São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997.



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LANTERNA NA POPA
O pecador arrependido

ROBERTO CAMPOS

"O grande antídoto contra os abusos de preços não são mais as leis antitrustes, mas a globalização dos mercados" Mário Simonsen

Ao contrário do que dizem nossas esquerdas neoburras, o Brasil, longe de estar sendo engolfado pelo neoliberalismo, ainda é um país em transição, navegando nas décadas de 60 a 80 do mercantilismo patrimonialista para o capitalismo de Estado e, mais recentemente, para o capitalismo concorrencial. Seu índice de globalização, medido pela participação de exportações e importações no PIB é baixo (15%), mesmo se comparado aos padrões latino-americanos.
Em 1996, esse índice foi de 18% na Argentina, de 35% no Chile e de 50% no México (chegando a 70% se incluídas as "maquilladoras" da fronteira norte-americana). Nem vale a desculpa de nossa dimensão continental, pois o índice da China foi de 35%, e o da Índia, de 20%. Pode-se mesmo arguir que regredimos, pois em 1970 nosso comércio exterior chegou a 17% do PIB.
Quanto à competição interna, ela é cerceada pela sobrevivência de monopólios estatais, que somente agora começam a se expor aos raios cósmicos da concorrência. Há reservas de mercado de vários tipos, inclusive uma absurda tarifa de 30% sobre bens de informática, cujo comércio está sendo liberalizado na maioria dos países pelo acordo de Cingapura.
Além disso, existem inúmeras reservas de mercado fantasiadas de regulamentação do exercício de profissões, coisa talvez justificável no caso de medicina e engenharia de construção (pelas responsabilidades do Estado na segurança dos indivíduos), mas totalmente injustificável em profissões "não letais", como advocacia, economia ou jornalismo.
Os empecilhos burocráticos à criação de empresas e a formidável complexidade da legislação trabalhista são outros obstáculos à competição interna.
A promoção da concorrência passou a ser parte importante da agenda governamental, por se reconhecer que não há alternativa válida à economia de mercado. E esta, como diz Mário Simonsen, "para ser eficiente precisa ser competitiva".
Temos uma floresta de siglas. Além das já conhecidas -Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), Seae (Secretaria Especial de Acompanhamento Econômico) e SDE (Secretaria de Direito Econômico)- que fiscalizam quase exclusivamente o setor privado, surgiram três agências regulatórias, que disciplinarão as atividades dos antigos monopólios estatais: a Anatel, no campo das telecomunicações, a Aneel, na eletricidade, e a ANP, no petróleo.
Um órgão que permaneceu décadas semi-adormecido e agora ressurge espalhafatosamente na mídia é o Cade. Nasceu bizarramente, no interregno parlamentarista do governo Goulart, em 1962.
Como o governo brasileiro era o principal monopolista do país e vários grupos nacionais gozavam de reserva de mercado, o objetivo subconsciente da lei 4.137 não era uma defesa ideológica de mercado concorrencial, mas sobretudo aporrinhar os "trustes estrangeiros" (na época era esse o apelido das multinacionais).
Por cinco décadas após a formação da Cade, as condições ambientais -inflação, estatismo e protecionismo- eram hostis ao capitalismo competitivo. As maiores aberrações foram a reserva de mercado de informática, de 1984, e a Constituição de 1988, que ampliou os monopólios estatais.
Compreende-se o "low profile" do Cade, pois a credibilidade do governo na promoção da concorrência era comparável à de um burocrata soviético lecionando eficiência gerencial, à de Fidel Castro apoiando a democracia ou à de Messalina pregando castidade num convento.
A lei do Cade foi reformulada em junho de 1994, num momento de exasperação inflacionária. Por isso tem tons policialescos e se preocupa demais com preços e de menos com eficiência. Da mesma forma que a Constituição de 1988, nasceu como um "anacronismo moderno".
No começo dos 90 já havia ocorrido a implosão do socialismo e, com a vitória do capitalismo, um salto na globalização. O Brasil começava, sob Fernando Collor, sua abertura para importações. Mas não tínhamos absorvido ainda as mudanças trazidas pela globalização no tocante à regulação de mercados. Numa economia aberta, mais relevantes que as mensurações tradicionais do "grau de concentração" ou "domínio de mercado", são o "grau de contestabilidade" (por via de importações), a "elasticidade de substituição", a "eficiência alocativa" e a "otimização de escala".
A concentração no plano nacional pode até se tornar indispensável para assegurar competitividade internacional ou baratear pesquisas. É o que está sucedendo em várias indústrias, como automóveis, telecomunicações, informática ou biotecnologia.
Na lei do Cade há perigos e idiotices. O perigo é a descrição demasiado genérica das infrações (ensejando subjetividade de julgamento). As penalidades, por contraste, são concretas e acachapantes, facilitando o surgimento de tiranetes burocráticos. Cria-se até mesmo a figura da infração "independentemente de culpa" (art. 20). Esse artigo, se estritamente interpretado, inviabilizaria o reconhecimento de patentes de propriedade intelectual. E as falências ou mudanças de rumo negocial exigiriam comprovação de "justa causa" perante os tecnocratas!
A mídia dá notícias de acerbos e eruditos debates no Cade sobre a promoção da concorrência entre cervejas e dentifrícios, assuntos para mim menos relevantes do que liberalizar-se a informática, desregulamentar profissões, facilitar o registro de microempresas ou extinguir monopólios estatais residuais, como o dos Correios e o de seguro de acidentes de trabalho (este, colossal fonte de corrupção no INSS).
Contra o voto de seu presidente, Gessner de Oliveira, que favorece uma interpretação prudencial das atribuições do Cade, os conselheiros decidiram embargar acordos de parceria em distribuição e tecnologia, entre a Brahma e Antarctica de um lado, e as cervejarias americanas Miller Brewing Co. e Anheuser-Bush, de outro.
O argumento é que essa associação diminuiria a "concorrência potencial", pois que, atendidas suas conveniências mercadológicas, as empresas americanas se dispensariam de implantar futuras fábricas no país. Essa tutela de mercado para reservar espaço à "concorrência potencial" é de validade questionável no mercado interno e implausível internacionalmente, visto que outros fatores como a política macroeconômica, ou a variável cambial, influenciam muito mais as decisões dos empresários que a palpitologia do Cade, cujas recentes intervenções só fizeram aumentar riscos e incertezas para os investidores estrangeiros.
Não é função do Cade tornar-se agência desenvolvimentista, que planeja otimizar o volume de investimentos. Basta-lhe remover obstáculos à concorrência e garantir liberdade de ingresso no mercado. O burocrata vaidoso tem a pretensão de otimizar a competição. Deve contentar-se em maximizar a "liberdade de competir".
Na querela cervejaria, pode-se alegar que associações tais que as propostas pelas cervejarias seriam benéficas à concorrência. Contribui para isso um fator climático, que lhes permitiria melhorar sua "eficiência alocativa", poupando investimentos. No inverno americano, as cervejarias têm capacidade sobrante, precisamente quando no verão brasileiro há um pico de demanda, suficiente para endurecer os preços, mas insuficiente para viabilizar novas fábricas e complexos de distribuição.
Além disso, com a oferta de cervejas estrangeiras por meio dos mecanismos já existentes, diversifica-se a oferta de novos tipos, para satisfação dos consumidores brasileiros. O intercâmbio de tecnologia não é também desprezível.
É melhor que o Cade deixe os cervejeiros em paz. Depois de se ter chafurdado por decênios na cultura do monopólio, não deve o governo passar ao outro extremo: excesso de zelo em reservar espaço para concorrentes potenciais, com a fúria do cristão novo, ou o fanatismo do pecador arrependido.

Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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