São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997. |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice PERSONALIDADE Se correr a notícia da morte, regras da prudência recomendam que se espere até o terceiro dia Se houver céu, Betinho ficará na porta
FERNANDO GABEIRA Deu tantos e bem colocados pontapés na morte que todos nos sentimos eternos enquanto o ouvimos Foi difícil convencê-las de que não se tratava de algo centralizado e que Betinho não distribuía diplomas ou franquias para representá-lo. O movimento era saudavelmente anárquico, como muita coisa que deu certo no mundo moderno. Críticas vieram de muitos lados. Temia-se que o governo se apropriasse da campanha ou que a oposição, através do PT, o fizesse. Ambos estavam ocupados demais para compreender a importância do movimento. Como descreveu o próprio Betinho, estavam envolvidos demais no estatal para cuidarem do público. Denúncias Em 94, já reconhecido dentro e fora do país, Betinho foi atingido pelas denúncias de que recebera US$ 40 mil dos banqueiros do bicho para a Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids). Na verdade, quem surgiu na lista dos bicheiros foi o então governador do Rio, Nilo Batista. Pressionado, Nilo contou que aquele dinheiro fora obtido para o combate à Aids. No dia em que estourou o escândalo, fui visitar Betinho. Estava levemente nervoso porque dezenas de repórteres o esperavam para uma coletiva. Era importante ir vê-lo porque a denúncia envolvia um amigo comum: o escritor Herbert Daniel, que morreu de Aids. Aliás, na cerimônia fúnebre, Betinho fez um discurso tão emocionante, deu tantos e bem colocados pontapés na morte, que todos nos sentimos eternos enquanto o ouvimos. Betinho pediu dinheiro aos bicheiros porque Herbert Daniel, que dirigia a Abia, precisava dele urgentemente para tocar o trabalho. Era um tempo difícil. A palavra Aids ainda despertava medo e distanciamento. Erro político Sem jamais negar que pediu o dinheiro, Betinho lamentou não ter pedido mais, pois a situação era desesperadora. Mas admitiu que cometeu um erro político. Senti nele um certo alívio. Afinal, conseguira se desvencilhar da aura de santidade com que estavam aprisionando sua imagem. Mas era uma ambígua vitória contra a canonização precoce. Betinho não tinha pisado na grama, cuspido no chão ou mesmo sido encontrado com uma prostituta num carro estacionado embaixo do poste. Pediu dinheiro para salvar vidas de gente como ele -soropositiva. Depois daquele escândalo, continuou a desenvolver seu trabalho. A luta contra a fome era apenas uma trincheira. A outra era a abertura de novos empregos e, a terceira, que iria lançar já em 95, era a democracia na terra. Betinho acreditava nessas três campanhas e sempre as viu interligadas. Os críticos da Ação da Cidadania que tentaram conter a preocupação de Betinho nos limites da caridade ficaram devendo um exame mais abrangente de seus projetos. Filhos Betinho tem dois filhos homens. O mais velho, Daniel, é dançarino. O mais novo, Henrique, nasceu da relação com Maria Nakano, com quem viveu desde o exílio. A mulher que o ajudou a construir a casa de Itatiaia, um refúgio para recarregar energias. Ele gostava do mar, mas escolheu a montanha para se sentir absolutamente em casa. Se houver céu, Betinho é uma das presenças mais improváveis. É do tipo que sentará na porta e só entrará quando todos os outros chegarem. Fernando Gabeira é deputado federal pelo PV do Rio de Janeiro, membro da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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