São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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Militar vira réu em processo por tortura durante ditadura

Família pede na Justiça reconhecimento de "danos morais e à integridade física"

Processo contra Carlos Alberto Brilhante Ustra reabre a discussão sobre a impunidade de funcionários que cometeram crimes

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Depois de a União reconhecer sua responsabilidade pela tortura, morte e desaparecimento de opositores durante o regime militar (1964-85), a Justiça agora é chamada a se pronunciar sobre os atos de um dos mais destacados agentes dos órgãos de segurança dos anos 70: Carlos Alberto Brilhante Ustra, 74, hoje coronel reformado do Exército. Cinco pessoas de uma família processam Ustra, acusando-o de seqüestro e tortura em 1972 e 1973.
Embora os advogados dos autores neguem que o pedido contrarie a Lei de Anistia (1979), o processo reabre a discussão sobre a impunidade de funcionários públicos que cometeram crimes contra os direitos humanos.
Na Argentina, as "leis do perdão" foram revogadas, e os acusados por tortura na ditadura militar do país (1976-83) são submetidos a julgamento.
A ação civil é declaratória: não implica pena ou indenização pecuniária. Pede a declaração de ocorrência de danos morais e à integridade física.
Advogados e entidades de direitos humanos consultados pela Folha afirmam desconhecer a existência de ações contra funcionários dos governos militares -antes foram contra o Estado. Ustra se diz "o primeiro militar que eles buscam sentar no banco dos réus".
Em 1985 a atriz Bete Mendes, ex-militante da luta armada contra a ditadura, apontou o coronel como seu antigo torturador, mas não o processou.
Ustra é réu no processo 05.202853-5, da 23ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo. Os autores da ação são o casal Maria Amélia de Almeida Teles, 61, e César Teles, 62; seus filhos Janaína Teles, 39, e Édson Teles, 38; e Criméia Almeida, 58, irmã de Maria Amélia.
A história que eles narram consta do "Brasil: Nunca Mais", projeto da Arquidiocese de São Paulo. O caso dos irmãos Janaína e Édson ganhou relevo no capítulo referente a vítimas crianças.
Eles tinham 5 e 4 anos quando foram parar nas dependências paulistas do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações -Centro de Operações de Defesa Interna). O comandante da unidade era Ustra, o "Tibiriçá".

A denúncia
Responsáveis pela gráfica do então clandestino Partido Comunista do Brasil, César e Maria Amélia foram presos em dezembro de 1972 junto com o dirigente Carlos Danielli -que foi torturado e morto no DOI-Codi, conforme conclusão, após o fim da ditadura, da Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça.
Grávida, Criméia foi detida no dia seguinte. Os sobrinhos foram levados com ela para o DOI-Codi, na rua Tutóia.
Maria Amélia lembra que recebeu choques elétricos, injeções do dito "soro da verdade" e humilhações diversas, além de ter sido posta no pau-de-arara.
César descreve golpes de palmatória, choques e tapas nos ouvidos ("telefone"). Queimaduras de cigarro no seu pé direito obrigaram-no a fazer transplante de pele.
Criméia afirma que, ao chegar no DOI-Codi, viu sua irmã e o cunhado sendo retirados da sala de tortura "com equimoses por todo o corpo". "Meu sobrinho [Édson], ao vê-los, perguntou: "Por que vocês estão verdes?'", disse ela.
De acordo com Criméia, mesmo grávida de sete meses ela foi seviciada com espancamento, murros na cabeça, palmatória de madeira nos pés e nas mãos e até choques.
"Eu e minha irmã fomos torturadas para que assinássemos um papel em que consentíamos que eles fizessem o aborto."
Depois de nascido, o menino João Carlos de Almeida Grabois soluçava dia e noite ao ouvir barulhos estridentes.
Maria Amélia e Criméia relatam a participação direta de Ustra na tortura. César diz que o comandante ordenava: "Bate nesse, bate naquele". Eles reconheceram o militar ao ver suas fotos publicadas após a denúncia de Bete Mendes.
Os pais dizem que os filhos foram usados para pressioná-los a fornecer informações -se não falassem, Janaína e Édson "seriam torturados e mortos".
A ação qualifica os atos contra os irmãos como tortura psicológica. Eles ficaram meses na casa de uma policial cuja identidade até hoje ignoram.
Aos 6 anos, Janaína entrou em processo de puberdade precoce. Aos 28, a menopausa se manifestou precocemente. Édson passou anos sem conversar com ninguém.


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