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ENTREVISTA / JUAN GABRIEL TOKATLIAN
Lógica da "guerra contra o terror" ameaça democracias latino-americanas
Para o sociólogo argentino, a região
precisa decidir se continuará a ser zona de paz ou se o uso da força vale para todos
A CRISE DESATADA pela operação colombiana que matou o número 2 das Farc em território equatoriano põe a América Latina
em uma encruzilhada: ou incorpora os paradigmas da "guerra ao terror", que privilegia a abordagem militar do problema do paramilitarismo - da
guerrilha ao crime organizado-, ou decide que se
manterá dentro das regras do Estado de direito. A advertência é do sociólogo argentino Juan Gabriel Tokatlian, 53. Leia a seguir trechos da entrevista que ele
concedeu à Folha, de Buenos Aires.
ANDREA MURTA
DA REDAÇÃO
FOLHA- Como o sr. avalia todo esse
episódio?
JUAN GABRIEL TOKATLIAN - O que
ocorreu tem três faces. A primeira, fundamental, é que se
produziu um ato violento, que
afetou as relações interamericanas, significou uma violação
do direito internacional e vai
ter profundas repercussões futuras. Provavelmente se instalou aqui definitivamente a noção da guerra contra o terrorismo, que era mais própria do
Oriente Médio, da Ásia Central,
do Chifre da África etc.
Em segundo lugar, no campo
específico da Colômbia, o que
se produziu foi menos o exercício de um presidente que seguia exigências de Washington
e muito mais a oportunidade
política interna de dar às Farc
um golpe demolidor. Provavelmente estamos em um ponto
de inflexão muito significativo
da confrontação armada na Colômbia. Por isso, para grande
parte da população colombiana, a ação foi percebida como
uma vitória. Mas ela foi conseguida por meio de um instrumento ilegal e ilegítimo do ponto de vista latino-americano.
O terceiro ponto -e nisso o
mais afetado é o Brasil- é que
desmoronou a noção de que a
América Latina ia a caminho da
união sul-americana. Esse projeto, que o Brasil em particular
defende tanto, caiu como um
castelo de cartas. A América do
Sul não pôde se antecipar a isso,
nem evitar que se rompessem
relações entre países, nem conseguiu que a solução seja segura e definitiva. Aqui há cada vez
mais retórica de integração e
prática de fragmentação.
FOLHA - O que significou o aperto
de mãos em Santo Domingo?
TOKATLIAN - Ele foi um elemento importantíssimo porque
passamos do potencial uso das
armas ao valor das palavras. E a
forma quase pública em que se
desenvolveu a controvérsia no
Grupo do Rio [na última sexta]
contribuiu para que a diplomacia fosse mais importante do
que a tentação militar. Ainda
assim, os problemas essenciais
continuam vigentes. Os efeitos
sobre as estratégias militares
de todos os países da região, e
em particular da região andina,
são imprevisíveis. A falta de
uma solução política compreensiva e ampla deixa a tentação a que incidentes menores
possam voltar a atiçar o fogo.
Me parece que o fundamental e prioritário é que a reunião
de chanceleres na Organização
dos Estados Americanos
(OEA) em 17 de março, em
Washington, produza uma resolução que estabeleça um
compromisso político verdadeiro. O que vivemos agora é
apenas uma diminuição das
tensões; precisamos de um
marco político e diplomático
que deixe claro que o que é legítimo, legal e militarmente aceitável na região.
FOLHA - E que problemas estão por
trás da disputa?
TOKATLIAN - São vários. Um é o
uso da força nas relações interamericanas e a validação de
estratégias de coerção militar.
A guerra contra o terrorismo
não tinha elementos de manifestação na América do Sul, exceto na Colômbia, e em conseqüência se combatiam as modalidades de fenômenos violentos com instrumentos tradicionais, de direito, de política e
segurança. Agora há um novo
ponto a debater: se a América
Latina se soma à guerra contra
o terrorismo, identificada com
uma confrontação privilegiadamente militar.
Se a região tem um problema
político-militar central, que é a
questão que mais afeta a Colômbia, é preciso resolver como
se deve cooperar com Bogotá
para resolvê-lo. Há muito tempo que o conflito armado colombiano não é simplesmente
doméstico. E a solução também
deverá ter um componente fortemente internacional.
Em terceiro lugar, é preciso
decidir como se criará um mecanismo de convivência na
América do Sul, que tem regimes políticos eleitos democraticamente, mas com governos
de diferentes orientações ideológicas. Devemos decidir como
conviveremos com isso e como
resolver os problemas.
A área andina é uma zona de
fratura, de fortes tensões, e é
uma responsabilidade especial
dos países do Cone Sul encontrar uma estabilização política.
Para isso, antes de ampliar o
que o Cone Sul deve ser, e o
Brasil tem de ser muito responsável aqui, é preciso aprofundar
os níveis de integração sub-regional. Do contrário, o Cone Sul
será irrelevante.
FOLHA - O sr. ainda vê como um
fracasso a atuação brasileira?
TOKATLIAN - Mais que um fracasso, foi um golpe para o Brasil, porque o país não pôde nem
antecipar nem consolidar mecanismos que evitassem a crise.
Depois do ocorrido, é preciso
uma profunda reflexão no Brasil, porque nesta parte do mundo o que mais se necessita agora é uma forma inovadora de liderança, que seja coordenada,
múltipla, compartilhada -na
qual, claro, a responsabilidade
do Brasil é maior, por seu peso e
tamanho. Mas solitariamente o
Brasil não vai resolver os problemas da América do Sul. Ele
precisa da região em paz, para
seu desenvolvimento e para
sua aspiração de ser um poder
emergente importante.
FOLHA - Quem ganhou e quem
perdeu com a disputa?
TOKATLIAN - O Brasil é um perdedor. O Equador também, por
ter sido violentado em sua soberania. Perdeu Hugo Chávez,
que teve uma atuação desproporcional, desnecessária, que
deu um sentido exagerado a um
problema real, mas do qual não
pôde tirar benefícios. Já Uribe
consolida seu predomínio político interno, o que o levará provavelmente a vencer um novo
mandato, se for possível, através de uma reforma constitucional, permitir uma outra eleição. Washington deve estar feliz, pois sem aparecer em primeiro plano conseguiu que seu
maior aliado tivesse uma vitória político-militar transcendente e que sua lógica da "guerra contra o terror" começasse a
tomar corpo na região.
Creio que não há grandes
vencedores coletivos. Um dos
mais golpeados são as Farc.
Mas se olhamos esta trama a
longo prazo, o que veremos serão reacomodações e teremos
de ver se todos os vitoriosos de
hoje ainda o serão amanhã.
FOLHA - E o que o sr. espera como
conseqüências a longo prazo?
TOKATLIAN - Diria que o paradigma que se deve tomar é o
que aconteceu na região durante a Guerra Fria. Quando ocorreu a revolução cubana e, em
1962, a exclusão de Cuba do sistema americano, a Guerra Fria
se tornou latino-americana. Isso teve um profundo impacto,
tanto em termos políticos
quanto jurídicos e militares.
Em um paralelo com a "guerra contra o terror", se a nova lógica do inimigo interno e de como combatê-lo se instalar na
região, haverá conseqüências
transcendentais para a democracia. Se cremos que há um
grande inimigo interno; que ele
é parte de um fenômeno transnacional, que vai das Farc às favelas, dos atores armados aos
piqueteiros; se o uso da força
vale para todos, porque o perigo é iminente e o Estado de direito não serve para enfrentar
os desafios; se a legalidade é um
impedimento... teremos uma
mudança drástica.
[Em 17 de março] Teremos a
mensagem mais clara sobre se
aceitamos com todas as suas
conseqüências a dinâmica da
"guerra contra o terror" ou se
vamos preservar a América Latina como uma zona de paz.
Que tem problemas enormes,
mas que devem ser resolvidos
com mais Estado de direito,
mais política, mais justiça social e não com mais armas, violência e autoritarismo.
FOLHA - Por que o sr. crê que Hugo
Chávez mudou tão radicalmente o
tom entre quarta e quinta-feira?
TOKATLIAN - Foi criado na região um clima no qual não houve nenhuma voz que alentasse
Chávez, que não estava diretamente vinculado ao tema, a
continuar com posições belicosas. Os instintos dos países da
América do Sul foram muito
bons ao buscar a distensão.
Chávez também compreendeu
que essa não era uma medida
que gozava internamente de
um grande respaldo. Os problemas domésticos da Venezuela
não são irrelevantes, as fraturas
políticas são muito importantes, e ele viu que essa direção
não traria bons resultados.
Chávez se acostumou a levar
as coisas ao limite e depois retroceder um pouco, e aqui vimos a mesma estratégia. Ele
não tem tanto um papel de liderança na América Latina, mas
uma enorme capacidade de iniciativa. Mas seu índice de realização é incrivelmente baixo.
FOLHA - Como resolver, na prática,
o problema das Farc?
TOKATLIAN - Não vejo condições
reais para negociações de paz
entre o governo da Colômbia e
as Farc. O que vejo é que há espaços para potenciais soluções
de temas humanitários [como
libertação de reféns]. É preciso
separar as duas coisas.
É preciso evitar a tentação de
dar um status de beligerância
às Farc. Senão, a Colômbia é
que vai romper relações com
outros países. E me parece
muito imprudente nessa conjuntura agregar um problema
diplomático a outro maior, com
repercussões imprevisíveis.
Mas é preciso entender que
as Farc são um ator político, e
essa dimensão é mais transcendente para tentar pensar, em
um segundo momento, as possibilidades de uma paz na Colômbia. Definitivamente, trazer forças da ONU ou da Otan
seria o pior possível. O problema do narcotráfico, que retroalimenta o crime organizado,
não pode ser resolvido apenas
militarmente.
FOLHA - O sr. concorda que houve
vitória da "latinidade", porque prescindiu-se da iniciativa dos EUA?
TOKATLIAN - O teste para confirmar isso será no dia 17 de março, na assembléia da OEA. Veremos então se a América Latina chegará a uma resolução categórica. Aí termos uma vitória
diplomática enorme. Mas se
houver paralisia ou uma resolução ambígua, aí a latinidade
nos serve só quando estamos
sozinhos, mas não quando estamos frente a Washington.
FOLHA - Com esse desfecho, dá para levar a América Latina a sério?
TOKATLIAN - Creio que sim, porque o que se mostrou é que a
palavra importa aqui. Isso é
fundamental e tem a ver com a
tradição latino-americana no
melhor de seus sentidos. Em
150 anos, esta é a região do
mundo que teve menos guerras
e conflitos e mais soluções pacíficas e diplomáticas. Santo
Domingo refletiu essa tradição.
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