São Paulo, segunda-feira, 11 de junho de 2007

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Entrevista da 2ª/Frei Betto

Lula não tinha que saber sobre investigação de Vavá

Religioso e amigo de Lula defende o irmão do presidente e elogia a PF, mas diz que iniciativas do governo são insuficientes para alcançar a "mudança" prometida

LEANDRO BEGUOCI
DA REPORTAGEM LOCAL

FREI BETTO , 62, afirma que Lula não deveria saber com antecedência sobre as investigações que apontam seu irmão, Vavá, como lobista. Mas defende tanto o irmão do presidente -"é bom, mas ingênuo"- quanto a Polícia Federal. Segundo ele, a polícia faz algo inédito ao não diferenciar ricos e pobres nas suas operações.
Nesta entrevista à Folha, ele ainda afirma que a polícia caminha para ser uma espécie de FBI e fala sobre o lançamento de seu livro "Calendário do Poder", um diário no qual faz um balanço crítico do programa Fome Zero.

 

Assessor especial da presidência entre 2003 e 2004 e amigo de Lula desde os tempos de sindicalismo no ABC, Frei Betto diz que o governo comete um erro fundamental ao não transformar algumas de suas políticas em medidas de Estado, dando a elas um caráter permanente, estrutural.
Na entrevista, o religioso também fala sobre seu novo livro, "Calendário do Poder", no qual afirma que o próprio governo enterrou o programa Fome Zero, e reclama da falta de verbas às pastas sociais.  

FOLHA - Na campanha de 2002, quando o PT falava de combate à corrupção, a Polícia Federal aparecia com pouco destaque. Por que ela virou a principal bandeira do governo nessa área?
FREI BETTO
- Lula deu carta branca ao Márcio Thomaz Bastos [ex-ministro da Justiça], um homem acima de qualquer suspeita, isento e corajoso. Depois, houve a nomeação do Paulo Lacerda para diretor da Polícia Federal, que tem uma carreira brilhante, isenta, com coragem de atuar, inclusive na depuração da própria PF. Nunca houve tanta investigação interna, eles estão cortando na carne e no osso.
No Rio de Janeiro, o Ministério Público começou a trabalhar com a PF e a exercer a função de fiscalização da polícia. Isso é algo bom e pode ser estendido a outros Estados. Se também conseguirmos acabar com os tribunais especiais para a Polícia Militar, então vamos ter uma polícia decente.

FOLHA - A "guerra interna" pela sucessão da PF não mostra os limites desse processo?
FREI BETTO
- A atitude mais sábia seria o ministro Tarso Genro manter o Paulo Lacerda. Ele conseguiu várias coisas, não só depurar mas também qualificar a polícia. Na verdade, é uma guerra de poder, como existe em qualquer instituição.
No caso da polícia, a questão se torna mais complexa à medida que a polícia tem de ser isenta. Acho que a figura da pedra angular é o Paulo Lacerda.

FOLHA - Mas isso cria um problema, à medida que a PF se orienta não por regras, mas por uma pessoa.
FREI BETTO
- Tem de institucionalizar esses controles, os passos estão sendo dados. A PF foi positivamente anabolizada no governo Lula. Está se sentindo com boa auto-estima, com reconhecimento não só do governo mas também da opinião pública. Há vontade de pegar aquilo que no Brasil sempre foi impune e imune, que são os criminosos de colarinho branco.

FOLHA - Isso é suficiente?
FREI BETTO
- Se amanhã vem outro governo e faz refluir essa ação da PF, esse governo ficará sob suspeita da opinião pública.
Há uma nova cultura sendo criada, de que não há intocáveis na sociedade brasileira. Não importa qual o nível social do criminoso. É claro, precisamos ter critérios, não podemos cair em uma caça às bruxas, isso seria extremamente perigoso. Por isso é importante não ideologizar nem partidarizar a atuação de qualquer polícia.
A PF está se qualificando muito do ponto de vista tecnológico e do preparo dos agentes. Eles estão ficando com a cara do FBI [escritório de investigação dos EUA]. A PF está virando uma referência mundial.

FOLHA - A empolgação do sr. com a PF é a de alguém que ainda se sente parte do governo?
FREI BETTO
- A minha história é a de alguém que sempre demonstrou indignação com a impunidade. Não sou empolgado. Vejo na PF hoje o primeiro exemplo de uma atuação qualificada que não faz distinção de classe nem de pessoa. Isso tem de ser exemplo para todo o aparelho policial brasileiro.

FOLHA - O governo Lula tem oferecido bons exemplos?
FREI BETTO
- Não gosto de individualizar, porque posso cometer injustiças. Uma coisa é a suspeita e outra é a prova. Há uma série de políticos que fazem parte da coalização do governo que não me agradam e a quem não deixaria na mão um sorvete esperando por uma criança.
O que fico indignado é que vem político propor foro especial para quem já foi político. Isso é absurdo, uma aberração.
Na minha concepção, quem não deveria ter nenhum foro especial é o político. Nenhum foro especial e pena em dobro.

FOLHA - Segundo o ministro da Justiça, Lula soube antes da operação que vasculhou a casa do irmão dele. Isso é correto?
FREI BETTO
- Nenhum de nós está acima da possibilidade de ser investigado. Não tem que avisar ninguém. O Lula não tinha de saber, não tem de saber. Só têm de saber as pessoas que são responsáveis pela investigação.

FOLHA - Pessoas próximas ao presidente se envolveram em dossiês contra adversários e, agora, um amigo é acusado de ser dono de bingo. O irmão do presidente é acusado de de ser lobista. O sr. conhece Lula faz tempo. Era possível imaginar que isso aconteceria?
FREI BETTO
- Foi uma grande surpresa. Quanto ao Vavá, acho que é inocente. Ele tem bom coração, para ele todo mundo é bom, às vezes é ingênuo até demais. Quanto aos outros, foi surpresa, mas devo dizer que nunca fui próximo a essa turma. Não quero fazer prejulgamento, vamos esperar. Continuo aguardando que o PT cumpra a promessa de investigar e, se preciso, punir os envolvidos em todos os escândalos. Mas, até agora, não aconteceu nada.

FOLHA - Qual a principal característica desse governo?
FREI BETTO
- O governo Lula fez uma grande reforma na pintura e na disposição da casa, mas não mexeu na estrutura da casa. A palavra mais forte do discurso de posse do primeiro mandato foi mudança. E as mudanças não ocorreram. Há iniciativas positivas na área social, no combate à corrupção, a Marina Silva no meio ambiente. Agora, vindo o outro governo, infelizmente a estrutura da casa permanecerá a mesma.
Nada garante que essas iniciativas passem a ser políticas de Estado. Hoje, elas são políticas de governo. Não tem reforma agrária, não tem reforma previdenciária que realmente onere os mais ricos.

FOLHA - Chávez tem mexido nas "estruturas da casa". É um modelo?
FREI BETTO
- O modelo do Chávez não é uma alternativa para a gente. Não dá para mirar em ninguém lá fora e falar "esse é o exemplo". Não é isso. Nos 16 anos que vão se completar com o fim do mandato do Lula, a população brasileira votou em alguém de esquerda. Primeiro votou no Fernando Henrique, que tinha imagem de esquerda. Depois votou no Lula. Há um desejo de mudança na população, no eleitorado. A população vota em candidatos progressistas, é um fenômeno latino-americano. Não é só brasileiro. É um chega para lá nas velhas oligarquias.
Votei no Lula, votaria hoje de novo, é claro, mas as iniciativas são insuficientes para mexer na estrutura, na institucionalidade brasileira. Se vem um outro governo, um governo do DEM, o antigo PFL, tudo volta para trás porque as estruturas não foram mexidas.
O Brasil precisa de cinco reformas que têm de ser profundas: política, previdenciária, tributária, agrária e a reforma da educação, que considero fundamental. Dou parabéns ao Fernando Haddad [ministro da Educação] pelo trabalho que está fazendo, espero que os R$ 8 bilhões de que ele precisa para esse PAC da Educação sejam liberados, porque no Brasil também tem isso: o dinheiro é aprovado, mas o ministério da Fazenda não solta.

FOLHA - O sr. se sente frustrado pelo tempo que passou no governo?
FREI BETTO
- A vida inteira, não fiz outra coisa que não querer mudar. Já não creio que vou participar da colheita, mas faço questão de morrer semente.
Houve um tempo em que achei que meu tempo pessoal se confundiria com o tempo histórico.
Não vou dizer que as coisas andaram para trás. Têm melhorado. Depende também de toda uma conjuntura mundial.
Há maior insatisfação com esse processo de "globocolonização". A questão do ambiente criou um nó porque atinge indistintamente todas as classes sociais e todos os países.
Quem sabe o meio ambiente, para surpresa da velha esquerda, não será uma ferramenta de mudanças radicais no planeta?
O grande problema no Brasil é que a nossa democracia é meramente virtual, porque a sociedade fica vendo de baixo a ilha da fantasia sem ter mecanismos de interação com ela.

FOLHA - Essa era a pasta que o sr. e o Oded Grajew tinham no começo do governo Lula?
FREI BETTO
- Era a pasta de mobilização social. No meu livro "Calendário do Poder", descrevo todo o processo de ascensão e queda dessa mobilização. De como o governo criou um gabinete de mobilização, mas não forneceu os recursos. É a primeira vez que um governo criou algo do tipo. Mas não ofereceu os recursos, ficou difícil.
O Fome Zero foi engolido pelo Bolsa Família. Durante todo o primeiro mandato, foi considerado a principal política. Mas o próprio governo que criou uma política social que virou grife, o que é fato inédito na história política deste país, tratou de enterrar o Fome Zero.
Tratou de enterrar para fazer uma política focalizada, de dependência dos beneficiários ao poder público. Até hoje o Bolsa Família não tem porta de saída.
O governo inteiro sabe qual é, mas não tem coragem: é a reforma agrária, a única maneira de 11 milhões de famílias passarem a produzir a própria renda e ficarem independentes, emancipadas do poder público.
Você não pode fazer política social para manter as pessoas sob uma esmola permanente.
Nem por isso considero o Bolsa Família negativo, devo dizer isso. O problema é que não pode se perenizar.

FOLHA - E o que aconteceu com o programa do PT? O Lula se "emancipou" do PT?
FREI BETTO
- O PT virou sujeito oculto ou correia de transmissão, quando deveria ser justamente a voz da sociedade junto ao governo, é papel do partido, e não ser a voz do governo junto à sociedade. O lulismo superou o petismo.


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