São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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NO PLANALTO

Reestatiza-se sob Lula o que FHC fingiu privatizar

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

O poeta Mário Quintana dizia que "a mentira é uma verdade que esqueceu de acontecer". O raciocínio vale para certas privatizações da era FHC. São desestatizações que esqueceram de acontecer.
Uma das mentiras do tucanato foi esmiuçada nas páginas de um processo que está na bica de ser julgado pelo TCU. Lendo-se o calhamaço descobre-se o seguinte: a Eletropaulo, "vendida" em 1998 graças a um empréstimo de US$ 1,2 bilhão do BNDE$, voltou ao colo quentinho do Estado.
De credor de um empréstimo, o BNDES virou sócio de uma encrenca. Sob o breu que recobre a transação, o governo federal meteu-se no comércio de luz.
O bancão oficial já detém 53,85% do capital da firma que controla a Eletropaulo. E guarda consigo debêntures que lhe permitem assumir o controle integral da empresa.
Representantes do BNDES ocupam metade dos assentos do conselho fiscal da pseudoprivatizada. Comparecem às assembléias; palpitam nas transações comerciais; acompanham o desempenho contábil da companhia.
Auditores do tribunal de contas farejaram "irregularidades" no negócio. O ministro que relata o caso, Augusto Sherman, deu-lhes razão. A despeito disso, os responsáveis pelo malfeito devem sair ilesos.
As contas do BNDES de 1998, época do desastre, já haviam sido aprovadas pelo TCU. Só um pedido da representação do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas poderia reabrir a análise da escrituração daquele ano.
Porém, em parecer redigido há 27 dias, o procurador Lucas Figueiredo anotou: embora pareça estranho "colocar recursos nacionais à disposição de grupos estrangeiros para a privatização", a ação do BNDES não "transgrediu a lei". Vai abaixo um resumo da barafunda:
1) em 1997, sob FHC, o BNDES criou o Pepe (Programa de Estímulo à Privatização Estadual). Previa a abertura das arcas públicas aos "compradores" de estatais estaduais;
2) o BNDES emprestou, em 1998, US$ 1,2 bilhão à Lightgás Ltda.. Acomodavam-se embaixo do logotipo, entre outras empresas, a francesa EDF (Electricité de France) e a norte-americana AES Corporation;
3) a gaita da viúva viabilizou a "compra" da Eletropaulo. O empréstimo foi liberado a toque de caixa. Atropelaram-se normas internas do BNDES. Deixou-se de avaliar, por exemplo, a capacidade econômica dos beneficiários;
4) o empréstimo foi atrelado à variação do dólar. O BNDES aceitou como "garantia" ações da empresa "privatizada". Estavam cotadas à época em 197% do valor do empréstimo. Parecia suficiente. Em 1999, porém, sobreveio a desvalorização do real. A coisa desandou;
5) os "compradores" da Eletropaulo puseram a língua de fora já no vencimento das primeiras prestações. O BNDES teve de dilatar de 12 para 36 meses os prazos de carência da dívida;
6) em 2001, a francesa EDF pulou fora do negócio. A norte-americana AES passou a reinar absoluta. O BNDES voltou a financiar a multinacional. Entregou-lhe ações preferenciais da Eletropaulo, no valor de R$ 2,05 bilhões;
7) em fevereiro de 2003, no alvorecer da gestão Lula, a multinacional deu o beiço no BNDES. Informou que não tinha dinheiro para honrar as prestações vencidas (US$ 415 milhões). Restava ao governo executar judicialmente as "garantias";
8) os técnicos do BNDES foram à calculadora. Verificaram que o lote de ações que o governo recebera em "garantia" convertera-se em mico. Valia, então, 25% do total da dívida. Estava feita a lambança;
9) no primeiro trimestre de 2003, o BNDES lançou em seu balanço um prejuízo de notáveis R$ 2,4 bilhões. Em vez de recorrer à Justiça, foi à mesa de negociação;
10) firmou-se em setembro de 2003 um memorando de entendimento. Continuava intacta a dívida de US$ 1,2 bilhão (R$ 3,7 bilhões à época). Criou-se uma nova empresa, a Brasiliana;
11) o "crédito" virou participação societária. Uma parcela (US$ 600 milhões, ou R$ 1,7 bilhão) foi convertida em ações entregues ao BNDES. Informou-se na época que o bancão deteria 50% menos uma ação da nova empresa. Lorota. O percentual verdadeiro era 53,83%;
12) outro naco da dívida (US$ 510 milhões, ou R$ 1,5 bilhão) virou debênture, que o BNDES pode converter em ações caso perdure o calote. Para dourar o infortúnio do erário, a AES desembolsou uma mixaria: US$ 90 milhões (R$ 260 milhões à época);
13) ingressando no ramo da energia elétrica, o BNDES pôde fingir-se de vitorioso. O que seria escriturado como prejuízo (R$ 2,4 bilhões) foi transformado em lucro de R$ 1,038 bilhão no balanço de 2003. Um "lucro" para ser lido assim, entre aspas;
14) o caso da Eletropaulo não é único. Longe disso. O governo acaba de decidir que usará a mesma mágica para "capitalizar" a Brasil Ferrovias, que deve ao BNDES algo como R$ 1,6 bilhão;
15) a empresa arrematara parte dos trilhos que, sob FHC, a Rede Ferroviária Federal levou ao martelo. Receberá mais dinheiro público e será brindada com a conversão da dívida em ações a serem entregues ao BNDES. O bancão controlará quase 50% do "privatizado" negócio ferroviário;
16) ao tempo em que leiloou o patrimônio da viúva, o grão-tucanato propalou uma lorota: repassando negócios públicos à iniciativa privada, o governo poderia, enfim, concentrar-se nos investimentos sociais;
17) sob Lula, autoconvertido em gestor do terceiro mandato de FHC, o empreendimento social continua submetido ao desvario econômico. E a privatização, devagarinho, vai se convertendo em estatização do risco, ante-sala da socialização do prejuízo;
18) escrito de outro modo: certas privatizações viraram uma espécie de luta de boxe a três. De um lado, o BNDES. Do outro, os compradores de estatais. No centro, o contribuinte, que entra com a cara.
19) como sempre, a incompetência na gestão dos negócios públicos só dói no seu bolso, caro leitor.


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