São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2008

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ENTREVISTA / JUAN GABRIEL TOKATLIAN

Lógica da "guerra contra o terror" ameaça democracias latino-americanas

Para o sociólogo argentino, a região precisa decidir se continuará a ser zona de paz ou se o uso da força vale para todos

A CRISE DESATADA pela operação colombiana que matou o número 2 das Farc em território equatoriano põe a América Latina em uma encruzilhada: ou incorpora os paradigmas da "guerra ao terror", que privilegia a abordagem militar do problema do paramilitarismo - da guerrilha ao crime organizado-, ou decide que se manterá dentro das regras do Estado de direito. A advertência é do sociólogo argentino Juan Gabriel Tokatlian, 53. Leia a seguir trechos da entrevista que ele concedeu à Folha, de Buenos Aires.

ANDREA MURTA
DA REDAÇÃO

FOLHA- Como o sr. avalia todo esse episódio?
JUAN GABRIEL TOKATLIAN -
O que ocorreu tem três faces. A primeira, fundamental, é que se produziu um ato violento, que afetou as relações interamericanas, significou uma violação do direito internacional e vai ter profundas repercussões futuras. Provavelmente se instalou aqui definitivamente a noção da guerra contra o terrorismo, que era mais própria do Oriente Médio, da Ásia Central, do Chifre da África etc.
Em segundo lugar, no campo específico da Colômbia, o que se produziu foi menos o exercício de um presidente que seguia exigências de Washington e muito mais a oportunidade política interna de dar às Farc um golpe demolidor. Provavelmente estamos em um ponto de inflexão muito significativo da confrontação armada na Colômbia. Por isso, para grande parte da população colombiana, a ação foi percebida como uma vitória. Mas ela foi conseguida por meio de um instrumento ilegal e ilegítimo do ponto de vista latino-americano.
O terceiro ponto -e nisso o mais afetado é o Brasil- é que desmoronou a noção de que a América Latina ia a caminho da união sul-americana. Esse projeto, que o Brasil em particular defende tanto, caiu como um castelo de cartas. A América do Sul não pôde se antecipar a isso, nem evitar que se rompessem relações entre países, nem conseguiu que a solução seja segura e definitiva. Aqui há cada vez mais retórica de integração e prática de fragmentação.

FOLHA - O que significou o aperto de mãos em Santo Domingo?
TOKATLIAN -
Ele foi um elemento importantíssimo porque passamos do potencial uso das armas ao valor das palavras. E a forma quase pública em que se desenvolveu a controvérsia no Grupo do Rio [na última sexta] contribuiu para que a diplomacia fosse mais importante do que a tentação militar. Ainda assim, os problemas essenciais continuam vigentes. Os efeitos sobre as estratégias militares de todos os países da região, e em particular da região andina, são imprevisíveis. A falta de uma solução política compreensiva e ampla deixa a tentação a que incidentes menores possam voltar a atiçar o fogo. Me parece que o fundamental e prioritário é que a reunião de chanceleres na Organização dos Estados Americanos (OEA) em 17 de março, em Washington, produza uma resolução que estabeleça um compromisso político verdadeiro. O que vivemos agora é apenas uma diminuição das tensões; precisamos de um marco político e diplomático que deixe claro que o que é legítimo, legal e militarmente aceitável na região.

FOLHA - E que problemas estão por trás da disputa?
TOKATLIAN -
São vários. Um é o uso da força nas relações interamericanas e a validação de estratégias de coerção militar. A guerra contra o terrorismo não tinha elementos de manifestação na América do Sul, exceto na Colômbia, e em conseqüência se combatiam as modalidades de fenômenos violentos com instrumentos tradicionais, de direito, de política e segurança. Agora há um novo ponto a debater: se a América Latina se soma à guerra contra o terrorismo, identificada com uma confrontação privilegiadamente militar.
Se a região tem um problema político-militar central, que é a questão que mais afeta a Colômbia, é preciso resolver como se deve cooperar com Bogotá para resolvê-lo. Há muito tempo que o conflito armado colombiano não é simplesmente doméstico. E a solução também deverá ter um componente fortemente internacional.
Em terceiro lugar, é preciso decidir como se criará um mecanismo de convivência na América do Sul, que tem regimes políticos eleitos democraticamente, mas com governos de diferentes orientações ideológicas. Devemos decidir como conviveremos com isso e como resolver os problemas.
A área andina é uma zona de fratura, de fortes tensões, e é uma responsabilidade especial dos países do Cone Sul encontrar uma estabilização política. Para isso, antes de ampliar o que o Cone Sul deve ser, e o Brasil tem de ser muito responsável aqui, é preciso aprofundar os níveis de integração sub-regional. Do contrário, o Cone Sul será irrelevante.

FOLHA - O sr. ainda vê como um fracasso a atuação brasileira?
TOKATLIAN -
Mais que um fracasso, foi um golpe para o Brasil, porque o país não pôde nem antecipar nem consolidar mecanismos que evitassem a crise. Depois do ocorrido, é preciso uma profunda reflexão no Brasil, porque nesta parte do mundo o que mais se necessita agora é uma forma inovadora de liderança, que seja coordenada, múltipla, compartilhada -na qual, claro, a responsabilidade do Brasil é maior, por seu peso e tamanho. Mas solitariamente o Brasil não vai resolver os problemas da América do Sul. Ele precisa da região em paz, para seu desenvolvimento e para sua aspiração de ser um poder emergente importante.

FOLHA - Quem ganhou e quem perdeu com a disputa?
TOKATLIAN -
O Brasil é um perdedor. O Equador também, por ter sido violentado em sua soberania. Perdeu Hugo Chávez, que teve uma atuação desproporcional, desnecessária, que deu um sentido exagerado a um problema real, mas do qual não pôde tirar benefícios. Já Uribe consolida seu predomínio político interno, o que o levará provavelmente a vencer um novo mandato, se for possível, através de uma reforma constitucional, permitir uma outra eleição. Washington deve estar feliz, pois sem aparecer em primeiro plano conseguiu que seu maior aliado tivesse uma vitória político-militar transcendente e que sua lógica da "guerra contra o terror" começasse a tomar corpo na região.
Creio que não há grandes vencedores coletivos. Um dos mais golpeados são as Farc. Mas se olhamos esta trama a longo prazo, o que veremos serão reacomodações e teremos de ver se todos os vitoriosos de hoje ainda o serão amanhã.

FOLHA - E o que o sr. espera como conseqüências a longo prazo?
TOKATLIAN -
Diria que o paradigma que se deve tomar é o que aconteceu na região durante a Guerra Fria. Quando ocorreu a revolução cubana e, em 1962, a exclusão de Cuba do sistema americano, a Guerra Fria se tornou latino-americana. Isso teve um profundo impacto, tanto em termos políticos quanto jurídicos e militares. Em um paralelo com a "guerra contra o terror", se a nova lógica do inimigo interno e de como combatê-lo se instalar na região, haverá conseqüências transcendentais para a democracia. Se cremos que há um grande inimigo interno; que ele é parte de um fenômeno transnacional, que vai das Farc às favelas, dos atores armados aos piqueteiros; se o uso da força vale para todos, porque o perigo é iminente e o Estado de direito não serve para enfrentar os desafios; se a legalidade é um impedimento... teremos uma mudança drástica.
[Em 17 de março] Teremos a mensagem mais clara sobre se aceitamos com todas as suas conseqüências a dinâmica da "guerra contra o terror" ou se vamos preservar a América Latina como uma zona de paz. Que tem problemas enormes, mas que devem ser resolvidos com mais Estado de direito, mais política, mais justiça social e não com mais armas, violência e autoritarismo.

FOLHA - Por que o sr. crê que Hugo Chávez mudou tão radicalmente o tom entre quarta e quinta-feira?
TOKATLIAN -
Foi criado na região um clima no qual não houve nenhuma voz que alentasse Chávez, que não estava diretamente vinculado ao tema, a continuar com posições belicosas. Os instintos dos países da América do Sul foram muito bons ao buscar a distensão.
Chávez também compreendeu que essa não era uma medida que gozava internamente de um grande respaldo. Os problemas domésticos da Venezuela não são irrelevantes, as fraturas políticas são muito importantes, e ele viu que essa direção não traria bons resultados.
Chávez se acostumou a levar as coisas ao limite e depois retroceder um pouco, e aqui vimos a mesma estratégia. Ele não tem tanto um papel de liderança na América Latina, mas uma enorme capacidade de iniciativa. Mas seu índice de realização é incrivelmente baixo.

FOLHA - Como resolver, na prática, o problema das Farc?
TOKATLIAN -
Não vejo condições reais para negociações de paz entre o governo da Colômbia e as Farc. O que vejo é que há espaços para potenciais soluções de temas humanitários [como libertação de reféns]. É preciso separar as duas coisas. É preciso evitar a tentação de dar um status de beligerância às Farc. Senão, a Colômbia é que vai romper relações com outros países. E me parece muito imprudente nessa conjuntura agregar um problema diplomático a outro maior, com repercussões imprevisíveis.
Mas é preciso entender que as Farc são um ator político, e essa dimensão é mais transcendente para tentar pensar, em um segundo momento, as possibilidades de uma paz na Colômbia. Definitivamente, trazer forças da ONU ou da Otan seria o pior possível. O problema do narcotráfico, que retroalimenta o crime organizado, não pode ser resolvido apenas militarmente.

FOLHA - O sr. concorda que houve vitória da "latinidade", porque prescindiu-se da iniciativa dos EUA?
TOKATLIAN -
O teste para confirmar isso será no dia 17 de março, na assembléia da OEA. Veremos então se a América Latina chegará a uma resolução categórica. Aí termos uma vitória diplomática enorme. Mas se houver paralisia ou uma resolução ambígua, aí a latinidade nos serve só quando estamos sozinhos, mas não quando estamos frente a Washington.

FOLHA - Com esse desfecho, dá para levar a América Latina a sério?
TOKATLIAN -
Creio que sim, porque o que se mostrou é que a palavra importa aqui. Isso é fundamental e tem a ver com a tradição latino-americana no melhor de seus sentidos. Em 150 anos, esta é a região do mundo que teve menos guerras e conflitos e mais soluções pacíficas e diplomáticas. Santo Domingo refletiu essa tradição.


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