UOL

São Paulo, segunda-feira, 08 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª

IARA PRADO

Secretária de Ensino Fundamental de FHC vê aparelhamento e falta de rumo na atual gestão do MEC

Para tucana, também na educação PT exige "lado"

RENATA LO PRETE
DA REPORTAGEM LOCAL

A visão que o PT tem do Estado, moldada em organizações de esquerda, explica por que, como disse o ministro da Saúde, é preciso "ter lado" para trabalhar no governo Lula. O diagnóstico vem de Iara Prado, secretária de Ensino Fundamental nos oito anos da gestão FHC e um dos quadros mais qualificados do PSDB na área educacional.
Para ela, também no Ministério da Educação verifica-se apetite descontrolado na ocupação da máquina. "Trocaram até DAS-1", diz, referindo-se à base da hierarquia dos cargos de confiança. "São funcionários que respondem por atividades como protocolo. Não faz sentido trocá-los."
Em seu entender, a profusão de projetos anunciados encobre a falta de um programa coeso para a educação, que tenha como norte a melhoria da qualidade de ensino a partir de mudanças na formação dos professores.
A ex-secretária afirma que o MEC infla o número de analfabetos do país e promete o que não poderá entregar ao criar uma estrutura para erradicar o problema em questão de meses. "Isso não existe. Hoje se sabe que, para alguém ser usuário da escrita, precisa ter, no mínimo, quatro anos de contato com ela."
Na entrevista abaixo, feita em seu apartamento, no bairro paulistano de Pinheiros, Iara Prado critica também os CEUs, peça de resistência da campanha de Marta Suplicy à reeleição, e o apreço petista por uniformes escolares.
 

Folha - O governo é criticado por nomeações, em especial na saúde, que privilegiaram afinidade política em detrimento da qualificação. Ocorreu o mesmo na educação?
Iara Prado -
Fui uma das pessoas a defender que seria um bom momento para o PT ganhar. Para o amadurecimento da democracia, o Brasil precisa formar novos quadros. Mas fiquei surpresa com o que aconteceu no ministério.

Folha - O que aconteceu?
Prado -
A professora Maria José Feres, que me substituiu na Secretaria de Ensino Fundamental, é uma profissional muito capaz. Escolheu boas pessoas para trabalhar com ela. Mas teve de ceder a pressões muito fortes de sindicatos e confederações da área. E as pessoas foram sendo substituídas.
O governo se sustenta com a máquina brasiliense, que é muito boa. Tínhamos funcionários que vinham desde o tempo do Marco Maciel, primeiro ministro depois da ditadura. São quadros competentes, que servem ao governo que entra. E havia uma boa vontade muito grande para com o novo governo, porque a maior parte da máquina era petista.

Folha - Qual foi a extensão das mudanças no ministério?
Prado -
Trocaram até DAS-1. São funcionários que estão lá há anos e respondem por atividades que movem a máquina, como o setor de protocolo. Não faz sentido trocar essas pessoas.

Folha - O PSDB agiu de outra forma ao assumir o governo?
Prado -
Trocamos as chefias.
Dou um exemplo de como trabalhávamos. Quando criamos o programa de formação de professores para a implantação dos parâmetros curriculares, em cada lugar do país nos indicavam gente com o perfil necessário. O ministério ia lá e selecionava. Boa parte dos contratados era petista.
Agora, o governo está contratando uma nova rede. Nenhuma das pessoas ficou. É bobagem perder profissionais qualificados.

Folha - Quanto à ocupação da máquina pública, a diferença entre PT e PSDB é conceitual ou de escala?
Prado -
Eles têm uma estrutura partidária forte, algo que nunca tivemos. O PSDB é um partido de quadros, com um núcleo de idéias coesas. O PT tem a concepção de organização de esquerda -a visão de que, quando um partido assume o Estado, passa a moldá-lo à sua imagem, e o Estado, então, modela a sociedade.
Parece jogo de palavras, mas determina milhares de coisas. Nessa situação, é claro que as pessoas têm de "ter lado". Essa frase [do ministro da Saúde, Humberto Costa] é reveladora, porque é o que está acontecendo na educação. De repente, a professora Maria José escolheu alguém por competência, e essa pessoa teve de dar lugar a outra que tinha lado -o lado de alguém que teve força e brigou pela troca.

Folha - Qual é a consequência prática dessa maneira de atuar?
Prado -
O que me consolou na desgraça que é ser governo, diante de uma utopia muito grande que a gente tem, foi a frase maravilhosa da Hannah Arendt: "As idéias se estilhaçam frente à realidade". E a realidade se impõe.
Vou dar o exemplo do Centro Educacional Unificado [escolões construídos pela Prefeitura de São Paulo, petista]. O CEU é vendido como um projeto de inclusão social. Mas o que é isso? Na educação, inclusão social significa garantir que todos tenham acesso à leitura e à escrita.
Ninguém pode ser contra inclusão social, mas o CEU vai levar a isso? Não vai, assim como não levaram os Cieps [escolões feitos no Rio durante a administração Brizola] e os Ciacs [projeto similar do governo Collor]. Daqui a cinco anos, aquela escola estará com as mesmas deficiências de ensino.

Folha - Por quê?
Prado -
Passamos oito anos criando condições para entrar na questão da qualidade. Nunca deixamos de mostrar que, tal como as coisas são ainda hoje, boa parte das crianças não aprende. E não aprende por causa dos professores, que não sabem alfabetizar. Não por culpa deles, mas porque não aprendem em nenhum lugar como se alfabetiza.

Folha - O que falta ao CEU?
Prado -
Ele não modifica a formação dos professores. Se a criança de fato aprender a ler e a escrever e ainda jogar futebol, ótimo. Mas, se você não mexe no que é função precípua da escola, não adianta dar teatro, ensinar a tocar na orquestra, porque ela não vai saber ler a partitura.
Além disso, como no caso dos uniformes, é uma forma escondida de desviar recursos da educação para construir equipamento comunitário, é retroceder do avanço que foi fixar em lei um patamar mínimo de gastos do poder público com a educação em si.

Folha - À parte os benefícios de marketing, de onde vem o apego do PT à questão dos uniformes escolares, agora encampada pelo governo federal?
Prado -
Até a ditadura, o uniforme era um instrumento de equidade na escola pública. Nos anos 70, com a ampliação do acesso no Sul e no Sudeste, entraram as crianças pobres. Na periferia, muitas não tinham uniforme. E isso levava à arbitrariedade da diretora: só entra quem tem. Então esse tema entrou na pauta das liberdades democráticas, e a obrigatoriedade caiu.
Por que o PT hoje leva isso a sério? Talvez por sua forte base de prefeitos. Nos municípios, dar o uniforme sempre foi tradição. Posso entender que, morando num bairro como Campo Limpo, uma mãe se sinta mais segura se seu filho estiver com um uniforme. Identifica essa criança. Agora, isso é decisão municipal. Aliás, devia ser de cada escola. Não é assunto para governo federal se meter. Governo federal tem de se preocupar com outras questões.

Folha - Com quais questões?
Prado -
Com o que interessa para melhorar a qualidade da educação pública. Em 1994, estavam na escola 84% das crianças de 7 a 14 anos. Mesmo esse percentual era realidade apenas no Sul, Sudeste e parte do Centro-Oeste. Estabelecemos como meta atingir uma taxa de 97% de escolarização, o que aconteceu em 2001.
Por mais difícil que tenha sido alcançá-la, sabemos que a taxa recuará em pouco tempo se não se atacar com tudo a qualidade do ensino. Qualquer técnico sabe que a questão são os professores. Por que o governo não está dando continuidade a isso?

Folha - Não está?
Prado -
Não. O que foi apresentado pelo MEC? Uma política de certificação. Um exame nacional para professores de 1ª a 4ª série. Quem passa tem prêmio mensal de R$ 150 durante cinco anos. Quem vai ganhar esse prêmio? Professor que tem ensino superior, morador de Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro. O restante está fora. É uma política que castiga quem, por falta de alternativa, frequentou uma má faculdade.

Folha - O que fazer então?
Prado -
Concentrar esforços na briga para que as universidades mudem o currículo, porque elas não formam o professor de que a sociedade precisa.
Há outro fato que não consigo entender. Passamos um tempo enorme organizando números para pensar a realidade a partir de dados concretos. Agora, os números são jogados no lixo a começar pelo ministro [Cristovam Buarque]. Não entendo como ele diz que há 20 milhões de analfabetos, quando o IBGE informa que são 14,9 milhões. Sem levar os dados a sério é impossível atuar.

Folha - Qual é o propósito de superestimar os analfabetos?
Prado -
Justificou a criação de uma nova estrutura, dentro do MEC, que se propunha a acabar com o analfabetismo em três meses. Isso não existe. Hoje se sabe que, para alguém ser usuário da escrita, precisa ter, no mínimo, quatro anos de contato com ela.
Falta política. Sempre tivemos como objetivo enfrentar a centralização da máquina do Estado, que é a base do clientelismo. Começamos com a merenda, que foi descentralizada para o município. O que o governo faz agora? Pega dinheiro que deveria ser usado na formação de professores e na compra de livros para as crianças, que é onde realmente pode dar uma diferença, e joga na merenda para a pré-escola. Quem pediu? Toda creche já é inaugurada com cinco refeições diárias, sob responsabilidade da prefeitura. Por que isso foi aprovado? Não sei, mas é um retrocesso político.

Folha - Por que parece tão difícil para o PSDB fazer oposição?
Prado -
Estivemos no governo durante muito tempo. Além disso, o PSDB nunca poderá, por exemplo, votar em bloco contra uma reforma de Previdência, proposta nossa, como o PT votou em bloco contra o Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério]. Todos os prefeitos petistas do Nordeste adoram o Fundef , que finalmente lhes permitiu ter recursos de acordo com o número de alunos. E mesmo assim o PT votou em bloco contra tudo.


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Frases
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.