São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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ELIO GASPARI

O Conde Haritoff, a rica Nicota e a negra Regina

Morreu no dia 25 de junho, na Santa Casa de Barra do Piraí, Iwann Haritoff. Tinha 92 anos, não deixou centavo e levou consigo o testemunho de um curioso episódio da vulnerabilidade daquilo que se gosta de chamar de elite brasileira e da beleza da vida nesta terra.
Iwann foi filho do conde russo Maurice Haritoff, um dos rapazes dourados da corte de Napoleão 3 em Paris. O conde veio ao Brasil em 1866 acompanhando uma irmã que se casara na aristocracia cafeeira do Vale do Paraíba. No ano seguinte, Maurice Haritoff casou-se com a sobrinha do comendador Joaquim de Souza Breves, que foi o homem mais rico do Brasil de todos os tempos. Juntou 52 fazendas e mais de 5.000 escravos. Haritoff tinha 25 anos e Ana Clara (Nicota), sua mulher, 17. Conversavam em francês.
Quando estourou a Guerra da Criméia, Haritoff alistou-se nas tropas russas. Retornou trazendo para a mulher um magnífico chale para noites de gala. O casal encantou o grão-duque Alexandre em sua passagem pelo Brasil. O palácio em que viviam em Laranjeiras (no terreno onde hoje funciona a escola José de Alencar) foi o salão da imperial granfinagem. Suas portas abriam-se às terças-feiras ("le Mardi de Mme. Haritoff). Vestiam os criados como cossacos.
Maurice e Ana Clara não tiveram filhos. Ela morreu em 1894, aos 44 anos. Viveram aquilo que seria um conto de fadas europeu nos trópicos. A esse conto de fadas seguiu-se a história brasileira, bagunçada e bela. Diz a lenda branca que Nicota morreu de desgosto, obrigada a conviver com o romance de Maurice com uma mucama. Precursora da Nega Fulô do poeta Jorge de Lima, a negra Regina nasceu escrava, em 1867.
Tendo sabido ser rico e conde, Haritoff soube empobrecer como um cavalheiro. Casou-se com Regina em 1906. Nessa época já tinham dois filhos: Boris e Alexis. Boris foi o único mulato pobre da nobreza russa. Existe uma fotografia de Regina com as duas crianças, usando um lindo vestido, provavelmente colhido no espólio de Nicota.
Iwann Haritoff sustentou-se como pequeno comerciante e biscateiro. Como um tio russo, perdia tudo nas cartas. Pouco falava da história de seu pai e chegava a duvidar de que fosse verdadeira. Enterraram-no em cova rasa, por não ter "parentes próximos", apesar de o andar de cima nacional estar cheio de descendentes dos Breves.
Nascido na decadência do café, Iwann viveu o descaso que assombra o patrimônio histórico nacional. A Fazenda do Pinheiro, onde Ana Clara e Maurice Haritoff se conheceram, foi doada (repetindo, doada) ao governo federal. Hoje é vergonhosa ruína. A Universidade Federal Fluminense e o Ministério da Agricultura dividem a irresponsabilidade da destruição da casa-grande e das suas terras, invadidas por baixo por favelados e por cima por condomínios. A igreja da Grama, onde os Breves planejaram descansar em criptas nobiliárquicas, foi saqueada. Levaram o sino, o assoalho e a escada do púlpito. Depois que a polícia varejou-a à procura de um corpo desaparecido (o da ricaça Dana de Teffé) os moradores foram transferidos para o cemitério de Barra do Piraí. A juventude do pedaço transformou a igreja num "point" sobrenatural. Dizem que Joaquim Breves anda por lá à noite, de japona. Há rapazes que se divertem deitando-se no jazigo do comendador.
Os ícones da Santa Rússia e os orixás do Vale do Paraíba imploram ao poeta Afonso Romano de Santana que não abandone a história do conde Haritoff e suas duas mulheres. Explica-se: Ele se interessou pela história e já acumula algumas dezenas de fotografias, cartas e documentos relacionados com a vida de Maurice, Ana Clara e Regina. Ainda não se comprometeu a escrever sobre o assunto. Trata-se de um caso raro de samba-enredo que nasceu pronto.
Enquanto o livro do poeta (ou o samba-enredo) não vem, deve-se ao advogado Aloysio Clemente Breves Beiler um persistente esforço de preservação da memória de sua família, mantendo um excelente sítio na Internet. A história de Haritoff está no seguinte endereço:
http://www.brasil.terravista.pt/magoito/2028/brev-harit2.htm
(O sítio tem muito mais que isso.)

Levy, o loquaz comissário do FMI

O secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, assumiu as funções de comissário do Fundo Monetário Internacional no Brasil. Enquanto a economista Teresa Ter-Minassian representa o FMI (com salário pago pelo Fundo) junto ao governo brasileiro, Levy parece representá-lo (com salário pago pela choldra) dentro do governo.
Levy se encarregou de rebater uma proposta feita em Brasília pelo ministro das Cidades, Olívio Dutra, a uma equipe de técnicos do FMI. Olívio expôs um velho pleito dos governos que vivem sob o protetorado do Fundo. Ele quer que os investimentos em habitação, água e esgoto em áreas pobres não sejam mais contabilizados como endividamento público. O Ministério das Cidades estima que o Brasil precisa de investimentos de R$ 20 bilhões ao longo de 20 anos nas áreas de miséria urbana.
Não se ouviu contradita da turma do FMI que participou da reunião com Olívio. Eles não gostam da proposta, mas foram elegantes.
Levy encarregou-se de detonar um pedaço da idéia, dizendo publicamente que tudo vai depender do retorno que os investimentos em moradias poderão oferecer. Nada mais certo. Em termos de retorno, dez anos de mandarinato da ekipekonômica aqueceram o mercado de Nova York e Miami para brasileiros do andar de cima, enquanto esfriaram o das cidades de Pindorama para a turma do andar de baixo.
Os bons modos e a norma administrativa, recomendam que se esclareça a jurisdição do comissário Levy.
Como secretário do Tesouro, ele não tem autoridade para discutir publicamente uma proposta apresentada por um ministro a uma instituição estrangeira.
O dia em que o presidente do BNDES, Carlos Lessa, puser urucubaca numa proposta do doutor Antonio Palocci ao FMI, o mundo virá abaixo.

Cabral e Suplicy patrulham a história

É demagógica e autoritária a proposta dos senadores Sérgio Cabral e Eduardo Suplicy para que seja cassado o nome de Filinto Müller numa das alas do Senado, casa que ele integrou e presidiu em 1973. Fica a impressão de que os senadores, de 41 e 63 anos só se deram conta agora, com o filme "Olga", que o capitão Filinto foi um monstruoso chefe de polícia durante a ditadura de Getúlio Vargas. Ele ocupou o cargo entre 1933 e 1941.
Olga Benário era a mulher do chefe comunista Luiz Carlos Prestes. Grávida da menina Anita ao ser presa, foi extraditada para a Alemanha em 1936. Ela era judia e comunista. Vargas e seus ministros sabiam que a estavam condenando a morte e, de fato, em 1942, Olga foi para a câmara de gás. Na reunião que decidiu pela extradição de Olga, Filinto teve voz, mas não teve voto. Ele nunca deu a entender que tenha falado contra a sentença de morte.
Se os senadores Cabral e Suplicy estivessem falando sério, proporiam a cassação de todas as avenidas Presidente Vargas espalhadas pelo país.
Para o bem e para o mal, a homenagem que o Senado prestou a Filinto dando o seu nome a uma ala de gabinetes é parte da história da Casa.
Cassar homenagens é coisa de ditaduras. A de 1964 cassou as condecorações do comunista Che Guevara e do general anticomunista Pery Beviláqua. Nenhum dos dois ficou menor por causa disso. Já o marechal Stalin mandava tirar as pessoas do mundo dos vivos, das galerias de mortos e até das fotografias.
Educação política não precisa de cassações. Em Montgomery, no Alabama, cidade onde um boicote dos negros aos ônibus segregados disparou uma nova fase da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, cruzam-se duas avenidas. Uma chama-se Jefferson Davis. Ele foi o presidente da Confederação Sulista que deflagrou e combateu na Guerra Civil em que morreram 650 mil americanos.
A outra avenida chama-se Rosa Parks. Ela é a vendedora negra que foi presa em 1955 porque se recusou a sentar no banco de trás de um ônibus. Começou assim a encrenca que deu ao negro americano os direitos que a nação lhe negava.
O soslaio

De um conhecedor do comissariado petista:
Quando José Dirceu baixa a cabeça, concorda com alguma coisa, e levanta-a olhando para o interlocutor com o canto do olho, às vezes fora da lente dos óculos, é certo: ele não concorda com nada do que foi dito e vai atrás de qualquer eventual combinação, para detoná-la.

Os Çábios

Em novembro passado os doutores Marcos Lisboa, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e Guido Mantega, ministro do Planejamento, eletrizaram os cemitérios com um debate em torno da projeção do crescimento do PIB de 2003.
Faltava um mês para o fim do ano e Mantega estimava um crescimento de 0,8%. Lisboa acreditava em coisa menor: 0,4%. Meses antes ele falava em 1%.
Feitas as contas, houve uma contração de 0,2%.
Agora o ministro Antonio Palocci revelou que "nossa conta, desde o início, variava entre uma queda de 0,3% do PIB e um crescimento de, no máximo, 0,3%".
Sendo assim:
1) Palocci ouviu previsão da Senhora de Fátima e não a passou a Lisboa, muito menos a Mantega.
2) Palocci compartilhou a estimativa com Lisboa e Mantega, mas eles resolveram duvidar do ministro.
3) Palocci, Lisboa e Mantega acreditavam na mesma projeção, mas resolveram não contar o que sabiam à choldra que lhes paga os salários.
Os três poderiam sugerir um consolo ao empresário que acreditou em suas parolas, investiu num negócio e micou na recessão.
Pode-se admitir que os governantes não contem a verdade à escumalha, mas o doutor Palocci exagera quando se orgulha de tê-la deixado no escuro. Se isso fosse pouco, deixa mal seu conselheiro e seu colega de PT Federal.

Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música, Imposto de Renda, recibos e Receita Federal. Ela não entende por que os doleiros não lavam vestidos. Concedeu mais uma de suas bolsas de estudo à doutora Sonia Cabral, chefe do Departamento Técnico da Susep, a Superintendência de Seguros Privados, pelo seguinte trecho numa carta-circular:
"A SUSEP, no exercício de suas atribuições, vem buscando a consolidação e otimização das normas vigentes, produzindo profundas alterações que, quando finalizadas, resultarão, na prática, em um novo arcabouço legal para a atividade securitária".
Natasha acredita que ela quis dizer o seguinte:
"A Susep está trabalhando".

Boas notícias

Os avanços tecnológicos, equipamentos ociosos e o verdadeiro tamanho do mercado brasileiro sacudiram as contas das empresas de telefonia. Entre os seus novos projetos está o lançamento de uma nova tarifa para os Estados Unidos, pouco superior à das chamadas locais. Isso e mais a provável eliminação das assinaturas, que hoje giram em torno de R$ 20 por mês. Outro caminho pode ser o aparecimento de planos nos quais os consumidores pagam a assinaturas, mas levam de graça as ligações locais.
Isso não acontecerá porque os doutores das teles são bonzinhos, mas porque num regime capitalista eles precisam de lucros e, para obter lucros, precisam de consumidores.
Para não fazer nada disso, as teles gostariam que a Anatel lhes repassasse algum dinheiro da Viúva. Nesse caso a choldra ficará na eterna posição do andar de baixo nacional: continuará remunerando os maganos por meio de tarifas altas e, se elas não forem suficientes, a bolsa da Boa Senhora resolve o problema.


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