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Ex-presos dizem que Ustra chefiou ação com tortura na BA
Segundo militantes do PCB, tidos como pacíficos pelo governo, coronel reformado do Exército liderou Operação Acarajé, em 75
Documentos sigilosos do antigo SNI contabilizam 42 prisões na operação e 14 condenados em 1ª instância; Ustra nega as acusações
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A SALVADOR
No seu livro "Rompendo o Silêncio" (Editerra Editorial,
1987), o hoje coronel reformado do Exército Carlos Alberto
Brilhante Ustra, 76, escreveu:
"Nossos acusadores reclamam
com frequência de nossos interrogatórios. Alegam que presos inocentes eram mantidos
horas sob tensão, sem dormir,
sendo interrogados".
Segue: "Reclamam, também,
de nossas "invasões de lares",
sem mandados judiciais. É necessário explicar, porém, que
não se consegue combater o
terrorismo amparado nas leis
normais, eficientes para um cidadão comum. Os terroristas
não eram cidadãos comuns".
Ustra é associado -por partidários seus e por detratores-
ao combate às organizações armadas de oposição à ditadura.
Agora, ex-presos políticos da
Bahia o acusam de participação
em um episódio no qual eles relatam invasão de lares, interrogatórios com espancamento e
sessões de tortura com choque.
O chefe da operação, afirmam,
foi Ustra, que teria usado o codinome "doutor Luiz Antônio".
Acontece que nenhum dos
presos na ação denominada
Operação Acarajé era ligado à
então já exterminada guerrilha
-na expressão adotada por Ustra, ao terrorismo.
Eram militantes e simpatizantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro), também oposicionista e de esquerda, mas
avesso ao emprego de armas e
violência contra o regime militar -como o próprio governo
da época reconhecia.
Documentos sigilosos do antigo SNI (Serviço Nacional de
Informações), hoje sob guarda
do Arquivo Nacional, contabilizam 42 prisões -inclusive um
vereador do MDB- na Operação Acarajé e 14 condenados
em primeira instância. Alguns
passaram quase dois anos na
cadeia pelo crime de reorganizar um partido proscrito.
As diligências ficaram a cargo
do DOI-Codi (Destacamento
de Operações de Informações
-Centro de Operações de Defesa Interna) da 6ª Região Militar. Na época, conclui-se pelo
cruzamento de dados dos dois
livros de Ustra (o outro é "A
Verdade Sufocada", Editora
Ser, 2007), o oficial chefiava a
Seção de Operações do CIE
(Centro de Informações do
Exército). Cumpria missões
também fora da base, Brasília.
De setembro de 1970 a janeiro de 1974, ele comandou o
DOI-Codi do 2º Exército, em
São Paulo. Era conhecido como
"Tibiriçá". No período, ao menos 40 pessoas foram mortas
naquele local, conforme o jornalista Elio Gaspari no livro "A
Ditadura Encurralada" (Companhia das Letras, 2004).
No ano passado, a Justiça
paulista declarou Ustra, em decisão de primeira instância,
responsável por tortura e sequestro em 1972 e 1973. A ação
que originou a sentença é declaratória -não implica pena
ou indenização. Ustra nega as
acusações e afirma que nunca
torturou. Ele apelou ao Tribunal de Justiça.
"Cara de Silvio Santos"
Os detidos de 1975 contam
que foram levados por homens
que se apresentaram como policiais, algemaram-nos e os encapuzaram. Deram em um lugar que os militantes pensam
ficar em Alagoinhas, a cerca de
120 km de Salvador.
O engenheiro Luiz Contreras, 85, teve uma costela partida pelo que ele narra ter sido
um soco. Contreras diz que os
torturadores prendiam fios elétricos nas suas orelhas, nos pés
e no peito. "Quando gira a manivela dá uma descarga que parece que você vai desaparecer."
O operário petroquímico José Ivan Dias Pugliese, 58, lembra de ter levado choques duas
vezes e de ter sido espancado.
Seu então cunhado Carlos
Augusto Marighella, 60, também trabalhador da indústria
petroquímica, diz que os militares jogavam água no chão para "potencializar os choques".
Filho do líder guerrilheiro
Carlos Marighella (1911-1969),
o hoje advogado Carlos Augusto permaneceu no PCB, sem
aderir à luta armada.
Maria Nazaré de Lima, 58,
era dirigente estudantil. Presa
com a filha de um ano, ela ficou
dias sem ver a menina, depois
entregue a parentes. Nazaré recorda que os detidos, entre os
quais seu marido, foram amarrados a uma corda única, feito
caranguejos. "Se um ia defecar,
todos iam. Era humilhante."
Os presos entrevistados pela
Folha, separadamente, dizem
que estavam de capuz durante
a tortura, mas julgam não terem sido agredidos pelo "doutor Luiz Antônio". Sustentam,
contudo, que ele dava os ordens
mais importantes e chegava a
decidir o momento em que cada um seria torturado.
Eles associaram o "doutor
Luiz Antônio" a Ustra em 1985,
quando o coronel foi apontado
pela então deputada Bete Mendes como sendo o "Tibiriçá" do
DOI-Codi. O ex-presos contam
ter visto o rosto do captor nos
momentos em que lhes permitiram tirar os capuzes.
Afirmam que nunca organizaram uma denúncia coletiva
pública, entre outros motivos,
porque em 1985 estavam politicamente distantes.
"Todo mundo o reconheceu
em 1985", diz Pugliese. "Antes
eu não tinha nenhuma informação para ligar o nome à pessoa. Na época, Ustra era parecidíssimo com o Silvio Santos.
Ele se apresentou pela primeira vez oferecendo cigarro e conhaque. Disse: "Nós podemos
tratar as coisas civilizadamente
ou como na Idade da Pedra"."
"Era o Ustra", concorda Contreras. Marighella acrescenta:
"Ele tem um rosto marcante e
sotaque sulista". "Uma vez falou: "Quero dizer para vocês
que o presidente Geisel virou a
mesa. Nesse momento, em todo o Brasil, todos os corruptos e
comunistas foram presos. Essa
será a noite de São Bartolomeu". É como se fosse a ordem
do dia. A gente imaginou que
fosse uma noite de tortura, sevícias, por aí afora."
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