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NO PLANALTO
Só um incêndio geral e irrestrito salva o Brasil
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
O banqueiro Daniel Dantas é uma espécie de Nero
irresoluto. Sempre que o país arde em escândalo, surge um Suetônio para imputar-lhe a culpa.
Ele, embora invariavelmente
presente à cena do crime, insiste
em recusar o papel de piromaníaco.
A lira do imperador das finanças soa agora em meio ao incêndio do PTgate. Ele é um dos provedores de graveto$ das contas
de Marcos Valério. No encalço
da grana que comprou a ética
petista, a CPI dos Correios convocou Dantas para depor na
próxima semana.
É improvável que o dono do
Opportunity assuma a condição
de incendiário. Enredará os inquisidores numa teia de meias
verdades. Talvez só conte a metade que é mentira. O Brasil merece a parte verdadeira.
Imbatível na arte de fazer fortuna com dinheiro alheio, Dantas sabe que não há arcas mais
alheias do que os fundos de pensão. Vem daí a ânsia com que
sempre procurou acercar-se dos
manda-chuvas dos fundões. Sob
Lula, esbarrou na má vontade
de Luiz Gushiken. Chamuscado
pela crise, o samurai do Planalto
teve de embainhar a espada.
Mas, até bem pouco, mantinha
um olho nas verbas publicitárias
da Viúva e outro na carteira de
investimentos dos fundões.
Munido de dados recolhidos
em espionagem que encomendara à Kroll, Dantas farejara a antipatia de Gushiken antes mesmo da posse de Lula. Falando à
CPI, renderia um tributo à decência se rememorasse a saga
valeriana que teve de percorrer
para chegar ao gabinete de José
Dirceu, o ex-chefão da Casa Civil. O crepitar da conjuntura tisnou um relacionamento que se
pretendia lucrativo.
Dantas homenagearia o decoro se ajudasse também a iluminar os porões de um passado recente. Sua convocação fez correr
um frêmito de pavor na espinha
do tucanato. Mago das privatizações da era FHC, Dantas é detentor de segredos insondáveis.
Em 2004, o banqueiro cogitou
abrir o bico. Sondou jornalistas
dispostos a ouvi-lo. Na última
hora, recuou. Viu-se assediado
por prioridades mais urgentes. A
bisbilhotagem encomendada à
Kroll acomodara a Polícia Federal nos seus calcanhares.
O Brasil foi privado de revelações só franqueadas a pessoas
que privam da intimidade dos
corredores do Opportunity. Gente como Ney Figueiredo, ex-consultor da Febraban, da Fiesp e da
CNI, contratado no ano passado
para polir a imagem de Dantas.
Em dezembro de 2004, recém-desembarcado da missão, que se
revelou impossível, Figueiredo
lançou o livro "Diálogos com o
Poder". Dedica um capítulo à
venda das telefônicas: "(...) O
problema das privatizações no
Brasil passa pelo financiamento
das campanhas eleitorais, tendo
como subproduto as malsinadas
sobras de campanha e o pedágio
do intermediário (...)".
Figueiredo reproduz no livro
uma pergunta que Dantas confidenciara a políticos de sua confiança: "O que aconteceu com o
ex-diretor do Banco do Brasil Ricardo Sérgio de Oliveira, levando-se em conta a história que circula nos bastidores sobre os famosos US$ 30 milhões que teriam sobrado na operação da
Telemar?". Ricardo Sérgio é
aquele personagem que emergiu
dos célebres grampos do BNDES
como operador que agiu "no limite da irresponsabilidade".
Figueiredo diz que a grande
fonte das tesourarias eleitorais é
o setor público. "Nesse sentido",
escreve, "cabe perguntar: onde
foram parar os US$ 200 milhões
que a Itália Telecom, como sócia
da Brasil Telecom [controlada
por Dantas], teria pago a mais
pela Cia. Riograndense de Telecomunicações (CRT)?"
Há na CPI dos Correios um deputado familiarizado com a encrenca. O petista José Eduardo
Cardozo encaminhou ao Ministério Público um pedido de investigação do suposto sobrepreço
da CRT. Entre os documentos
que fundamentam a requisição
há uma inquietante carta do publicitário Mauro Salles ao então
presidente FHC.
A serviço de Dantas, Salles
atuou como mediador da alienação da CRT. Contribuiu para
reduzir o preço da companhia
em US$ 50 milhões. Na carta a
FHC, escreveu: "Meu caro presidente, (...) estive com o ministro
Pimenta da Veiga (Comunicações), junto com Daniel Dantas
(...). O objetivo do encontro era a
busca de sintonia (...), visando
equacionar os problemas que
cercam a compra da CRT".
Salles foi ao ponto: "Fiquei surpreso quando o ministro afirmou que a nossa interpretação
dos posicionamentos do presidente [da República] estavam
equivocadas". Àquela altura (julho de 2000), "interpretações
maliciosas" difundidas "a partir
da Itália tentavam implicar o
presidente em uma armação inconcebível." Insinuava-se que
FHC estaria de acordo com o
ágio embutido no valor da CRT.
Salles arrematou a carta com
um apelo a FHC: "Preciso de
uma palavra sua para dissipar
as dúvidas levantadas pelo ministro Pimenta (...) Desculpe o
desabafo. E não me deixe sozinho nesta luta em que estou (...)
procurando defender (...) o próprio interesse nacional".
O repórter obteve cópia de um
alentado dossiê preparado por
Salles. Reúne documentos que
envolvem a transação da CRT
numa bruma de incômoda suspeição. Cardozo talvez se anime
a questionar Dantas sobre os
meandros desse negócio.
O Nero da antigüidade responsabilizou os cristãos pelo incêndio que consumiu Roma. No rastro das imputações pereceram figuras como são Pedro e são Paulo. Dantas, o Nero pós-moderno,
administra fogos menos propensos a tais artifícios. Numa Brasília capaz de produzir um católico presidente da Câmara vendido no varejo a "R$ 10 mil" não
há santos a inculpar.
Resta ao brasileiro rezar para
que Dantas quebre o silêncio. No
ponto de ebulição em que se encontra, a crise reclama um fogaréu capaz de livrar o país do banho-maria que o mantém no
pântano eterno. O Brasil precisa
alcançar o estágio de cinzas, para se credenciar a um renascimento de fênix. Só o incêndio fatal e irrestrito pode nos redimir.
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