São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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LANTERNA NA POPA
Desenvolvimentismo com pontos nos is...

ROBERTO CAMPOS

Fernando Henrique Cardoso gostaria de ser um segundo Juscelino Kubitschek, com um novo Programa de Metas inspirando otimismo, alegria e crescimento. E os marqueteiros de plantão (espécie que JK desconhecia) atrapalham as coisas, procurando vender ao público intenções como realizações e propostas como fatos. Um sensato esforço de coordenação de grandes obras vira, assim, um "Brasil em Ação", cujo principal efeito é fazer as pessoas contrastarem os slogans com a crise atual, desacreditando o palavrório governamentoso.
Compreendo, no entanto, o que sente Fernando Henrique. Mesmo porque (e, na casa dos 80 anos, posso dizê-lo sem vaidade) fui o teórico e um dos principais executores do programa de desenvolvimento de JK. Sou, pois, um dos culpados pelo certo e pelo errado do "desenvolvimentismo". Foi, de fato, um período apaixonante da nossa história, um tempo de esperança, quando achávamos que tínhamos o futuro nas mãos e que, diante da obra por fazer, era tocar para a frente, deixando que o tempo corrigisse nossos ocasionais erros. JK foi um grande mercador de esperanças, tão bem-sucedido que pouca gente se lembra de que ao fim de seu governo o país estava na bancarrota...
Ai de nós, o mundo vai mudando, e a gente não sente que a juventude não se repete. Infelizmente, não há mais lugar para uma segunda edição do desenvolvimentismo (ou terceira, se contada a versão militar dos anos 1968-1979). Esta última foi atalhada pela deterioração do cenário internacional com a crise do petróleo, antes mesmo que seus erros de concepção e execução o fizessem.
A fase do "desenvolvimentismo" precisa ser entendida no seu contexto histórico. O sistema internacional convalescia do trauma tectônico espantoso de duas guerras e da Grande Depressão, sem precedentes na memória humana. Todas as certezas pareciam minadas nos alicerces pelo fenômeno novo dos totalitarismos e por uma verdadeira "revolução cultural" que, desde o último quartel do século 19, questionou todos os fundamentos das certezas científicas e dos critérios artísticos, éticos e filosóficos.
Quando terminou a Segunda Guerra, mudou a cariz política e econômica do mundo. A ex-hegemônica Europa teve de recorrer à cooperação entre os antigos adversários e aceitar o fim dos impérios coloniais. Nas duas primeiras décadas do pós-guerra, a preocupação dominante era, para os "desenvolvidos", a reconstrução de uma ordem econômica e política viável e a "volta ao normal". E, para os "subdesenvolvidos", o desenvolvimento acelerado, sob a crença geral de que esses processos seriam liderados pela ação planificadora do Estado, com os novos instrumentos econômicos e gerenciais.
Para o Brasil, a oportunidade parecia clara. O país, dividido por suas contradições entre um formato econômico de exportador pouco produtivo de produtos primários de baixo valor agregado e uma elite europeizada que sonhava com uma condição "civilizada", tinha uma profunda aspiração de modernidade. A Revolução de 30, que culminara décadas de crises políticas, fora precipitada pela ruptura da economia internacional (fatal para São Paulo e sua base cafeeira) e pelo impacto das novas idéias autoritárias de direita e de esquerda. Getúlio Vargas, à sua maneira um modernizador um tanto tosco, de viés nacionalista autoritário (a variedade "castilhista" do positivismo), descobriria, no início dos anos 40, que as massas urbanas emergentes, então facilmente manipuláveis por fórmulas populistas, podiam fazer pender a balança política num sentido ou noutro.
A Segunda Guerra, em que o país participou militarmente, teve um duplo efeito decisivo. Por um lado, ao pegar-nos inteiramente despreparados, abriu- nos os olhos para as inúmeras lacunas e deficiências de infra- estrutura física e de capital humano que, até então, nas suas ilusões literárias ufanistas, nossas elites políticas não eram capazes de ver. A necessidade de correção urgentíssima de algumas das piores deficiências (sobretudo em matéria de transportes, energia e instalação ou expansão de algumas indústrias básicas) levou a entendimentos com os Estados Unidos para missões técnicas de avaliação dos problemas, das quais a mais importante foi a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos. Do planejamento então feito para reaparelhamento da infra-estrutura resultou a criação do BNDE, destinado a suprir a falta de instituições financiadoras de médio e longo prazo. Paralelamente, assessores de Vargas planejavam a criação de empresas estatais -Petrobrás e Eletrobrás- imprimindo um cunho mais dirigista à ação governamental. O terceiro estágio foi o Programa de Metas de JK, em cuja formulação e implementação trabalhei junto com Lucas Lopes.
Coincidiam nessa época, dentro e fora do país, a oportunidade e a necessidade. O sistema econômico internacional, tal como existira antes de 1914, continuava em escombros. E só os governos individuais, no meio do medo geral de novas crises de recessão e desemprego, tinham alguns meios de ação para tentar promover o equilíbrio monetário e de pagamentos e orientar suficientes fluxos de recursos para setores considerados críticos.
Acrescente-se que, como um todo, os governos, sob o ponto de vista institucional, ainda possuíam reservas de autoridade, e a combinação da depressão e do esforço de guerra haviam estabelecido algumas normas quase que universais de prioridade. As pessoas aceitavam com muita naturalidade as restrições do consumo. Na realidade, só havia uma "sociedade de consumo de massa" nos Estados Unidos, e ainda assim bem moderada, se contrastada com os padrões atuais. Por outro lado, o endividamento internacional havia sido praticamente varrido do cenário, e o maior credor, os Estados Unidos, demonstrando uma notável capacidade de discernimento, abriu mão de cobrar as que haviam sido acumuladas desde a Primeira Guerra. O Brasil saiu do conflito com saldos credores, que dissipou tão rápido quanto pôde, ao ponto de entrar em crise de pagamentos já em 1948. Tal crise, porém, foi, paradoxalmente, uma benção. As poucas fontes de crédito de que o país podia lançar mão, durante o governo de Juscelino, eram oficiais, com uns rabinhos de "atrasados comerciais" e alguns "supllier's credits". Se o Brasil tivesse capacidade de endividar-se, estou convencido de que teria logo estourado os limites, e seria uma vez o Programa de Metas...
E JK pegou uma economia de baixa inflação (graças, neste último caso, à grande figura de homem público que foi Eugênio Gudin). Não creio, repito, que JK tivesse podido escapar da tentação da gastança, com todas as consequências desastrosas, se essa fosse uma alternativa viável. Mas não era. E Juscelino pôde seguir o seu impulso natural de grandeza nas coisas brasileiras e manter-se firme nas metas, não sem esbanjos inflacionários na ereção de sua pirâmide particular, essa "fábrica de déficits" que é Brasília. Mas, também, os políticos eram outros. Vinham de um período em que haviam estado muito por baixo: primeiro, como os "carcomidos" que a Revolução de 30 queria varrer; depois, apontados ao desprezo público pelo regime de Vargas, objeto da antipatia dos impressionados pelos autoritarismos em moda e ainda incertos quanto às eventuais reações dos militares, ainda fortes diante da opinião popular. A classe política não havia caído na gandaia demagógica de 1985-1989, na qual nos esquecemos de que alguém tem de pagar a conta. E contavam com uma boa participação de "bacharéis da UDN" e das velhas "raposas" tradicionais do PSD.
A profunda crise da década dos 80 mudou completamente o quadro internacional e determinou a obsolescência final das concepções que vinham desde Keynes. Os governos perderam grande parte do controle sobre os movimentos financeiros mundiais e começaram a ser vistos como gestores arrogantes e incompetentes, e o público caiu com gosto na sociedade de consumo. Se isso é bom ou de mau, fica por conta do juízo individual de cada um. Mas o fato é que as políticas "desenvolvimentistas" se tornaram inviáveis. Primeiro porque, para participar no sistema mundial, as economias de países individuais têm de aceitar as novas regras do jogo de competitividade e flexibilidade e arquivar as anteriores políticas de intervenção direta. E, segundo, porque os Estados tropeçam hoje na limitação de recursos: capital físico e humano, infra-estrutura e tecnologia.
Fernando Henrique compreendeu esse problema. E, justiça se lhe faça, mostrou firmeza ao enfrentar uma herança pesadíssima (agravada, no final de 94, pela impetuosa "abertura" tarifária de Ciro Gomes), mantendo como prioridade a política de equilíbrio monetário, apesar da gritaria e dos evidentes custos. Houve erros, mas o saldo positivo é grande. Teria sido mais prudente se, ao invés de insinuar um "parto sem dor", tivesse de início anunciado ao povo, como Churchill, "sangue, suor e lágrimas". A originalidade da estabilização brasileira está em que, graças a uma esplêndida ginástica financeira, as dores do ajuste só vieram agora, bem depois do parto. E só são curáveis pelo antibiótico da austeridade e o jejum de gastança, sem o elixir do desenvolvimentismo.
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Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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