São Paulo, quarta-feira, 09 de outubro de 2002

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REGRAS DO JOGO

Quando a lei subtrai a liberdade

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO

A mulher, bem vestida, balbucia algumas palavras, o transeunte pára e pergunta. Pela leitura de seus lábios, percebe-se que ela diz "sim". Enfia uma das mãos na bolsa colada ao corpo e entrega, disfarçadamente, algo ao transeunte, que logo esconde em seu bolso. Ele continua seu percurso, a mulher, sorrateira, atravessa a rua e observa a passagem de dois policiais militares, que, distraídos, nada percebem.
Vila Madalena, cidade de São Paulo, manhã do último domingo. A cena é real. Não envolve tráfico de entorpecentes ou qualquer outra transgressão importante.
É apenas uma militante petista na boca-de-urna, sem chamar atenção, respondendo a demanda de alguém que, por qualquer motivo, pediu um santinho para definir o voto.
A boca-de-urna é proibida, e a lei estabelece pena de prisão para quem desobedecer. É um caso típico de transfiguração de um ato legítimo -pedir voto, fazer apologia de sua crença política- em delinquência. O poder público estimula quem não é criminoso a se comportar como tal.
Nada mais irritante do que a boca-de-urna, o assédio insistente de pessoas pagas ou voluntárias para que você, na última hora, vote em alguém. Mas nada mais despropositado e ridículo do que alocar policiais para reprimir quem não precisa ser reprimido.
No Brasil é assim. Em dia de eleição, a liberdade é subtraída e depois se comemora, orgulhosamente, que tudo transcorreu na mais perfeita ordem...
Ainda que aquela moça pudesse ser presa. À toa.

Direito de Resposta
O segundo turno das eleições presidenciais permitirá o enfrentamento ideológico entre Serra e Lula, o que ainda não se deu.
Até agora, Lula se esquivou, manteve-se olimpicamente postado na condição de quem não precisa se explicar.
Os dois candidatos, além do confronto direto, terão igualdade de tempo no horário eleitoral.
Em tese, essa condição de igualdade deveria inibir a intervenção do TSE, assim como dos mediadores dos debates das emissoras de TV, que também se arvoram em magistrados, concedendo ou indeferindo o que se convencionou chamar direito de resposta.
O que mais impressiona nesses julgamentos sumários é a subjetividade dos critérios.
Um não pode dizer o que o outro disse. O outro não pode dizer o que acha que o outro falou. Um responde a resposta do outro. Como, de repente, um tem mais respostas a dar, o outro ganha unidades de resposta em compensação. E, assim, todos crêem que justiça se fez.
Transmite-se ao eleitor a falsa impressão de que quem disse isso ou aquilo não poderia tê-lo feito. Só porque juízes consideram isso ou aquilo inadequado. Assim, um elemento estranho à disputa eleitoral -a suposta imparcialidade de quem estabelece o que pode e o que não pode ser dito- acaba por influir na própria percepção do eleitor, que poderia muito bem observar o que cada um diz e, sem a tutela de ilustres e cultos intermediários, definir se aquilo que é dito por um e por outro faz ou não sentido.
Eleição é aprendizado, e o paternalismo atrasa o desenvolvimento político do país.
Mas no Brasil é assim mesmo. No período eleitoral, a liberdade de expressão é suprimida e depois se comemora uma disputa em "alto nível"...
Ainda que o ambiente seja de censura. Ou de autocensura.

lfcarvalhofilho@uol.com.br


LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO, advogado criminal e articulista da Folha, escreve às quartas nesta coluna



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