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DOMINGUEIRA
Cordiais e corruptos
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo
Escândalos acontecem em
todos os países, do Japão à Inglaterra. Mas no Brasil -observa o economista Eduardo
Giannetti da Fonseca- "eles
acontecem com uma frequência muito alta". Por quê? Teria
o Brasil uma vocação irresistível para a corrupção? Um desvio endêmico de caráter?
A resposta é afirmativa, mas,
obviamente, a indagação não
deve ser dirigida às características "naturais" dos habitantes
da terra, e sim à história.
O jornalista Eduardo Bueno,
autor de "A Viagem do Descobrimento" vai relatar em seu
próximo livro, "O Rei, a Fé, a
Lei" -lançamento em julho-
alguns casos curiosos. Por
exemplo: o primeiro ministro
da Justiça, por assim dizer, do
Brasil, o ouvidor-geral Pero
Borges, era famoso em Portugal por ter sido encarregado de
construir um aqueduto e embolsar toda a verba do empreendimento. Não chegou
-ao contrário do caso do edifício do TRT, investigado pela
CPI do Judiciário- nem sequer a erguer uma pedra. Apenas ficou com o dinheiro.
Pero Borges acabou denunciado e preso, mas numa manobra para nós não muito exótica, negociou a devolução de
metade do que roubou. E foi
perdoado.
Pero Borges veio para o Brasil
com o primeiro governador-geral, Tomé de Souza. Na mesma
nau viajou Antonio Cardoso de
Barros, provedor-geral da Fazenda. Segundo Bueno, o primeiro capataz da Fazenda privatizou verba pública para
construir pelo menos um engenho (há versões de que foram
três), de sua propriedade, na
Bahia.
Casos semelhantes poderiam
ser relatados ad nauseum, de
grandes delitos a pequenas licenciosidades, como o recente
passeio do procurador-geral da
República a Fernando de Noronha em avião da Força Aérea. Mas a extensa crônica da
improbidade luso-brasileira
não é uma mera coleção de desvios. Faz parte de um sistema.
"A função desse sistema, montado a partir do Estado ibérico,
é criar mecanismos de ganhos
para quem está no poder", diz
o brasilianista Kenneth Maxwell, autor de "A Devassa da
Devassa".
Sendo assim, a frouxidão das
leis e a dissolução dos limites
entre o território público e o
privado não devem ser vistas
como anomalia: "O sistema era
feito exatamente para isso e,
nesse sentido, era muito funcional", explica Maxwell.
Para a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, autora do premiado "As Barbas do Imperador", pode-se dizer que o poder
público no Brasil "não existia",
isto é, "ele era exercido por privados como representação
imaginária de um Estado longínquo" -o português.
Schwarcz vai ao clássico
"Raízes do Brasil", de Sérgio
Buarque de Holanda, para levantar o também clássico dilema brasileiro: o predomínio da
cordialidade, entendida como
esfera de relações informais,
pessoais, afetivas, sobre a impessoalidade da lei. A cordialidade é inflacionada na medida
em que as instituições são frouxas e não despertam crença e
adesão.
Para Eduardo Giannetti, os
escândalos brasileiros são resultado de duas situações, uma
institucional, outra comportamental. A institucional: excesso de regulamentações, sistema
tributário inchado e complexo,
Justiça idem. "É um Estado hiper-regulador que não tem como fazer cumprir suas próprias
leis, e que se beneficia da corrupção", diz. "É também um
Estado que acha que pode fazer
qualquer coisa, como criar um
pólo eletrônico na floresta ou
construir uma nova capital, como fez JK, em cujo período mudou o patamar de corrupção".
Nessa antiliberal selva burocrática e regulamentadora, as
fronteiras entre público e privado são fluidas, oferecendo,
na visão de Giannetti, espaço
para a sonegação, a propina e,
também, a informação privilegiada.
Há duas maneiras clássicas
de enriquecer: ou cria-se valor
e vende-se ou apropria-se um
valor já existente. No Brasil, alguns dos melhores cérebros têm
se dedicado a essa segunda alternativa, conhecida como
"rent seeking" ou "caça às rendas". "O aproveitamento de
uma desvalorização cambial
faz parte disso", exemplifica
Giannetti.
O "rent seeking" é rápido e
promissor. Pode-se ficar milionário de uma hora para outra
sem precisar desenvolver pesquisas, registrar patentes,
montar fábricas, produzir e
vender. "Você vira um Bill Gates financeiro. E, no Brasil, os
Bill Gates estão no mercado financeiro", diz.
Quanto ao aspecto comportamental, Giannetti, como
Schwarcz, também revisita a
cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda: "Aqui o vínculo pessoal predomina", diz. E
cita a máxima da República
Velha, que resume a ópera:
"Aos amigos tudo, aos inimigos
a lei".
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