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LANTERNA NA POPA
Desenvolvimentismo com pontos nos is...
ROBERTO CAMPOS
Fernando Henrique Cardoso
gostaria de ser um segundo Juscelino Kubitschek, com um novo
Programa de Metas inspirando
otimismo, alegria e crescimento.
E os marqueteiros de plantão
(espécie que JK desconhecia)
atrapalham as coisas, procurando vender ao público intenções
como realizações e propostas como fatos. Um sensato esforço de
coordenação de grandes obras
vira, assim, um "Brasil em
Ação", cujo principal efeito é fazer as pessoas contrastarem os
slogans com a crise atual, desacreditando o palavrório governamentoso.
Compreendo, no entanto, o que
sente Fernando Henrique. Mesmo porque (e, na casa dos 80
anos, posso dizê-lo sem vaidade)
fui o teórico e um dos principais
executores do programa de desenvolvimento de JK. Sou, pois,
um dos culpados pelo certo e pelo
errado do "desenvolvimentismo". Foi, de fato, um período
apaixonante da nossa história,
um tempo de esperança, quando
achávamos que tínhamos o futuro nas mãos e que, diante da
obra por fazer, era tocar para a
frente, deixando que o tempo
corrigisse nossos ocasionais erros. JK foi um grande mercador
de esperanças, tão bem-sucedido
que pouca gente se lembra de que
ao fim de seu governo o país estava na bancarrota...
Ai de nós, o mundo vai mudando, e a gente não sente que a juventude não se repete. Infelizmente, não há mais lugar para
uma segunda edição do desenvolvimentismo (ou terceira, se
contada a versão militar dos
anos 1968-1979). Esta última foi
atalhada pela deterioração do
cenário internacional com a crise do petróleo, antes mesmo que
seus erros de concepção e execução o fizessem.
A fase do "desenvolvimentismo" precisa ser entendida no seu
contexto histórico. O sistema internacional convalescia do trauma tectônico espantoso de duas
guerras e da Grande Depressão,
sem precedentes na memória humana. Todas as certezas pareciam minadas nos alicerces pelo
fenômeno novo dos totalitarismos e por uma verdadeira "revolução cultural" que, desde o último quartel do século 19, questionou todos os fundamentos das
certezas científicas e dos critérios
artísticos, éticos e filosóficos.
Quando terminou a Segunda
Guerra, mudou a cariz política e
econômica do mundo. A ex-hegemônica Europa teve de recorrer à cooperação entre os antigos
adversários e aceitar o fim dos
impérios coloniais. Nas duas primeiras décadas do pós-guerra, a
preocupação dominante era, para os "desenvolvidos", a reconstrução de uma ordem econômica
e política viável e a "volta ao
normal". E, para os "subdesenvolvidos", o desenvolvimento
acelerado, sob a crença geral de
que esses processos seriam liderados pela ação planificadora do
Estado, com os novos instrumentos econômicos e gerenciais.
Para o Brasil, a oportunidade
parecia clara. O país, dividido
por suas contradições entre um
formato econômico de exportador pouco produtivo de produtos
primários de baixo valor agregado e uma elite europeizada que
sonhava com uma condição "civilizada", tinha uma profunda
aspiração de modernidade. A
Revolução de 30, que culminara
décadas de crises políticas, fora
precipitada pela ruptura da economia internacional (fatal para
São Paulo e sua base cafeeira) e
pelo impacto das novas idéias
autoritárias de direita e de esquerda. Getúlio Vargas, à sua
maneira um modernizador um
tanto tosco, de viés nacionalista
autoritário (a variedade "castilhista" do positivismo), descobriria, no início dos anos 40, que as
massas urbanas emergentes, então facilmente manipuláveis por
fórmulas populistas, podiam fazer pender a balança política
num sentido ou noutro.
A Segunda Guerra, em que o
país participou militarmente, teve um duplo efeito decisivo. Por
um lado, ao pegar-nos inteiramente despreparados, abriu- nos
os olhos para as inúmeras lacunas e deficiências de infra- estrutura física e de capital humano
que, até então, nas suas ilusões
literárias ufanistas, nossas elites
políticas não eram capazes de
ver. A necessidade de correção
urgentíssima de algumas das
piores deficiências (sobretudo
em matéria de transportes, energia e instalação ou expansão de
algumas indústrias básicas) levou a entendimentos com os Estados Unidos para missões técnicas de avaliação dos problemas,
das quais a mais importante foi a
Comissão Mista Brasil-Estados
Unidos. Do planejamento então
feito para reaparelhamento da
infra-estrutura resultou a criação do BNDE, destinado a suprir
a falta de instituições financiadoras de médio e longo prazo.
Paralelamente, assessores de
Vargas planejavam a criação de
empresas estatais -Petrobrás e
Eletrobrás- imprimindo um
cunho mais dirigista à ação governamental. O terceiro estágio
foi o Programa de Metas de JK,
em cuja formulação e implementação trabalhei junto com Lucas
Lopes.
Coincidiam nessa época, dentro e fora do país, a oportunidade e a necessidade. O sistema
econômico internacional, tal como existira antes de 1914, continuava em escombros. E só os governos individuais, no meio do
medo geral de novas crises de recessão e desemprego, tinham alguns meios de ação para tentar
promover o equilíbrio monetário
e de pagamentos e orientar suficientes fluxos de recursos para
setores considerados críticos.
Acrescente-se que, como um todo, os governos, sob o ponto de
vista institucional, ainda possuíam reservas de autoridade, e
a combinação da depressão e do
esforço de guerra haviam estabelecido algumas normas quase
que universais de prioridade. As
pessoas aceitavam com muita
naturalidade as restrições do
consumo. Na realidade, só havia
uma "sociedade de consumo de
massa" nos Estados Unidos, e
ainda assim bem moderada, se
contrastada com os padrões
atuais. Por outro lado, o endividamento internacional havia sido praticamente varrido do cenário, e o maior credor, os Estados Unidos, demonstrando uma
notável capacidade de discernimento, abriu mão de cobrar as
que haviam sido acumuladas
desde a Primeira Guerra. O Brasil saiu do conflito com saldos
credores, que dissipou tão rápido
quanto pôde, ao ponto de entrar
em crise de pagamentos já em
1948. Tal crise, porém, foi, paradoxalmente, uma benção. As
poucas fontes de crédito de que o
país podia lançar mão, durante o
governo de Juscelino, eram oficiais, com uns rabinhos de "atrasados comerciais" e alguns "supllier's credits". Se o Brasil tivesse
capacidade de endividar-se, estou convencido de que teria logo
estourado os limites, e seria uma
vez o Programa de Metas...
E JK pegou uma economia de
baixa inflação (graças, neste último caso, à grande figura de homem público que foi Eugênio
Gudin). Não creio, repito, que JK
tivesse podido escapar da tentação da gastança, com todas as
consequências desastrosas, se essa fosse uma alternativa viável.
Mas não era. E Juscelino pôde seguir o seu impulso natural de
grandeza nas coisas brasileiras e
manter-se firme nas metas, não
sem esbanjos inflacionários na
ereção de sua pirâmide particular, essa "fábrica de déficits" que
é Brasília. Mas, também, os políticos eram outros. Vinham de
um período em que haviam estado muito por baixo: primeiro, como os "carcomidos" que a Revolução de 30 queria varrer; depois,
apontados ao desprezo público
pelo regime de Vargas, objeto da
antipatia dos impressionados
pelos autoritarismos em moda e
ainda incertos quanto às eventuais reações dos militares, ainda fortes diante da opinião popular. A classe política não havia
caído na gandaia demagógica de
1985-1989, na qual nos esquecemos de que alguém tem de pagar
a conta. E contavam com uma
boa participação de "bacharéis
da UDN" e das velhas "raposas"
tradicionais do PSD.
A profunda crise da década dos
80 mudou completamente o quadro internacional e determinou
a obsolescência final das concepções que vinham desde Keynes.
Os governos perderam grande
parte do controle sobre os movimentos financeiros mundiais e
começaram a ser vistos como gestores arrogantes e incompetentes, e o público caiu com gosto na
sociedade de consumo. Se isso é
bom ou de mau, fica por conta do
juízo individual de cada um.
Mas o fato é que as políticas "desenvolvimentistas" se tornaram
inviáveis. Primeiro porque, para
participar no sistema mundial,
as economias de países individuais têm de aceitar as novas regras do jogo de competitividade e
flexibilidade e arquivar as anteriores políticas de intervenção
direta. E, segundo, porque os Estados tropeçam hoje na limitação de recursos: capital físico e
humano, infra-estrutura e tecnologia.
Fernando Henrique compreendeu esse problema. E, justiça se
lhe faça, mostrou firmeza ao enfrentar uma herança pesadíssima (agravada, no final de 94, pela impetuosa "abertura" tarifária de Ciro Gomes), mantendo
como prioridade a política de
equilíbrio monetário, apesar da
gritaria e dos evidentes custos.
Houve erros, mas o saldo positivo é grande. Teria sido mais prudente se, ao invés de insinuar um
"parto sem dor", tivesse de início
anunciado ao povo, como Churchill, "sangue, suor e lágrimas".
A originalidade da estabilização
brasileira está em que, graças a
uma esplêndida ginástica financeira, as dores do ajuste só vieram agora, bem depois do parto.
E só são curáveis pelo antibiótico
da austeridade e o jejum de gastança, sem o elixir do desenvolvimentismo.
²
Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do
Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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