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São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

MARIA TEREZA SADEK

"A instituição se transformou numa burocracia pesada, o que afasta o cidadão comum da Justiça"

Controle externo não resolve os problemas do Judiciário

FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL

O Judiciário não acompanhou as inovações da sociedade brasileira, diz Maria Tereza Sadek, professora de pós-graduação em Ciência Política da USP.
"A instituição se transformou numa burocracia pesada, repleta de formalismos, o que afasta cada vez mais o cidadão comum da Justiça." Segundo Sadek, é indispensável que o Judiciário passe a prestar contas à sociedade.
Pesquisadora do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, ela estuda o Judiciário desde 1992. Na sua avaliação, as investigações na Justiça Federal tendem a dificultar a reforma do Judiciário e criam expectativas que poderão ser frustradas. O controle externo do Judiciário não é um ponto central da reforma, diz.
Ela elogia a Operação Anaconda, que reflete uma atuação louvável do Ministério Público Federal, longe dos refletores, ao contrário das investigações sobre o Fórum Trabalhista de São Paulo.

Folha - Há condições para se fazer a reforma do Judiciário?
Maria Tereza Sadek -
Toda reforma tem conotação política. Infelizmente, o tema só vem à tona quando há confronto, seja na Justiça, seja no Legislativo.

Folha - Está mais difícil obter a reforma no governo Lula?
Sadek -
O governo Lula assumiu falando de reforma do Judiciário. E há um confronto da Presidência da República com o Judiciário. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Maurício Corrêa, assumiu com uma postura essencialmente política, corporativa, de defesa da instituição. Não há como fazer uma reforma do Judiciário sem ter forças políticas apoiando essa reforma. A idéia de que isso possa nascer de um grupo de especialistas é balela.

Folha - Essa tensão política e a Operação Anaconda inibem a negociação em torno da reforma?
Sadek -
Eu acho que a situação de tensão, de conflito, gera expectativas que serão facilmente frustradas. Coloca-se energia na criação do controle externo. Como se isso pudesse resolver todos os problemas internos do Judiciário.

Folha - O governo Lula contribuiu para criar essa expectativa?
Sadek -
Contribuiu de forma acentuada, embora a insatisfação e a intolerância com o Judiciário sejam muito antigas. Além da "caixa preta", há a reforma da Previdência, que colocou lenha nessa fogueira. Os juízes apareceram como corporativos. Só a parte corporativa ficou visível.

Folha - Qual é o cacife do Judiciário?
Sadek -
O Judiciário não assumiu uma dianteira na proposta de reforma. Assumiu muito mais como uma força de contenção. Mexeu mais no poder de não deixar as coisas andarem. Diferentemente das outras reformas, não há grupos com uma proposta unificada sobre todos os temas.

Folha - Como se dividem esses interesses?
Sadek -
Em relação à súmula de efeito vinculante [prevê que decisões já tomadas pelos tribunais seriam seguidas por todos os juízes], há uma divisão de grupos. Os favoráveis à súmula não são os mesmos favoráveis ao controle externo. Os favoráveis à súmula não são os mesmos que defendem uma democratização interna no Judiciário. Os grupos não são homogêneos, tudo é mais difícil.

Folha - Na reforma do Judiciário, quais são os principais atores?
Sadek -
Para começar, o Executivo, que tem interesses distintos e específicos. No Legislativo, a minoria tem interesses que não são idênticos, muitas vezes são contrários aos da maioria. No Judiciário, a divisão é maior. Há os órgãos de cúpula e os da base. Depois, há a divisão entre a Justiça federal e a Justiça estadual. E há a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], um ator muito importante. E a sociedade civil, menos significativa para fazer pressão.

Folha - Com esse grau de tensão, deve aumentar a discussão sobre o controle externo. É o principal?
Sadek -
Diria que não. Por isso, a pergunta que se deve fazer é: o que se espera do Judiciário?

Folha - O discurso sobre a abertura da "caixa preta" aumentou essa expectativa em torno do controle?
Sadek -
Exatamente. A imagem que o presidente Lula utilizou é muito ruim. É oposta ao significado da "caixa preta". Na aviação, significa desvendar todos os segredos da máquina. Se a máquina não funciona, se há uma pane, você descobre qual foi o elemento responsável pelo desastre.

Folha - E o que significaria a "caixa preta" no Judiciário?
Sadek -
Não tem o mesmo significado, porque o Judiciário é uma instituição anacrônica. A idéia de "caixa preta" implicaria que a instituição tivesse um grau de racionalidade em seu funcionamento. É uma imagem que tem um efeito simbólico muito grande: segredos que são escondidos e que precisam ter transparência.

Folha - Como se explica o anacronismo do Judiciário?
Sadek -
O Judiciário não acompanhou as inovações da sociedade brasileira. Se transformou numa burocracia pesada, repleta de formalismos. O que afasta cada vez mais o cidadão comum do que é a Justiça e de como ela funciona. Não se pode ter uma sociedade democrática com instituições que não sejam republicanas, que não prestem contas à sociedade. Esse é um dos pontos centrais na reforma.

Folha - Como a sra. vê a proposta do controle externo?
Sadek -
A expressão controle externo tem um efeito simbólico ruim. Controle significa submissão, uma supervisão. Como o conceito todo é ruim, tinha que ser necessariamente rejeitado pelo Judiciário. Até do ponto de vista da acepção mais teórica do sistema presidencialista, que tem três Poderes harmônicos. O que pode e deve ter, e é absolutamente indispensável, é uma prestação de contas. Toda e qualquer instituição tem que prestar contas. E o Judiciário não faz isso.

Folha - Os mecanismos seriam internos? E o papel das corregedorias?
Sadek -
Corregedoria é disciplinar. Quantos processos entraram, quanto tempo demorou, se teve recursos...

Folha - Como isso é feito?
Sadek -
O juiz de primeiro grau está sendo reduzido à insignificância. Tudo tem recurso. O juiz de primeiro grau é um funcionário público bem remunerado, fazendo um trabalho sobre o qual nós não temos controle. Não se trata de discutir substantivamente a sentença, o conteúdo da decisão. Mas esse funcionário público, que vive com o dinheiro do contribuinte, tem de dizer como gasta o seu tempo.

Folha - O que as pesquisas têm revelado?
Sadek -
Se você pegar os processos, entrados e distribuídos, da Justiça comum de primeiro grau no ano de 2000 e dividir pela população, chega-se a um processo para cada 18 habitantes. Isso é uma conclusão absolutamente falsa. Pesquisas de opinião mostram que as pessoas evitam ao máximo recorrer à Justiça. O que nós temos de perguntar é: qual é a efetividade desse trabalho. E você tem dificuldade de responder. Não se sabe quem são as partes. Há suposições de que 80% de todas as causas têm a União, os entes públicos como partes. Depois, vários setores que sabem extrair benefícios da deficiência do Judiciário. Se você deve, é excelente entrar na Justiça. Em vez de pagar hoje, vai pagar daqui a dez anos. Com juros muito mais baixos do que os do mercado.

Folha - O que esses dados revelam em relação ao trabalho do juiz?
Sadek -
O juiz trabalha muito, exageradamente, diferentemente da imagem pública.

Folha - O juiz deve sofrer com um trabalho não reconhecido.
Sadek -
Muito bem. Esse funcionário público, que todo mundo vê de forma tão negativa, tão crítica, ao contrário, trabalha demais. O que nós temos que perguntar é: para quem estão trabalhando? Eles não estão garantindo o direito da cidadania, como imaginam. Estão favorecendo um grupo especial de demandantes.

Folha - Que sabem usar os recursos para postergar os processos.
Sadek -
O juiz se perde atrás de tantos processos. É uma situação que tinha de ser repensada. Será que interessa uma reforma do Judiciário?

Folha - Como foi no governo FHC?
Sadek -
Na época das privatizações, as minorias entravam questionando a constitucionalidade das decisões. Ainda que se diga, "ah, acabou tudo sendo aprovado", brecou muito o sistema. Foi adiando. E mais do que isso. Como você tem um modelo de controle da constitucionalidade no Brasil que é difuso, ou seja, cada juiz tem a possibilidade de exercer controle, você pode ter decisões de juízes espalhados em todo o território nacional. Durante o governo FHC, você tinha uma posição muito clara que era a favor da súmula de efeito vinculante. Agora, são contra a súmula, mas são a favor da súmula impeditiva de recurso. Ela engessa menos o Judiciário, porque não obriga que todos os juízes obedeçam as decisões já formuladas, mas ela impede que você faça recurso quando você já tem uma decisão tomada e acordada. Obviamente, essa é a proposta defendida atualmente, mais fácil de ser aceita pela OAB.

Folha - Como a sra. vê a atuação do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em relação à reforma?
Sadek -
Ele assumiu dizendo que é necessário iniciar do zero. Fez o que nenhum ministro havia feito: criou a Secretaria de Reforma do Judiciário. É uma boa medida, porque coordena as experiências. E não tem a intenção de entender a reforma do Judiciário apenas como reforma constitucional. Parte do princípio de que é possível melhorar a prestação jurisdicional com alterações infraconstitucionais e com mudanças de natureza administrativa. Obviamente, a magistratura entende como interferência.

Folha - Em que medida o Judiciário pode avançar internamente? É possível que, como efeito da Operação Anaconda, haja uma pressão maior para que o Judiciário seja mais transparente, para que as corregedorias funcionem. Por que não funcionam?
Sadek -
A gente sabe pouco. Os dados não são disponíveis. Pelas informações que a gente tem, as coisas funcionam para juiz de primeiro grau. Não há corregedoria para segundo grau. Tribunais não têm corregedoria. O Judiciário deveria ter feito o que outras instituições fizeram: ter uma ouvidoria, abrir a porta para o cidadão comum fazer a sua reclamação, saber por que o processo está demorando, por que foi mal atendido.

Folha - E como funcionam os juizados especiais?
Sadek -
Acho que foi uma grande revolução: abrir a porta da Justiça para o cidadão que jamais procura a Justiça por vontade própria. A institucionalização desse tipo de Justiça dependeu da vontade da direção dos tribunais, o que significa que o grau de instabilidade é alto. Você não pode ter um tribunal que dependa da vontade do presidente A, B ou C.

Folha - Criou situações diferenciadas nos Estados.
Sadek - Fica-se dependendo da vontade política da cúpula estaduais. Houve alterações, aumentou o valor da causa. O Judiciário acaba transformando os juizados numa agência de cobrança, para a classe média. Em São Paulo, a pauta dos juizados especiais já está tão sobrecarregada quanto a dos comuns.

Folha - Por que o Judiciário não se comunica bem com a sociedade?
Sadek -
O Duda Mendonça já disse que juiz deveria ter assessor de imprensa. Acho que juiz deveria ter uma assessoria política. Eles não são um poder sagrado. Os juízes têm de estar abertos às mudanças da sociedade.

Folha - Como a sra. vê a escolha dos presidentes dos tribunais?
Sadek -
Obviamente que o modelo atual é muito ruim. Há uma pseudo-competição, entre os que estão mais próximos da aposentadoria. Isso não oxigena. Não desconheço que existe um risco muito grande quando se diz que todos os integrantes têm o mesmo direito, o de politizar o processo.

Folha - Como a sra. vê o juiz como administrador do tribunal?
Sadek -
Esse também é outro traço. O juiz gasta muito tempo em questões administrativas. É um tempo que ele está deixando de fazer aquilo para o que foi treinado. Por menor que seja, o desvia da atividade básica.

Folha - Qual será o efeito desses casos de corrupção no Judiciário?
Sadek -
Primeiro, acho que não há um paralelo com o caso do Tribunal Regional do Trabalho e do juiz Nicolau dos Santos Neto.

Folha - E era a Justiça do Trabalho...
Sadek - Agora, envolve a Justiça Federal, a que mais ganhou poder, pois chamou para si atribuições que eram da Justiça estadual. A grande diferença, a meu ver é o papel do Ministério Público, que está agindo de uma forma responsável. O trabalho foi longo, não vazou para a imprensa. Ao que tudo indica, as responsáveis não estavam atrás de holofotes, o que é louvável. Estão construindo uma imagem diferente da que ficou do episódio Lalau.

Folha - O episódio mostra a necessidade de o MPF entrar na condução do inquérito?
Sadek -
Acho que isso implica uma área de conflito muito grande com a polícia. Acho que quando se pensa em reforma do Judiciário, tem de se pensar em todo o sistema. Se o Judiciário tem que ter um órgão de prestação de contas, de transparência, o mesmo tem que se dizer do Ministério Público. Tem que responsabilizar as pessoas.

Folha - Qual a sua avaliação do episódio envolvendo Nelson Jobim [que revelou alterações incluídas na Constituição de 1988 sem votação de dois turnos no plenário]?
Sadek -
Eu não saberia dar uma boa reposta. Sei especular. Se fosse um político, até entenderia. A questão que fica: alguém que esteve no Executivo, no Legislativo, pode ir para o Supremo?


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