São Paulo, domingo, 9 de maio de 1999

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DOMINGUEIRA

Cordiais e corruptos

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

Escândalos acontecem em todos os países, do Japão à Inglaterra. Mas no Brasil -observa o economista Eduardo Giannetti da Fonseca- "eles acontecem com uma frequência muito alta". Por quê? Teria o Brasil uma vocação irresistível para a corrupção? Um desvio endêmico de caráter?
A resposta é afirmativa, mas, obviamente, a indagação não deve ser dirigida às características "naturais" dos habitantes da terra, e sim à história.
O jornalista Eduardo Bueno, autor de "A Viagem do Descobrimento" vai relatar em seu próximo livro, "O Rei, a Fé, a Lei" -lançamento em julho- alguns casos curiosos. Por exemplo: o primeiro ministro da Justiça, por assim dizer, do Brasil, o ouvidor-geral Pero Borges, era famoso em Portugal por ter sido encarregado de construir um aqueduto e embolsar toda a verba do empreendimento. Não chegou -ao contrário do caso do edifício do TRT, investigado pela CPI do Judiciário- nem sequer a erguer uma pedra. Apenas ficou com o dinheiro.
Pero Borges acabou denunciado e preso, mas numa manobra para nós não muito exótica, negociou a devolução de metade do que roubou. E foi perdoado.
Pero Borges veio para o Brasil com o primeiro governador-geral, Tomé de Souza. Na mesma nau viajou Antonio Cardoso de Barros, provedor-geral da Fazenda. Segundo Bueno, o primeiro capataz da Fazenda privatizou verba pública para construir pelo menos um engenho (há versões de que foram três), de sua propriedade, na Bahia.
Casos semelhantes poderiam ser relatados ad nauseum, de grandes delitos a pequenas licenciosidades, como o recente passeio do procurador-geral da República a Fernando de Noronha em avião da Força Aérea. Mas a extensa crônica da improbidade luso-brasileira não é uma mera coleção de desvios. Faz parte de um sistema. "A função desse sistema, montado a partir do Estado ibérico, é criar mecanismos de ganhos para quem está no poder", diz o brasilianista Kenneth Maxwell, autor de "A Devassa da Devassa".
Sendo assim, a frouxidão das leis e a dissolução dos limites entre o território público e o privado não devem ser vistas como anomalia: "O sistema era feito exatamente para isso e, nesse sentido, era muito funcional", explica Maxwell.
Para a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, autora do premiado "As Barbas do Imperador", pode-se dizer que o poder público no Brasil "não existia", isto é, "ele era exercido por privados como representação imaginária de um Estado longínquo" -o português.
Schwarcz vai ao clássico "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, para levantar o também clássico dilema brasileiro: o predomínio da cordialidade, entendida como esfera de relações informais, pessoais, afetivas, sobre a impessoalidade da lei. A cordialidade é inflacionada na medida em que as instituições são frouxas e não despertam crença e adesão.
Para Eduardo Giannetti, os escândalos brasileiros são resultado de duas situações, uma institucional, outra comportamental. A institucional: excesso de regulamentações, sistema tributário inchado e complexo, Justiça idem. "É um Estado hiper-regulador que não tem como fazer cumprir suas próprias leis, e que se beneficia da corrupção", diz. "É também um Estado que acha que pode fazer qualquer coisa, como criar um pólo eletrônico na floresta ou construir uma nova capital, como fez JK, em cujo período mudou o patamar de corrupção".
Nessa antiliberal selva burocrática e regulamentadora, as fronteiras entre público e privado são fluidas, oferecendo, na visão de Giannetti, espaço para a sonegação, a propina e, também, a informação privilegiada.
Há duas maneiras clássicas de enriquecer: ou cria-se valor e vende-se ou apropria-se um valor já existente. No Brasil, alguns dos melhores cérebros têm se dedicado a essa segunda alternativa, conhecida como "rent seeking" ou "caça às rendas". "O aproveitamento de uma desvalorização cambial faz parte disso", exemplifica Giannetti.
O "rent seeking" é rápido e promissor. Pode-se ficar milionário de uma hora para outra sem precisar desenvolver pesquisas, registrar patentes, montar fábricas, produzir e vender. "Você vira um Bill Gates financeiro. E, no Brasil, os Bill Gates estão no mercado financeiro", diz.
Quanto ao aspecto comportamental, Giannetti, como Schwarcz, também revisita a cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda: "Aqui o vínculo pessoal predomina", diz. E cita a máxima da República Velha, que resume a ópera: "Aos amigos tudo, aos inimigos a lei".




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