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ELIO GASPARI
Esta é a cota que te cabe deste latifúndio
Muita gente boa acredita
que os policiais devem estar prontos para meter um tiro
na cara do bandido. De acordo
com o que contaram na delegacia, foi essa a idéia que tiveram
os cinco PMs que patrulhavam
uma rua do bairro de Santana,
em São Paulo, há uma semana.
Um comerciante tinha sido assaltado e havia um suspeito no
pedaço. Um negro. De acordo
com os PMs, ele atirou três vezes.
Errou. Mataram-no com dois tiros no peito. Junto ao seu corpo
havia uma arma e no seu bolso,
a carteira do comerciante.
Tudo teatro, farsa de três soldados, um cabo e um tenente.
(Três deles já denunciados à Ouvidoria da Polícia, envolvidos
em casos semelhantes.) O negro
não atirara em ninguém. A carteira foi posta no seu bolso por
um dos PMs. Em diversas ocasiões repetiu-se que Flávio Ferreira Sant'Anna, morto aos 28
anos, era dentista. E se fosse lixeiro desempregado?
O governador paulista Geraldo Alckmin e seu secretário de
Segurança, o promotor Saulo de
Castro Abreu Filho, não devem
olhar para Flávio como um dentista, mas como o filho de Jonas
Sant'Anna, cabo aposentado da
PM. É ele quem fala: "Sei como é
o sistema. Tenho certeza de que,
se ele fosse branco, não morreria".
Era uma vez um governador
chamado Mário Covas. Na sua
Secretaria de Segurança funcionava uma coisa chamada Proar,
ou Programa de Acompanhamento de PMs Envolvidos em
Ocorrências de Alto Risco. Por
trás dessa nomenclatura pernóstica operava um sistema no qual
todos os policiais militares envolvidos em tiroteios que resultassem em morte de cidadãos
eram submetidos a um programa de reciclagem. O policial era
inscrito num curso que durava
um mês. Depois, esperava outros
cinco para retornar às suas funções. Iam para a reciclagem até
os PMs que tivessem atirado em
legítima defesa ou aqueles que
apenas estivessem na cena. O secretário de Segurança de São
Paulo, José Afonso Silva, explicou a essência do programa:
"Queremos evitar novas mortes
e preservar nossos homens".
Em menos de um ano, o Proar
baixou a mortandade de 592 casos para 368. Mesmo assim, a
PM paulista ficou com um índice
oito vezes maior que o da polícia
de Nova York. São muitas as pessoas capazes de associar a capacidade da polícia de matar gente
com a segurança do povo que ela
hipoteticamente protege, mas
nem mesmo o marqueteiro do
governador Geraldo Alckmin seria capaz de dizer que São Paulo
é uma cidade oito vezes mais segura que Nova York.
Em 1998, o candidato Paulo
Maluf anunciou que, se fosse
eleito governador de São Paulo,
fecharia o Proar. O companheiro
José Genoino, candidato do PT,
pegou mais leve: "Não é por toda
morte que o policial precisaria
passar pelo programa. Você tem
de separar o que é erro, perversidade, do que é circunstância de
uma ação delicada da polícia".
Morreu o governador Mário
Covas e assumiu o doutor Alckmin. Passado algum tempo, o
Proar foi à breca, apesar de ser
defendido pelo comandante da
PM, coronel Rui Cesar Melo. Há
menos de duas semanas, ele contou: "Sei muito bem que a minha
defesa do Proar pesou consideravelmente na minha exoneração,
mas era a atitude que eu deveria
assumir, e assim procedi, na defesa das minhas convicções".
Amparados em suas convicções, Alckmin e o secretário Saulo de Castro praticam uma política de segurança que no ano passado resultou na morte de
868 pessoas, um aumento de
29% em relação a 2002 e de
136% sobre 1996.
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