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MEMÓRIA
Ok, Roberto Campos, você venceu!
DELFIM NETTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Julho de 1959, faixa exibida
por "estudantes nacionalistas"
na porta do BNDE, Rio de Janeiro:
"Abaixo Bob Fields, entreguista do
Brasil!". Abril de 1993: manchete
do caderno Mais!, da Folha: "OK,
Bob! Você venceu!".
Como num filme, esses dois momentos, distantes mais de 30 anos
um do outro, poderiam representar algo sobre a abertura e o
"happy end" de um enredo sobre a
saga política de uma das personalidades mais interessantes da história brasileira no século 20: Roberto de Oliveira Campos, um raro
espécime de caubói urbano, originário do Pantanal mato-grossense, duelista militante, alvo predileto e ao mesmo tempo algoz da irracionalidade vicejante nos debates sobre o desenvolvimento econômico e social do Brasil desde os
anos 50 até hoje.
O primeiro momento refere-se a
um episódio que retrata uma das
características mais marcantes de
sua personalidade: o gosto pelo desafio, de preferência quando as circunstâncias lhe eram mais desfavoráveis. Em junho de 1959, com o
presidente Kubitschek ameaçando
"romper com o FMI", em plena
exacerbação nacionalista provocada pela discussão dos "Acordos
de Roboré", Roberto Campos simplesmente pôs para fora de sua sala do antigo BNDE, no Rio de Janeiro, a comissão de "estudantes
nacionalistas" que lhe fora exigir
explicações sobre a posição favorável à participação de capitais estrangeiros na exploração do petróleo na Bolívia.
Diante da empáfia dos estudantes e à vista dos repórteres, mostrou a porta da rua dizendo: "Há
um ligeiro engano. Os senhores
não são juízes nem eu sou réu. Enquanto não concluírem seus estudos e não devolverem à sociedade
o custo do treinamento, os senhores são parasitas e não heróis nacionalistas". Ao relatar o episódio
em seu livro "A Lanterna na Popa", Campos reconhece com a ironia habitual que "não podia esperar melhor troco"; na semana seguinte, seu "enterro" passou pela
porta do BNDE, e a faixa de luto
mais amistosa tinha os dizeres que
abrem este artigo.
Poucos dias depois, perdido o suporte político do presidente, deixou a presidência do banco e "voltou à planície"...
Da mesma forma que em inúmeras outras ocasiões, Campos podia
se orgulhar de estar pagando um
elevado preço pela defesa intransigente da racionalidade e por sua
falta de paciência com as manifestações de burrice que permeavam
os debates sobre os temas econômicos. Em compensação, levava à
loucura, em discursos e artigos, os
pseudo-intelectuais engajados na
defesa de soluções socialistas, "progressistas", nacionalistas ou estatizantes.
Podia se orgulhar, também, de
ter sido o alvo de campanhas encomendadas e pagas com dinheiro
de corporações estatais e até mesmo de empresas multinacionais
quando, por exemplo, defendia o
fim da reserva de mercado na informática, na exploração dos recursos minerais e na fabricação de
latas ou a extinção dos monopólios de petróleo e telecomunicações. Sua pregação contra os monopólios inspirou textos memoráveis, de uma lógica perfurante e
verve inigualável.
Para ele, as grandes estatais pertenciam à família dos dinossauros
e, para elas, criou apelidos mordazes como "petrossauro", "telessauro" etc. Para a imprensa engajada,
Roberto Campos era o "entreguista", e isso dizia tudo, dispensando-a de enfrentar os seus argumentos.
Mas ele viveu o suficiente para assistir alegremente ao enterro dessas baboseiras e receber o reconhecimento de seus contemporâneos,
numa certa medida sintetizado na
manchete do Mais!, da Folha:
"OK, Bob! Você venceu!".
Durante muito tempo, a imagem
de polemista militante ofuscou a
dimensão do homem público que,
nos últimos 50 anos, participou do
planejamento e/ou execução das
etapas mais positivas do desenvolvimento econômico e social do
Brasil.
No segundo governo Vargas
(1950-54), Campos já participava,
como conselheiro econômico designado pelo Itamaraty, da elaboração de projetos de desenvolvimento que, pela primeira vez no
Brasil, apresentavam uma visão
conjunta de planejamento, abrangendo análises dos setores de
transportes, energia, indústrias
básicas, agricultura etc. no âmbito
da Comissão Mista Brasil-EUA.
Daquela comissão saíram os documentos básicos que propiciaram a
criação do Fundo de Reaparelhamento Econômico e do BNDE, que
exerceram um papel básico na
modernização da indústria brasileira iniciada no governo JK e na
construção da infra-estrutura de
transportes, energia e comunicações.
Campos presidiu o banco e o
Conselho de Desenvolvimento
Econômico. No BNDE se instalaram os grupos setoriais que ajudaram a alavancagem da indústria
automobilística, de equipamentos
pesados, de construção naval etc.,
enquanto o conselho exercia uma
espécie de coordenação do Plano
de Metas.
Sua atividade pública está umbilicalmente ligada às fundações da
moderna atividade industrial que
permitiu ao Brasil deixar o rol dos
países subdesenvolvidos nos anos
70. No governo Castello Branco
(1964-67), Campos, no Planejamento, e Octávio Gouvêa de Bulhões, na Fazenda, fizeram uma
das mais profundas e eficientes reformas dos setores-chave da administração, reorganizando as finanças públicas semidestruídas e impondo ordem nas contas estaduais.
Elaboraram a reforma tributária, recriando as condições que
permitiam o financiamento do desenvolvimento econômico nos
anos seguintes, a começar pela extraordinária ampliação da infra-estrutura de transporte rodoviário, portuária, de energia e de telecomunicações. Criaram as condições de alavancagem do mercado
de capitais e o Banco Central para
gerenciar a política monetária.
Regularizaram a dívida externa e
pagaram os atrasados comerciais
herdados do caótico governo anterior. Criaram o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, em substituição ao instituto caduco da estabilidade que impedia a expansão da oferta de empregos com
carteira assinada.
Lançaram as bases do Sistema
Financeiro da Habitação, criando
o BNH, que, ao longo dos 20 anos
seguintes e até ser destruído, propiciou o financiamento da construção de moradias para 5 milhões
de famílias das classes médias e
pobre. Em resumo, a reorganização da administração econômica e
financeira conduzida por Campos
permitiu que o Brasil reencontrasse os caminhos do desenvolvimento, com estabilidade interna e externa. O país se desenvolveu extraordinariamente nos 15 anos seguintes, com o produto dobrando
duas vezes, com notável expansão
dos níveis de emprego e de salários, exportações crescendo 15% ao
ano e com taxas de inflação declinantes.
Nossos registros históricos são
geralmente omissos ou tragicamente facciosos em relação aos
que efetivamente contribuíram
para o progresso do país e o bem-estar de seu povo. Roberto Campos
é, na segunda metade do século 20,
um de seus maiores artífices, além
de ser, seguramente, o mais genial
inimigo da irracionalidade na
condução das políticas econômicas. Apesar da incompreensão de
muitos de seus concidadãos, ele viveu o bastante para ver um clarão
de racionalidade iluminando a
paisagem brasileira, para o qual
ele contribuiu como poucos em sua
geração, com sua lúcida visão de
economista e sua magistral participação como escritor e polemista.
Há alguns anos, numa conversa
com o grande intelectual Roberto
de Oliveira Campos, no meio do
tumulto que é sempre o plenário
da Câmara dos Deputados, ele me
disse com um ar nostálgico: "Delfim, perdi muito tempo com os
economistas. Eu deveria ter aproveitado todo ele apenas estudando
o Hayek!". Quando hoje, já velho,
vejo as consequências não desejadas que acompanham a cega aplicação de princípios econômicos tidos como "científicos" sou levado
a dar meia razão ao Roberto. OK,
Roberto Campos, você venceu.
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