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NO PLANALTO
Reestatiza-se sob Lula o que FHC fingiu privatizar
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
O poeta Mário Quintana
dizia que "a mentira é uma
verdade que esqueceu de acontecer". O raciocínio vale para certas
privatizações da era FHC. São desestatizações que esqueceram de
acontecer.
Uma das mentiras do tucanato
foi esmiuçada nas páginas de um
processo que está na bica de ser
julgado pelo TCU. Lendo-se o calhamaço descobre-se o seguinte:
a Eletropaulo, "vendida" em 1998
graças a um empréstimo de
US$ 1,2 bilhão do BNDE$, voltou
ao colo quentinho do Estado.
De credor de um empréstimo, o
BNDES virou sócio de uma encrenca. Sob o breu que recobre a
transação, o governo federal meteu-se no comércio de luz.
O bancão oficial já detém
53,85% do capital da firma que
controla a Eletropaulo. E guarda
consigo debêntures que lhe permitem assumir o controle integral da empresa.
Representantes do BNDES ocupam metade dos assentos do conselho fiscal da pseudoprivatizada.
Comparecem às assembléias; palpitam nas transações comerciais;
acompanham o desempenho
contábil da companhia.
Auditores do tribunal de contas
farejaram "irregularidades" no
negócio. O ministro que relata o
caso, Augusto Sherman, deu-lhes
razão. A despeito disso, os responsáveis pelo malfeito devem
sair ilesos.
As contas do BNDES de 1998,
época do desastre, já haviam sido
aprovadas pelo TCU. Só um pedido da representação do Ministério Público junto ao Tribunal de
Contas poderia reabrir a análise
da escrituração daquele ano.
Porém, em parecer redigido há
27 dias, o procurador Lucas Figueiredo anotou: embora pareça
estranho "colocar recursos nacionais à disposição de grupos estrangeiros para a privatização", a
ação do BNDES não "transgrediu
a lei". Vai abaixo um resumo da
barafunda:
1) em 1997, sob FHC, o BNDES
criou o Pepe (Programa de Estímulo à Privatização Estadual).
Previa a abertura das arcas públicas aos "compradores" de estatais
estaduais;
2) o BNDES emprestou, em
1998, US$ 1,2 bilhão à Lightgás
Ltda.. Acomodavam-se embaixo
do logotipo, entre outras empresas, a francesa EDF (Electricité de
France) e a norte-americana AES
Corporation;
3) a gaita da viúva viabilizou a
"compra" da Eletropaulo. O empréstimo foi liberado a toque de
caixa. Atropelaram-se normas internas do BNDES. Deixou-se de
avaliar, por exemplo, a capacidade econômica dos beneficiários;
4) o empréstimo foi atrelado à
variação do dólar. O BNDES aceitou como "garantia" ações da
empresa "privatizada". Estavam
cotadas à época em 197% do valor
do empréstimo. Parecia suficiente. Em 1999, porém, sobreveio a
desvalorização do real. A coisa
desandou;
5) os "compradores" da Eletropaulo puseram a língua de fora já
no vencimento das primeiras
prestações. O BNDES teve de dilatar de 12 para 36 meses os prazos de carência da dívida;
6) em 2001, a francesa EDF pulou fora do negócio. A norte-americana AES passou a reinar
absoluta. O BNDES voltou a financiar a multinacional. Entregou-lhe ações preferenciais da
Eletropaulo, no valor de R$ 2,05
bilhões;
7) em fevereiro de 2003, no alvorecer da gestão Lula, a multinacional deu o beiço no BNDES. Informou que não tinha dinheiro
para honrar as prestações vencidas (US$ 415 milhões). Restava ao
governo executar judicialmente
as "garantias";
8) os técnicos do BNDES foram
à calculadora. Verificaram que o
lote de ações que o governo recebera em "garantia" convertera-se
em mico. Valia, então, 25% do total da dívida. Estava feita a lambança;
9) no primeiro trimestre de
2003, o BNDES lançou em seu balanço um prejuízo de notáveis
R$ 2,4 bilhões. Em vez de recorrer
à Justiça, foi à mesa de negociação;
10) firmou-se em setembro de
2003 um memorando de entendimento. Continuava intacta a dívida de US$ 1,2 bilhão (R$ 3,7 bilhões à época). Criou-se uma nova empresa, a Brasiliana;
11) o "crédito" virou participação societária. Uma parcela
(US$ 600 milhões, ou R$ 1,7 bilhão) foi convertida em ações entregues ao BNDES. Informou-se
na época que o bancão deteria
50% menos uma ação da nova
empresa. Lorota. O percentual
verdadeiro era 53,83%;
12) outro naco da dívida
(US$ 510 milhões, ou R$ 1,5 bilhão) virou debênture, que o
BNDES pode converter em ações
caso perdure o calote. Para dourar o infortúnio do erário, a AES
desembolsou uma mixaria: US$
90 milhões (R$ 260 milhões à
época);
13) ingressando no ramo da
energia elétrica, o BNDES pôde
fingir-se de vitorioso. O que seria
escriturado como prejuízo
(R$ 2,4 bilhões) foi transformado
em lucro de R$ 1,038 bilhão no
balanço de 2003. Um "lucro" para
ser lido assim, entre aspas;
14) o caso da Eletropaulo não é
único. Longe disso. O governo
acaba de decidir que usará a mesma mágica para "capitalizar" a
Brasil Ferrovias, que deve ao
BNDES algo como R$ 1,6 bilhão;
15) a empresa arrematara parte
dos trilhos que, sob FHC, a Rede
Ferroviária Federal levou ao martelo. Receberá mais dinheiro público e será brindada com a conversão da dívida em ações a serem
entregues ao BNDES. O bancão
controlará quase 50% do "privatizado" negócio ferroviário;
16) ao tempo em que leiloou o
patrimônio da viúva, o grão-tucanato propalou uma lorota: repassando negócios públicos à iniciativa privada, o governo poderia,
enfim, concentrar-se nos investimentos sociais;
17) sob Lula, autoconvertido em
gestor do terceiro mandato de
FHC, o empreendimento social
continua submetido ao desvario
econômico. E a privatização, devagarinho, vai se convertendo em
estatização do risco, ante-sala da
socialização do prejuízo;
18) escrito de outro modo: certas privatizações viraram uma espécie de luta de boxe a três. De um
lado, o BNDES. Do outro, os compradores de estatais. No centro, o
contribuinte, que entra com a cara.
19) como sempre, a incompetência na gestão dos negócios públicos só dói no seu bolso, caro leitor.
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