São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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NO PLANALTO

Só um incêndio geral e irrestrito salva o Brasil

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

O banqueiro Daniel Dantas é uma espécie de Nero irresoluto. Sempre que o país arde em escândalo, surge um Suetônio para imputar-lhe a culpa. Ele, embora invariavelmente presente à cena do crime, insiste em recusar o papel de piromaníaco.
A lira do imperador das finanças soa agora em meio ao incêndio do PTgate. Ele é um dos provedores de graveto$ das contas de Marcos Valério. No encalço da grana que comprou a ética petista, a CPI dos Correios convocou Dantas para depor na próxima semana.
É improvável que o dono do Opportunity assuma a condição de incendiário. Enredará os inquisidores numa teia de meias verdades. Talvez só conte a metade que é mentira. O Brasil merece a parte verdadeira.
Imbatível na arte de fazer fortuna com dinheiro alheio, Dantas sabe que não há arcas mais alheias do que os fundos de pensão. Vem daí a ânsia com que sempre procurou acercar-se dos manda-chuvas dos fundões. Sob Lula, esbarrou na má vontade de Luiz Gushiken. Chamuscado pela crise, o samurai do Planalto teve de embainhar a espada. Mas, até bem pouco, mantinha um olho nas verbas publicitárias da Viúva e outro na carteira de investimentos dos fundões.
Munido de dados recolhidos em espionagem que encomendara à Kroll, Dantas farejara a antipatia de Gushiken antes mesmo da posse de Lula. Falando à CPI, renderia um tributo à decência se rememorasse a saga valeriana que teve de percorrer para chegar ao gabinete de José Dirceu, o ex-chefão da Casa Civil. O crepitar da conjuntura tisnou um relacionamento que se pretendia lucrativo.
Dantas homenagearia o decoro se ajudasse também a iluminar os porões de um passado recente. Sua convocação fez correr um frêmito de pavor na espinha do tucanato. Mago das privatizações da era FHC, Dantas é detentor de segredos insondáveis.
Em 2004, o banqueiro cogitou abrir o bico. Sondou jornalistas dispostos a ouvi-lo. Na última hora, recuou. Viu-se assediado por prioridades mais urgentes. A bisbilhotagem encomendada à Kroll acomodara a Polícia Federal nos seus calcanhares.
O Brasil foi privado de revelações só franqueadas a pessoas que privam da intimidade dos corredores do Opportunity. Gente como Ney Figueiredo, ex-consultor da Febraban, da Fiesp e da CNI, contratado no ano passado para polir a imagem de Dantas.
Em dezembro de 2004, recém-desembarcado da missão, que se revelou impossível, Figueiredo lançou o livro "Diálogos com o Poder". Dedica um capítulo à venda das telefônicas: "(...) O problema das privatizações no Brasil passa pelo financiamento das campanhas eleitorais, tendo como subproduto as malsinadas sobras de campanha e o pedágio do intermediário (...)".
Figueiredo reproduz no livro uma pergunta que Dantas confidenciara a políticos de sua confiança: "O que aconteceu com o ex-diretor do Banco do Brasil Ricardo Sérgio de Oliveira, levando-se em conta a história que circula nos bastidores sobre os famosos US$ 30 milhões que teriam sobrado na operação da Telemar?". Ricardo Sérgio é aquele personagem que emergiu dos célebres grampos do BNDES como operador que agiu "no limite da irresponsabilidade".
Figueiredo diz que a grande fonte das tesourarias eleitorais é o setor público. "Nesse sentido", escreve, "cabe perguntar: onde foram parar os US$ 200 milhões que a Itália Telecom, como sócia da Brasil Telecom [controlada por Dantas], teria pago a mais pela Cia. Riograndense de Telecomunicações (CRT)?"
Há na CPI dos Correios um deputado familiarizado com a encrenca. O petista José Eduardo Cardozo encaminhou ao Ministério Público um pedido de investigação do suposto sobrepreço da CRT. Entre os documentos que fundamentam a requisição há uma inquietante carta do publicitário Mauro Salles ao então presidente FHC.
A serviço de Dantas, Salles atuou como mediador da alienação da CRT. Contribuiu para reduzir o preço da companhia em US$ 50 milhões. Na carta a FHC, escreveu: "Meu caro presidente, (...) estive com o ministro Pimenta da Veiga (Comunicações), junto com Daniel Dantas (...). O objetivo do encontro era a busca de sintonia (...), visando equacionar os problemas que cercam a compra da CRT".
Salles foi ao ponto: "Fiquei surpreso quando o ministro afirmou que a nossa interpretação dos posicionamentos do presidente [da República] estavam equivocadas". Àquela altura (julho de 2000), "interpretações maliciosas" difundidas "a partir da Itália tentavam implicar o presidente em uma armação inconcebível." Insinuava-se que FHC estaria de acordo com o ágio embutido no valor da CRT.
Salles arrematou a carta com um apelo a FHC: "Preciso de uma palavra sua para dissipar as dúvidas levantadas pelo ministro Pimenta (...) Desculpe o desabafo. E não me deixe sozinho nesta luta em que estou (...) procurando defender (...) o próprio interesse nacional".
O repórter obteve cópia de um alentado dossiê preparado por Salles. Reúne documentos que envolvem a transação da CRT numa bruma de incômoda suspeição. Cardozo talvez se anime a questionar Dantas sobre os meandros desse negócio.
O Nero da antigüidade responsabilizou os cristãos pelo incêndio que consumiu Roma. No rastro das imputações pereceram figuras como são Pedro e são Paulo. Dantas, o Nero pós-moderno, administra fogos menos propensos a tais artifícios. Numa Brasília capaz de produzir um católico presidente da Câmara vendido no varejo a "R$ 10 mil" não há santos a inculpar.
Resta ao brasileiro rezar para que Dantas quebre o silêncio. No ponto de ebulição em que se encontra, a crise reclama um fogaréu capaz de livrar o país do banho-maria que o mantém no pântano eterno. O Brasil precisa alcançar o estágio de cinzas, para se credenciar a um renascimento de fênix. Só o incêndio fatal e irrestrito pode nos redimir.


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