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ENTREVISTA DA 2ª
MARIA TEREZA SADEK
"A instituição se transformou numa burocracia pesada, o que afasta o cidadão comum da Justiça"
Controle externo não resolve os problemas do Judiciário
FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL
O Judiciário não acompanhou
as inovações da sociedade brasileira, diz Maria Tereza Sadek, professora de pós-graduação em
Ciência Política da USP.
"A instituição se transformou
numa burocracia pesada, repleta
de formalismos, o que afasta cada
vez mais o cidadão comum da
Justiça." Segundo Sadek, é indispensável que o Judiciário passe a
prestar contas à sociedade.
Pesquisadora do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, ela estuda o Judiciário desde
1992. Na sua avaliação, as investigações na Justiça Federal tendem
a dificultar a reforma do Judiciário e criam expectativas que poderão ser frustradas. O controle externo do Judiciário não é um ponto central da reforma, diz.
Ela elogia a Operação Anaconda, que reflete uma atuação louvável do Ministério Público Federal, longe dos refletores, ao contrário das investigações sobre o
Fórum Trabalhista de São Paulo.
Folha - Há condições para se fazer
a reforma do Judiciário?
Maria Tereza Sadek - Toda reforma tem conotação política. Infelizmente, o tema só vem à tona
quando há confronto, seja na Justiça, seja no Legislativo.
Folha - Está mais difícil obter a reforma no governo Lula?
Sadek - O governo Lula assumiu
falando de reforma do Judiciário.
E há um confronto da Presidência
da República com o Judiciário. O
ministro do Supremo Tribunal
Federal, Maurício Corrêa, assumiu com uma postura essencialmente política, corporativa, de
defesa da instituição. Não há como fazer uma reforma do Judiciário sem ter forças políticas
apoiando essa reforma. A idéia de
que isso possa nascer de um grupo de especialistas é balela.
Folha - Essa tensão política e a
Operação Anaconda inibem a negociação em torno da reforma?
Sadek - Eu acho que a situação
de tensão, de conflito, gera expectativas que serão facilmente frustradas. Coloca-se energia na criação do controle externo. Como se
isso pudesse resolver todos os
problemas internos do Judiciário.
Folha - O governo Lula contribuiu
para criar essa expectativa?
Sadek - Contribuiu de forma
acentuada, embora a insatisfação
e a intolerância com o Judiciário
sejam muito antigas. Além da
"caixa preta", há a reforma da
Previdência, que colocou lenha
nessa fogueira. Os juízes apareceram como corporativos. Só a parte corporativa ficou visível.
Folha - Qual é o cacife do Judiciário?
Sadek - O Judiciário não assumiu uma dianteira na proposta de
reforma. Assumiu muito mais como uma força de contenção. Mexeu mais no poder de não deixar
as coisas andarem. Diferentemente das outras reformas, não
há grupos com uma proposta
unificada sobre todos os temas.
Folha - Como se dividem esses interesses?
Sadek - Em relação à súmula de
efeito vinculante [prevê que decisões já tomadas pelos tribunais
seriam seguidas por todos os juízes], há uma divisão de grupos.
Os favoráveis à súmula não são os
mesmos favoráveis ao controle
externo. Os favoráveis à súmula
não são os mesmos que defendem
uma democratização interna no
Judiciário. Os grupos não são homogêneos, tudo é mais difícil.
Folha - Na reforma do Judiciário,
quais são os principais atores?
Sadek - Para começar, o Executivo, que tem interesses distintos e
específicos. No Legislativo, a minoria tem interesses que não são
idênticos, muitas vezes são contrários aos da maioria. No Judiciário, a divisão é maior. Há os órgãos de cúpula e os da base. Depois, há a divisão entre a Justiça
federal e a Justiça estadual. E há a
OAB [Ordem dos Advogados do
Brasil], um ator muito importante. E a sociedade civil, menos significativa para fazer pressão.
Folha - Com esse grau de tensão,
deve aumentar a discussão sobre o
controle externo. É o principal?
Sadek - Diria que não. Por isso, a
pergunta que se deve fazer é: o
que se espera do Judiciário?
Folha - O discurso sobre a abertura da "caixa preta" aumentou essa
expectativa em torno do controle?
Sadek - Exatamente. A imagem
que o presidente Lula utilizou é
muito ruim. É oposta ao significado da "caixa preta". Na aviação,
significa desvendar todos os segredos da máquina. Se a máquina
não funciona, se há uma pane, você descobre qual foi o elemento
responsável pelo desastre.
Folha - E o que significaria a "caixa preta" no Judiciário?
Sadek - Não tem o mesmo significado, porque o Judiciário é uma instituição anacrônica. A idéia de "caixa
preta" implicaria
que a instituição tivesse um grau de
racionalidade em
seu funcionamento. É uma imagem
que tem um efeito
simbólico muito
grande: segredos
que são escondidos
e que precisam ter
transparência.
Folha - Como se
explica o anacronismo do Judiciário?
Sadek - O Judiciário não acompanhou as inovações
da sociedade brasileira. Se transformou numa burocracia pesada, repleta de formalismos. O que afasta cada vez mais o
cidadão comum do que é a Justiça
e de como ela funciona. Não se
pode ter uma sociedade democrática com instituições que não sejam republicanas, que não prestem contas à sociedade. Esse é um
dos pontos centrais na reforma.
Folha - Como a sra. vê a proposta
do controle externo?
Sadek - A expressão controle externo tem um efeito simbólico
ruim. Controle significa submissão, uma supervisão. Como o
conceito todo é ruim, tinha que
ser necessariamente rejeitado pelo Judiciário. Até do ponto de vista da acepção mais teórica do sistema presidencialista, que tem
três Poderes harmônicos. O que
pode e deve ter, e é absolutamente
indispensável, é uma prestação de
contas. Toda e qualquer instituição tem que prestar contas. E o Judiciário não faz isso.
Folha - Os mecanismos seriam internos? E o papel das
corregedorias?
Sadek - Corregedoria é disciplinar.
Quantos processos
entraram, quanto
tempo demorou, se
teve recursos...
Folha - Como isso é
feito?
Sadek - O juiz de
primeiro grau está
sendo reduzido à
insignificância. Tudo tem recurso. O
juiz de primeiro
grau é um funcionário público bem
remunerado, fazendo um trabalho sobre o qual nós não
temos controle.
Não se trata de discutir substantivamente a sentença, o conteúdo
da decisão. Mas esse funcionário
público, que vive com o dinheiro
do contribuinte, tem de dizer como gasta o seu tempo.
Folha - O que as pesquisas têm revelado?
Sadek - Se você pegar os processos, entrados e distribuídos, da
Justiça comum de primeiro grau
no ano de 2000 e dividir pela população, chega-se a um processo
para cada 18 habitantes. Isso é
uma conclusão absolutamente
falsa. Pesquisas de opinião mostram que as pessoas evitam ao
máximo recorrer à Justiça. O que
nós temos de perguntar é: qual é a
efetividade desse trabalho. E você
tem dificuldade de responder.
Não se sabe quem são as partes.
Há suposições de que 80% de todas as causas têm a União, os entes públicos como partes. Depois,
vários setores que sabem extrair
benefícios da deficiência do Judiciário. Se você deve, é excelente
entrar na Justiça. Em vez de pagar
hoje, vai pagar daqui a dez anos.
Com juros muito mais baixos do
que os do mercado.
Folha - O que esses dados revelam em relação ao trabalho do juiz?
Sadek - O juiz trabalha muito,
exageradamente, diferentemente
da imagem pública.
Folha - O juiz deve sofrer com um
trabalho não reconhecido.
Sadek - Muito bem. Esse funcionário público, que todo mundo vê
de forma tão negativa, tão crítica,
ao contrário, trabalha demais. O
que nós temos que perguntar é:
para quem estão trabalhando?
Eles não estão garantindo o direito da cidadania, como imaginam.
Estão favorecendo um grupo especial de demandantes.
Folha - Que sabem usar os recursos para postergar os processos.
Sadek - O juiz se perde atrás de
tantos processos. É uma situação
que tinha de ser repensada. Será
que interessa uma reforma do Judiciário?
Folha - Como foi no governo FHC?
Sadek - Na época das privatizações, as minorias entravam questionando a constitucionalidade
das decisões. Ainda que se diga,
"ah, acabou tudo sendo aprovado", brecou muito o sistema. Foi
adiando. E mais do que isso. Como você tem um modelo de controle da constitucionalidade no
Brasil que é difuso, ou seja, cada
juiz tem a possibilidade de exercer
controle, você pode ter decisões
de juízes espalhados em todo o
território nacional. Durante o governo FHC, você tinha uma posição muito clara que era a favor da
súmula de efeito vinculante. Agora, são contra a súmula, mas são a
favor da súmula impeditiva de recurso. Ela engessa menos o Judiciário, porque não obriga que todos os juízes obedeçam as decisões já formuladas, mas ela impede que você faça recurso quando
você já tem uma decisão tomada e
acordada. Obviamente, essa é a
proposta defendida atualmente,
mais fácil de ser aceita pela OAB.
Folha - Como a sra. vê a atuação
do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em relação à reforma?
Sadek - Ele assumiu dizendo que
é necessário iniciar do zero. Fez o
que nenhum ministro havia feito:
criou a Secretaria de Reforma do
Judiciário. É uma boa medida,
porque coordena as experiências.
E não tem a intenção de entender a
reforma do Judiciário apenas como reforma constitucional. Parte do princípio de que é possível melhorar a prestação jurisdicional
com alterações infraconstitucionais e
com mudanças de
natureza administrativa. Obviamente, a magistratura
entende como interferência.
Folha - Em que medida o Judiciário pode avançar internamente? É possível
que, como efeito da
Operação Anaconda, haja uma pressão maior para que
o Judiciário seja mais transparente, para que as corregedorias funcionem. Por que não funcionam?
Sadek - A gente sabe pouco. Os
dados não são disponíveis. Pelas
informações que a gente tem, as
coisas funcionam para juiz de primeiro grau. Não há corregedoria
para segundo grau. Tribunais não
têm corregedoria. O Judiciário
deveria ter feito o que outras instituições fizeram: ter uma ouvidoria, abrir a porta para o cidadão
comum fazer a sua reclamação,
saber por que o processo está demorando, por que foi mal atendido.
Folha - E como funcionam os juizados especiais?
Sadek - Acho que foi uma grande revolução: abrir a porta da Justiça para o cidadão que jamais
procura a Justiça por vontade
própria. A institucionalização
desse tipo de Justiça dependeu da
vontade da direção dos tribunais,
o que significa que o grau de instabilidade é alto. Você não pode
ter um tribunal que dependa da
vontade do presidente A, B ou C.
Folha - Criou situações diferenciadas nos Estados.
Sadek - Fica-se dependendo da vontade política da cúpula estaduais. Houve alterações, aumentou o valor da causa. O Judiciário acaba transformando os
juizados numa agência de cobrança,
para a classe média. Em São Paulo, a
pauta dos juizados especiais já está tão
sobrecarregada quanto a dos comuns.
Folha - Por que o Judiciário não se
comunica bem com a sociedade?
Sadek - O Duda Mendonça já
disse que juiz deveria ter assessor
de imprensa. Acho que juiz deveria ter uma assessoria política.
Eles não são um poder sagrado.
Os juízes têm de estar abertos às
mudanças da sociedade.
Folha - Como a sra. vê a escolha
dos presidentes dos tribunais?
Sadek - Obviamente que o modelo atual é muito ruim. Há uma
pseudo-competição, entre os que
estão mais próximos da aposentadoria. Isso não oxigena. Não desconheço que existe um risco muito grande quando se diz que todos
os integrantes têm o mesmo direito, o de politizar o processo.
Folha - Como a sra. vê o juiz como
administrador do tribunal?
Sadek - Esse também é outro
traço. O juiz gasta muito tempo
em questões administrativas. É
um tempo que ele está deixando
de fazer aquilo para
o que foi treinado.
Por menor que seja,
o desvia da atividade básica.
Folha - Qual será o
efeito desses casos
de corrupção no Judiciário?
Sadek - Primeiro,
acho que não há um
paralelo com o caso
do Tribunal Regional do Trabalho e
do juiz Nicolau dos
Santos Neto.
Folha - E era a Justiça do Trabalho...
Sadek - Agora, envolve a Justiça Federal,
a que mais ganhou poder, pois chamou para
si atribuições que eram
da Justiça estadual. A
grande diferença, a
meu ver é o papel do Ministério Público,
que está agindo de uma forma responsável. O trabalho foi longo, não vazou
para a imprensa. Ao que tudo indica, as
responsáveis não estavam atrás de holofotes, o que é louvável. Estão construindo uma imagem diferente da que
ficou do episódio Lalau.
Folha - O episódio mostra a necessidade de o MPF entrar na condução do inquérito?
Sadek - Acho que isso implica
uma área de conflito muito grande com a polícia. Acho que quando se pensa em reforma do Judiciário, tem de se pensar em todo o
sistema. Se o Judiciário tem que
ter um órgão de prestação de contas, de transparência, o mesmo
tem que se dizer do Ministério
Público. Tem que responsabilizar
as pessoas.
Folha - Qual a sua avaliação do
episódio envolvendo Nelson Jobim
[que revelou alterações incluídas
na Constituição de 1988 sem votação de dois turnos no plenário]?
Sadek - Eu não saberia dar uma
boa reposta. Sei especular. Se fosse um político, até entenderia. A
questão que fica: alguém que esteve no Executivo, no Legislativo,
pode ir para o Supremo?
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