São Paulo, segunda-feira, 10 de setembro de 2007

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ENTREVISTA DA 2ª/MARCOS CINTRA

Para o economista, é melhor acabar com outros tributos, como a Cofins, e reduzir encargo sobre folha de salários

"Campanha contra a CPMF é reação à alta carga tributária"

MARIA CRISTINA FRIAS
MARCOS CÉZARI

DA REPORTAGEM LOCAL

O VICE-PRESIDENTE da Fundação Getulio Vargas e colunista da Folha, Marcos Cintra, diz que é melhor eliminar tributos como a Cofins e o adicional de 10% do IR na fonte e reduzir a contribuição sobre a folha de salários do que a acabar com a CPMF. Divulgador do imposto único, ele diz que a idéia de um só tributo não emplacou porque os poderosos das burocracias estatal e privada perderiam. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida na FGV.

FOLHA - Que reformas podem sair neste governo?
MARCOS CINTRA
- Para ser bem sincero, acho que não teremos reforma alguma. A reforma política já foi enterrada neste ano.
Não se toca nas outras. A única de que se fala é a reforma tributária, mas muito mais como um capítulo, digamos, da prorrogação da CPMF. A reforma tributária está sendo usada como um canal de debate, mas vai desembocar na prorrogação da CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira] e da DRU [Desvinculação de Receitas da União].
O cerne da reforma tributária, que era a criação do IVA [imposto sobre valor agregado], a reforma de todos os tributos sobre o consumo, que foi discutida em 2003, foi jogada para 2005 e para 2007. Suspeito que vamos repetir agora o que aconteceu em 2003.
Devem ser feitas algumas simplificações pontuais, mas a reforma fundamental, pela falta de consenso, será jogada para 2008, ano de eleições municipais. Daqui a dois, teremos a eleição presidencial, e assim estamos jogando esse problema para a frente. Com isso, a taxa de crescimento fica em 5% e não vai a 6% ou a 7%, que é o que gostaríamos.

FOLHA - Que pontos seriam importantes na reforma tributária?
CINTRA
- O Brasil tem hoje uma das cargas tributárias mais altas do mundo, de cerca de 35% do PIB. A sociedade brasileira vê na reforma tributária não apenas uma possibilidade de reduzir a carga mas de melhor distribuí-la, fazendo com que aqueles que hoje pagam muito imposto paguem um pouco menos, e os que estão na informalidade passem a pagar um pouco mais.
Minha percepção é que, mesmo que a reforma não reduza a carga tributária em relação ao PIB, ela deve melhorar o padrão de incidência. Significará algum alívio para setores produtivos hoje tributados em excesso.

FOLHA - Quem hoje está sendo tributado em excesso?
CINTRA
- O trabalhador brasileiro é um dos mais tributados do mundo. A folha de salários no Brasil tem uma carga tributária que equivale a 42,5% do seu valor. É fácil tributar o trabalho com carteira assinada. O desconto é na fonte, fácil de ser identificado.
O que o governo vem fazendo ao longo dos últimos anos é transferir a carga tributária para alguns setores que são mais facilmente tributados. As grandes empresas são hoje mais facilmente tributáveis do que a micro, a pequena e a média empresa, onde estão os grandes índices de sonegação e de evasão, quando não resvalam totalmente para a informalidade. Em compensação, as grandes empresas organizadas e o trabalho assalariado formal são supertributados no Brasil.

FOLHA - O que poderia ser feito para trazer essa informalidade para a formalidade?
CINTRA
- A informalidade é resultado imediato de uma tributação excessiva. Fosse a tributação aceitável, tolerável, o estímulo à sonegação seria muito menor. Quanto mais alta a alíquota, maior é o prêmio ao sonegador. A primeira providência é uma reforma que faça com que as alíquotas sejam mais baixas. Há que se buscar bases tributárias as mais amplas possíveis, para pôr em prática a máxima de que, tributando todos, todos vão pagar menos.

FOLHA - Seria possível uma reforma que reduzisse a burocracia e o caos tributário?
CINTRA
- A burocracia excessiva, pelas obrigações acessórias excessivas, impele o pequeno e o microempresário à informalidade. É preciso ter um sistema tributário que permita uma base maior [de contribuintes] para ter alíquotas menores. É por isso que defendo o imposto único. A grande vantagem do imposto único é fazer com que, formal ou informal, regular ou na economia irregular, todos sejam atingidos por ele.

FOLHA - Os governadores são os grandes obstáculos a uma reforma. Como lidar com isso?
CINTRA
- Uma das razões para a reforma tributária não andar é que a sociedade brasileira é extremamente complexa, uma Federação, com as competências tributárias distribuídas entre União, Estados e municípios, além da Previdência -que é União. Há choque de interesses entre os três níveis. Um dos principais obstáculos à reforma é a guerra fiscal.
É o único instrumento que os governadores do Nordeste têm para praticar o desenvolvimento regional. Eles querem que o governo federal pague essa conta, o que implicaria elevar a carga fiscal. Isso, evidentemente, é impossível. Não podemos mais ter aumento de carga tributária.

FOLHA - Qual a solução para isso?
CINTRA
- Minha proposta é a do imposto único. O governo propõe a criação de um imposto único sobre o valor agregado [o IVA]. Ele junta todos os impostos num só, mas sobre o valor agregado.
A proposta que defendo é a do imposto único sobre a movimentação financeira. A proposta do governo não reduz a burocracia. Continua tendo um sistema fortemente declaratório, com altíssimos custos operacionais, com enorme margem de sonegação, de evasão e de elisão. Minha proposta leva a um sistema absolutamente automatizado, com custo operacional zero, que reduz os custos das obrigações acessórias tributárias dos contribuintes, e que é capaz de gerar a mesma arrecadação, como a experiência da CPMF vem comprovando. Uma base tributária universal, sem sonegação.

FOLHA - A reforma implicaria redução da carga tributária?
CINTRA
- Reforma não implica discutir carga tributária. Reforma quer dizer: vamos discutir a melhor maneira de arrecadar. Mas arrecadar quanto? Como são gastos os recursos e quais as prioridades da sociedade? Aí vamos ter uma discussão ampla e uma reforma fiscal. A tributária é só um ângulo da fiscal. Hoje, a carga tributária é alta. O Estado é muito maior do que a sociedade é capaz de suportar.

FOLHA - Como o sr. vê as recentes medidas tomadas pelo governo?
CINTRA
- Está havendo, de fato, uma desoneração. Fala-se muito agora na desoneração da folha de pagamento das empresas, um item fortemente tributado. O ministro [da Fazenda] Guido Mantega tem dito que poderá, eventualmente, avaliar o uso de parte da arrecadação da CPMF na desoneração da contribuição patronal sobre a folha de salários, reduzindo-a de 20% para 15% ou 10%.

FOLHA - A grande maioria é contra a continuidade da CPMF. O sr. é uma voz isolada a favor. Por quê?
CINTRA
- Essas vozes isoladas estão cada vez mais sendo ouvidas. Vemos artigos pedindo a eliminação de outros tributos que são muito mais perversos e muito mais ineficientes do que a CPMF. A campanha não é contra a CPMF, mas é mais uma reação contra a carga tributária.
Acho mais proveitoso para a sociedade eliminar outros tributos, como a Cofins, e sobre a folha de salários. O adicional de 10% do IR na fonte [que elevou a alíquota de 25% para 27,5%] também poderia ser eliminado. Acho que seria um esforço mais inteligente de controle da excessiva carga.

FOLHA - Um tributo em cascata como a CPMF distorce os preços?
CINTRA
- A critica que ainda se faz é que, por ser um tributo em cascata, ele incide sobre o processo de produção e acaba distorcendo os preços relativos. Já provei, com números do IBGE -simulando os efeitos de um tributo não-cumulativo com um cumulativo-, que um tributo em cascata com alíquota baixa introduz menos distorções do que um tributo sobre o valor agregado com alíquota alta. Um IVA sempre exigirá uma alíquota pelo menos oito vezes maior para gerar a mesma arrecadação. Motivos: ele tem créditos, é facilmente sonegável e tem custos muito elevados.

FOLHA - Significa que o imposto único seria melhor do que o IVA?
CINTRA
- Para gerar a mesma arrecadação, a alíquota do imposto único seria de 5,3%, enquanto a do IVA seria de 32% ou 33%. Então, prefiro o imposto único com 5,3%, mesmo que cumulativo, porque traz menos distorções do que o IVA com alíquota de mais de 30%. Tributos cumulativos não são ineficientes. E até hoje ninguém contestou esses dados, que estão publicados.

FOLHA - Por que o imposto único ainda não foi implantado?
CINTRA
- Porque existem alguns perdedores. E são perdedores poderosos, fortes, bem estruturados. Cito alguns: a burocracia pública, que reage muito fortemente a esse tipo de simplificação tributária. Incluo aí a classe dos políticos. E a burocracia privada: aqueles que têm sua atividade profissional ligada diretamente à complexidade, aos serviços auxiliares, que o sistema tributário exige.
Esses também vêem uma certa ameaça num sistema tributário que, praticamente, tornaria suas presenças desnecessárias.

FOLHA - Então, as burocracias pública e privada são as grandes inimigas do imposto único?
CINTRA
- O pior de todos é o sonegador. Porque essas duas burocracias dizem que são contra. Muito tributarista de renome acha que o imposto único não é bom e dá seus argumentos, alguns até respeitáveis, porque não existe imposto perfeito. Ele certamente não é perfeito. O sonegador é a forma mais insidiosa de oposição. Não diz que é contra porque sonega mais do que o concorrente -e sabe que só sobrevive por isso. Ele trabalha ferozmente contra o imposto único, cria esse ambiente de contrariedade à proposta.

FOLHA - Na ausência do imposto único, qual o menor número de impostos existentes em sistema tributários mais eficientes?
CINTRA
- Os Estados Unidos, por exemplo, têm um sistema tributário muito enxuto. Basicamente, são o Imposto de Renda, o "Sales Tax" (sobre o consumo) e o Imposto sobre a Propriedade, que é o imposto municipal. A maior economia do mundo não cai nessa aventura de ter IVA. Porque é um país federativo.
O IVA é um tributo que tem uma vocação para ser aplicado em países unitários; até pode funcionar na Europa. O único país europeu que tem IVA e não é unitário, porque é uma Federação, é a Alemanha. O nosso principal foco de ineficiência tributária é o ICMS, que é o IVA que nós temos. A base de toda reforma é criar um outro IVA, que atenue um pouco essas distorções.

FOLHA - Por que em outros países não há CPMF?
CINTRA
- Porque a CPMF, modelo do imposto único, só funciona bem em países que tenham um sistema bancário altamente desenvolvido. O Brasil tem o sistema bancário mais desenvolvido do mundo. Temos compensações em tempo real, através da TED [Transferência Eletrônica Disponível].
Um imposto único com base sobre movimentação financeira também exige uma sociedade que já esteja habituada a não usar papel-moeda, a só usar moeda escritural. No Brasil, o papel-moeda em poder do público é 2% do PIB, nos EUA é mais de 7%, na Suíça é 40%.
A CPMF não existe em outros países porque só o Brasil reúne hoje essas duas condições essenciais para que o modelo funcione bem: um sistema bancário altamente informatizado e uma economia que culturalmente já está habituada a não usar moeda manual. E é por isso que a idéia do imposto único nasce no Brasil, onde tem viabilidade e não teria em outros países, por enquanto. Mas dentro de mais alguns anos vai ter também em qualquer lugar do mundo, porque essa é a base tributária do futuro, não tenho a menor dúvida disso.


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