações e brechas na
legislação dirigida às eleições,
aos partidos, ao exercício dos
mandatos e ao funcionamento da Câmara e do Senado.
Por isso, e por mais motivos, a
proibição de mudança de partido não terá o efeito moralizante que lhe é atribuído, e
nem é certo que dure.
Indicador claro, na Câmara
já existe projeto para proteção legal às transferências feitas até 30 de setembro, e não
até o 27 de março fixado pelo
Supremo Tribunal Federal.
Além disso, não são previsíveis dificuldades para projetos de lei que dêem autorização explícita a mudanças de
partido, exceto nos já demarcados períodos pré-eleitorais.
Primeiro, por dispensar
emenda constitucional, já
que a Constituição deixa em
aberto a transferência de partido, não a incluindo entre os
vários motivos para perda do
mandato, como decidiram o
Tribunal Superior Eleitoral
(naquele 27 de março) e, agora, o STF. E ainda porque as
transferências convêm ao governo, que é o seu maior patrocinador: assim aumenta o
número de parlamentares subordinados.
Aí está, por sinal, a razão básica da repulsa, mais ética e
moral do que política, provocada pelo chamado troca-troca. A transferência não é reprovável por si mesma. O sistema legislativo brasileiro tomou como base o dos Estados
Unidos, no qual ainda há pouco um senador importante
mudou de partido. Com a
proibição decidida pelo STF,
sob a forma de perda e devolução do mandato ao partido,
pelo deputado que se tenha
transferido ou tente transferir-se sem motivo grave comprovado na Justiça, o Brasil se
torna (até onde pude verificar) o único país a estabelecer
tal proibição sob regime de
democracia política.
Não foi (só?) pelo gosto de
ouvir a própria voz que os ministros do STF ocuparam-se
por quase 14 horas, em dois
dias, e falaram em média 1h10
cada, para enfim chegar ao
seu voto. O que julgavam
eram mandados de segurança
(dos emagrecidos PSDB, PPS
e DEM), decisões, em geral,
sem maior demora, por se
tratar de reconhecer ou negar
a recusa, por determinada autoridade, de algum "direito líquido e certo". O STF precisou, porém, de exaustivas elaborações especulativas para
construir uma via, embora sinuosa e com trechos pedregosos, de tecnicidades e racionalidades até a proibição desejada pela maioria dos ministros.
O jornalismo caminha no
chão. E, como agravante, a
mim falta altura para alcançar o teor propriamente jurídico e filosófico dos pronunciamentos nas duas sessões
do STF. Não foi isso, no entanto, que a mim e a outros
impediu de reconhecer, nas
exposições de quase todos os
ministros, os partidos, os políticos, o eleitor -a vida política do Brasil- tal como os conheço. Pareciam falar de partidos idealmente, como se
fossem associações centradas
em idéias e práticas a serviço
do interesse nacional e do
bem-estar social, isto é, do desejado pelo eleitor. Não apareceu a realidade dos partidos
brasileiros, que não têm nem
querem ter representatividade, porque se constituem como sociedades de interesses
eleitorais e, para grande número dos sócios, sobretudo
materiais. Em nossa realidade, se os eleitos não representam a vontade de quem os elegeu, os partidos não representam nem o que seria sua
própria vontade, expressa
nos estatutos, quanto mais a
do eleitor.
Lembrada, relembrada e
homenageada mais de uma
vez, esta conceituação reflete
bem o problema a que me refiro: "Quando vota, o eleitor
vota primeiro no partido, e
não no candidato". Foi dita
pelo então senador Paulo
Brossard. Era verdadeira, de
uma verdade até óbvia, à época de sua formulação, quando
o voto foi, antes de tudo, pela
democracia e por isso no
MDB depois PMDB, ou a
favor da ditadura, logo, na
Arena depois PDS. Trazida
do seu cenário histórico, como foi, para a atualidade dos
partidos e dos eleitores, o
conceito não tem mais o sentido que lhe foi atribuído, influente na decisão.
Mal começam a discussão e
os efeitos práticos do decidido pelo STF. Na sacudidela
que provoca já se vê um mérito. Mas o necessário, mesmo,
é que viesse forçar reformas
capaz de levar os partidos e
seus programas; a Câmara, o
Senado e sua dívida de decência e trabalho; os eleitores e
suas inúteis aspirações, todos
aos papéis que lhes cabem, de
fato. E isso não está à vista.
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