São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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DO SION AO PLANALTO

Lançado em 10 de fevereiro de 1980, partido mudou discurso, virou grife e perdeu companheiros ao chegar ao poder central

PT, 24, troca ícones por elite pragmática

ROGÉRIO GENTILE
EDITOR-ADJUNTO DE BRASIL

JOSÉ ALBERTO BOMBIG
VIRGILIO ABRANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Domingo, 10 de fevereiro de 1980, auditório do tradicional Colégio Sion, em São Paulo. Nascia ali o PT de Luiz Inácio Lula da Silva, na época presidente apenas do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
Vinte e quatro anos depois, daquele PT que se apresentava como representante dos "explorados pelo sistema capitalista" em seu manifesto de fundação, pouca coisa sobrou. O Partido dos Trabalhadores aparou a barba, incorporou ao seu discurso palavras de ordem como "contingenciamento" e "ajuste fiscal" e substituiu boa parte de seus ícones.
Dos 19 membros da primeira Comissão Executiva Nacional do PT, formada um ano após o ato de lançamento da sigla, no Sion, apenas dois integram o primeiro escalão do governo Lula, além do próprio presidente da República: Olívio Dutra (ministro das Cidades), que por muito pouco não perdeu o cargo na reforma ministerial de janeiro, e Luiz Dulci (secretário-geral da Presidência).
Figuras que estiveram na origem do partido ou desempenharam papéis importantes na sua história ficaram pelo caminho, por vontade própria ou pressionadas pelas circunstâncias.
Casos como os dos sindicalistas Jacó Bittar e José Cicote, dos sociólogos Chico de Oliveira e Francisco Weffort, do advogado Airton Soares, da ex-prefeita Luiza Erundina, do ex-deputado federal Eduardo Jorge e da atriz Bete Mendes, entre tantos outros.
Dentre os que permaneceram, há os escanteados da nova ordem petista, como os economistas Plínio de Arruda Sampaio e Maria da Conceição Tavares e o antropólogo Luiz Eduardo Soares. E os "recém-marginalizados" Cristovam Buarque, José Graziano e Benedita da Silva. Durante muitos anos tidos e apregoados pelo PT como referências em suas áreas de atuação, hoje são apenas ex-ministros de Lula.
A sigla -que por orientação do publicitário Duda Mendonça estampa e negocia gargantilha banhada a ouro e seguro de automóvel em sua lojinha virtual- é comandada por um núcleo reduzido, que, com algumas notórias exceções, na época da fundação, tinha uma importância apenas relativa no partido ou nem mesmo o integrava.
O "superministro" José Dirceu (Casa Civil), por exemplo, acabara de voltar da clandestinidade, beneficiado pela anistia. Na ata de regulamentação do partido, assinada por cem pessoas no dia 1º de junho de 1980, identificou-se apenas como "estudante". Sua ascensão no partido foi precedida por uma longa passagem como assessor parlamentar da Assembléia Legislativa de São Paulo, entre 1981 e 1986.
Na época da fundação do PT, o outro homem forte da gestão Lula, Antonio Palocci Filho (Fazenda), ainda militava na organização de esquerda Libelu, que, aliás, se opunha à criação do partido. Palocci entrou no PT em 1981, levado por sua mãe, Antonia. Elegeu-se em 1989 para a Câmara de Ribeirão Preto e só entrou no núcleo dirigente do PT, de fato, em 2002, quando foi convidado por Lula para a coordenação do programa de governo de sua campanha, substituindo o prefeito de Santo André, Celso Daniel, assassinado em janeiro daquele ano.
Membro da nova elite petista, Palocci é o paladino de um novo discurso na área econômica. Em 1981, manifesto aprovado pela legenda dizia: "O PT apóia efetivamente [...] as lutas dos movimentos populares contra a política recessiva do regime e sua manifestação mais sentida pelos trabalhadores: o desemprego".
Em 2003, sob uma política fiscal apertada, o Brasil de Lula, Dirceu e Palocci cresceu 0,4% (estimativa extra-oficial) e o desemprego atingiu 20%, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estudos Sócio-Econômicos).
Na opinião do cientista político David Fleischer, da UnB (Universidade de Brasília), "a nova elite do PT não foi recrutada pela ideologia". Segundo ele, o que mais contou na ascensão dentro da sigla foi o pragmatismo. "Os nomes que eram referências do PT não estavam preparados para atuar da maneira pragmática como o poder exige. Por isso, foram se afastando", afirma o cientista político.
O deputado federal Devanir Ribeiro (PT-SP), amigo de Lula e um dos poucos sindicalistas que fundaram o partido e hoje se mantêm no círculo do poder, defende as transformações pelas quais a legenda passou.
"Abrimos a nossa cabeça, temos os mesmos ideais, mas aprendemos muito com as mudanças do mundo."
José Genoino (SP), atual presidente nacional do partido, costuma referir-se à nova fase com uma frase de efeito: "O PT mudou, mas não mudou de lado".
O ex-deputado Eduardo Jorge e o sociólogo Chico de Oliveira possuem outra opinião: "Acho que o PT foi, é e será nos próximos anos um importante partido político para o bem e para o mal do Brasil. Porém, ao contrário de tempos anteriores, quando era permeável à luta de idéias, hoje é controlado pelo poder econômico, de origem capitalista, sindical ou de máquinas administrativas. O holerite está destruindo a utopia, está derrotando a esperança", afirmou Jorge na sua carta de despedida da legenda, no ano passado.
"Na direção do PT há membros absolutamente pragmáticos. As pessoas que eles consideram que têm pensamentos utópicos acabam sendo afastadas. O Tarso Genro [novo ministro da Educação de Lula], por exemplo, disse uma vez que eu era "quase metafísico'", afirma Oliveira.
O projeto de poder do PT ficou explícito em seu documento de registro na Justiça, lá em 1980: "O PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado". Segundo Fleischer, foi justamente essa meta que fez crescer o pragmatismo na legenda, com alianças ao centro e à direita, como o PL e o PTB e até mesmo setores do PFL.
"O partido tem um projeto de poder. O pragmatismo permite certas alianças e posturas que possibilitam o aumento da base partidária em todo o país."
Os números reforçam a tese. Em 1980, o PT tinha 26.154 filiados. Hoje, tem 596.336 e administra 201 cidades e quatro Estados. Nas eleições municipais deste ano, pretende pelo menos triplicar o número de municípios. Sinal de que o projeto de poder ainda não foi concluído.


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