São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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LAÇOS DE FAMÍLIA

Jaime, 65, irmão operário do presidente eleito, nunca chegou a militar em sindicato

Em pequena fábrica paulistana, trabalha outro Inácio da Silva

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Ele tem 65 anos e mora em uma casa que ainda não acabou de construir. Acorda diariamente às 4h30 e logo está na rua. Pega três ônibus, que o levam para o emprego, de onde só sai às 17h. Na ida, percorre sentado o trajeto de 90 minutos. Na volta... "Não sento nem com reza brava. Dou graças a Deus se, dentro dos ônibus, consigo manter os pés no chão. Comum mesmo é viajar espremido, flutuando."
Nas eleições de outubro, votou em Luiz Inácio Lula da Silva. Espera, agora, que o petista faça "um bom governo". "Apenas isso: um bom governo. Se um cabra daqueles não fizer, quem fará?"
Olhando-o de perto, descobre-se que exibe muitas semelhanças com Lula. Nasceu em Caetés -cidade do agreste pernambucano que também serviu de berço para o ex-líder sindical- e hoje vive no Parque Selecta, bairro periférico de São Bernardo do Campo (SP). Trabalha como metalúrgico.
Na mão esquerda, faltam-lhe pedaços de dois dedos: a falange do "maior-de-todos" e uma lasca do "fura-bolo". Perdeu-os em 1984. "Acidente profissional."
O mais notável, no entanto: chama-se Jaime Inácio da Silva. É irmão de Lula -"irmão completo, por parte de pai e mãe". Uma ressalva importante, já que o presidente eleito contabiliza um punhado de irmãos "incompletos".
Da união com o estivador Aristides Inácio da Silva, dona Lindu (ou Eurídice Ferreira de Melo) gerou 12 filhos, incluindo Jaime e Lula. Quatro crianças não sobreviveram, e o mecânico Zé Cuia sucumbiu, adulto, à doença de Chagas.
Num segundo casamento, Aristides concebeu outros 13 herdeiros. Três morreram.
Assim, Lula ainda possui sete irmãos e dez meios-irmãos, gestados por Valdomira Ferreira de Góis, a Mocinha, prima de dona Lindu.
Dos sete irmãos, Jaime é o mais velho, o que se encontra em pior situação financeira e o único que continua operário. "Sigo levando vida de peão." Peão que não concluiu o primeiro grau e nunca se envolveu com sindicalismo. "Sinceramente? De sindicato, não entendo nada."
Enquanto o Partido dos Trabalhadores não existia, proclamava-se janista. "Gostava de Jânio Quadros porque o considerava um cara honesto." Depois que o PT surgiu, mudou de preferência. "Sempre votei em Lula e nos companheiros dele." Conhece pessoalmente o senador Eduardo Suplicy e o deputado José Genoino. "Admiro os dois."
Também admira todo tipo de militância política. "Luta bonita, a dos que pelejam pelo poder. Só que cada um vem com uma missão. A minha é a do operário. A de Lula, o país inteiro já aceitou. O tal negócio: sujeito que nasce para vintém não vira tostão. Matutei muitas vezes sobre a coisa e percebi que sinto orgulho de meu papel. A sociedade precisa tanto do tostão quanto do vintém."
"Evito a política", insiste, "por ser meio esquentado e não saber discutir. Não aprendi a negociar, compreende?". Lança, então, um exemplo: "Se você disser "vou lhe dar meu relógio e, em troca, apanhar o seu", recuso. Fico com a impressão de que você está me enrolando".

Cozinha, sala e banheiro
Aposentado desde 1990, Jaime recebe da Previdência R$ 370 por mês. "Pode?" O dinheiro, curto, obriga-o a permanecer "no batente". "Sorte que não tenho preguiça e que não me acho velho. Usado, sim. Velho..."
A pequena metalúrgica em que trabalha, na Vila das Mercês (zona sul paulistana), fabrica eixos para bombas d'água e dispõe de apenas cinco operários. Todos os colegas de Jaime são bem mais jovens. Oscilam entre 17 e 51 anos.
O dono da empresa, Sérgio Alberto Casasanta, conta que, após a vitória de Lula, procurou o "irmão do homem". "E agora?", perguntou-lhe. A resposta: "Não faço a mínima idéia".
"Se algo mudará em minha rotina?", conjectura Jaime. "Melhor não pensar no assunto. É como expliquei: cada qual carrega a sina que lhe cabe."
A casa própria em que mora com a mulher e a filha, num terreno de 125 metros quadrados, deverá se tornar um sobrado de três dormitórios. Por ora, entretanto, se reduz a cozinha, sala e banheiro. "Tijolo, cal, cimento, areia... Os olhos da cara, viu? Não consegui iniciar os quartos nem terminar a lavanderia."
Jaime começou a construção em 1996. Livrou-se do aluguel que sempre o atormentou, mas amarga a perda de espaço. Enquanto não finaliza a obra, a família tem de dormir na sala. A cozinha abriga a máquina em que a filha do casal, costureira, atravessa os dias. Ela e o pai respondem, juntos, por uma renda mensal "maior que R$ 1.000 e menor que R$ 2.000".

Rui Barbosa
Sisudo e calado, Jaime é um bocado arredio nos primeiros contatos. "Desconfiança de sertanejo." Quando relaxa, porém, fala alto, gesticula e revela-se um ardiloso piadista. Provoca o repórter: "De um lado, o peão. Do outro, Rui Barbosa, anotando. O peão narra a história toda, e quem leva a fama? Rui Barbosa, claro".
A história, aliás, contém ingredientes dramáticos. Menino, Jaime capinava feijão, milho e mandioca no sítio Várzea Comprida, em Caetés, onde cresceu. Não conhecia "rádio nem futebol".
Descobriu os dois no Guarujá (SP) e rapidamente aderiu à "fé pelo Corinthians", o time de Lula. Migrou para o município paulista em 1950, com Aristides, que àquela altura já substituíra dona Lindu por Mocinha. A viagem, num pau-de-arara, durou "nove luas".
O pai, homem rigorosíssimo, aplicava surras constantes em Jaime e o proibia de estudar. Saudoso da mãe e dos irmãos que deixara no agreste, o garoto lhes escreveu, pedindo que vendessem "as tralhas" e ganhassem a estrada. Assinou a carta com o nome de Aristides. A artimanha funcionou e, tempos depois, dona Lindu desembarcou no Guarujá.
Antes de virar metalúrgico, Jaime exerceu várias atividades: ajudante geral, carvoeiro, carregador, marceneiro. Foi justamente numa serra de marcenaria que feriu os dedos. "Estava arredondando os cantos de uma mesa, quando a mão escorregou." Naquele dia, soube que um sobrinho nascera. "O danado espichou, se tornou rapagão, e meus dois dedos continuam pequenos."
Sobre o futuro governo do irmão, discorre pouco. "Não adianta indagar se desejo que Lula aja assim ou assado. Pega mal me meter em mundo que ignoro."
Não torce nem mesmo para que o salário mínimo aumente? "Moço, qualquer um que subir lá vai precisar mexer no vespeiro, porque o caldo aqui só engrossa."
Embora não se frequentem, Jaime diz cultivar "ótimas relações" com Lula. "É mais fácil tirar um bilhete premiado do que encontrá-lo em casa." Abraçaram-se pela última vez no domingo do segundo turno. "Fui àquele hotel onde ele descansava para lhe oferecer minhas felicitações."
Pretende revê-lo na posse. "Quero arranjar uma maneira de ir. Nunca pisei em Brasília, mas estou sossegado: ninguém se perde ali, não."



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