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Leia a íntegra do discurso do presidente
Leia a seguir a íntegra do discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso na ONU:
"Ao saudar Vossa Excelência, senhor presidente, presto tributo à República da Coréia, que
dá ao mundo um exemplo de dedicação à paz e
ao desenvolvimento. Reitero minha admiração
ao secretário-geral Kofi Annan, que junto com a
ONU recebeu a merecida homenagem do prêmio Nobel da Paz. Mais do que nunca, precisamos agora de sua lucidez e coragem no esforço
de construção de uma ordem internacional pacífica, democrática e solidária. Só o fanatismo se
recusa a ver a grandeza da missão das Nações
Unidas e de Kofi Annan.
Senhor presidente, senhoras e senhores, por
uma tradição que remonta aos primórdios desta organização, o mês de setembro em Nova
York é marcado por uma celebração do diálogo:
a abertura do debate desta Assembléia Geral.
Não foi assim este ano. A ação mais contrária ao
diálogo e ao entendimento entre os homens
marcou o mês de setembro em Nova York, como também em Washington: a violência absurda de um golpe vil e traiçoeiro dirigido contra os
Estados Unidos da América e contra todos os
povos amantes da paz e da liberdade.
Foi uma agressão inominável a esta cidade,
que, talvez mais do que qualquer outra, é símbolo de uma visão cosmopolita. Uma cidade
que sempre acolheu indivíduos de toda parte,
como aos judeus holandeses de origem portuguesa que no século 17 se transferiram do Brasil
para a então Nova Amsterdã. Nova York cresceu, prosperou e firmou-se dentro dos valores
do pluralismo. Fez-se grande e admirada não só
por sua herança judaica, anglo-saxã, mas também pela presença árabe, latina, africana, caribenha, asiática. Os atentados de 11 de setembro
de 2001 foram uma agressão a todas essas tradições. Uma agressão à humanidade.
Como primeiro chefe de Estado a falar nesta
sessão da Assembléia Geral, quero ser muito
claro, como o fiz na própria manhã daqueles
horríveis atentados e nos contatos com o presidente George W. Bush: o Brasil empresta integral solidariedade e apoio ao povo norte-americano em sua reação ao terrorismo. Para nós, todo o continente americano foi atingido. Daí
nossa iniciativa de propor a convocação do órgão de consulta do Tratado Interamericano de
Assistência Recíproca.
O terrorismo é o oposto de tudo o que a ONU
representa. Destrói os princípios de convivência
civilizada. Impõe o medo e compromete a tranquilidade e segurança de todos os países. As vítimas de qualquer ato terrorista não estarão sozinhas, e seus responsáveis indivíduos, grupos ou
Estados que os apóiem não ficarão impunes.
Encontrarão nos povos livres uma aliança sólida disposta a levantar barreiras contra a marcha
da insensatez.
A carta das Nações Unidas reconhece aos Estados membros o direito de agir em autodefesa.
Isto não está em discussão. Mas é importante
termos consciência de que o êxito na luta contra
o terrorismo não pode depender apenas da eficácia das ações de autodefesa ou do uso da força
militar de cada país. O compromisso das Nações Unidas, em 1945, foi o de trabalhar para
fundar a paz e preservar as gerações futuras do
flagelo da guerra. A guerra tem sempre um pesado custo humano. Um custo em vidas interrompidas, em vidas refugiadas e amedrontadas.
Tudo isso realça a responsabilidade dos terroristas pelo que sucede hoje. O Brasil espera que,
apesar de todas as circunstâncias, não se vejam
frustradas as ações de ajuda humanitária ao povo do Afeganistão. Mais ainda: dentro de nossas
possibilidades, estamos dispostos a abrigar refugiados que queiram integrar-se ao nosso país.
Há coisas que são óbvias, mas que merecem
ser repetidas: a luta contra o terrorismo não é,
nem pode ser, um embate entre civilizações,
menos ainda entre religiões. Nenhuma das civilizações que enriquecem e humanizam nosso
planeta pode dizer que não conheceu, em seu
próprio interior, os fenômenos da violência e do
terror. Em todo o mundo, problemas de segurança pública, consumo e tráfico de drogas,
contrabando de armas, lavagem de dinheiro são
males afins ao terrorismo, que devemos extirpar.
Quero sugerir, desta tribuna, a realização de
uma campanha mundial de opinião pública que
conscientize os usuários de drogas em todos os
países para o fato de que estão, ainda que involuntariamente, contribuindo para financiar o
terrorismo. Se pretendemos estrangular o fluxo
de recursos de que as redes ou facções terroristas se valem para espalhar a destruição e a morte, é imprescindível reduzir drasticamente o
consumo de drogas em nossas sociedades.
Além disso, devemos evitar que as diferenças
de regimes fiscais entre os países sirvam como
instrumento para a evasão de divisas essenciais
ao desenvolvimento ou como proteção para as
finanças do crime organizado, inclusive de
ações terroristas. Se a existência de paraísos fiscais for indissociável desses problemas, então
não devem existir paraísos fiscais. Coloquemos
um fim a esses abrigos da corrupção e do terror,
até hoje admitidos complacentemente por alguns governos.
Senhor presidente, é natural que, após 11 de
setembro, os temas da segurança internacional
assumam grande destaque. Mas o terrorismo
não pode silenciar a agenda da cooperação e das
outras questões de interesse global. O caminho
do futuro impõe utilizar as forças da globalização para promover uma paz duradoura, baseada, não no medo, mas na aceitação consciente
por todos os países de uma ordem internacional
justa.
Sobre essa questão, tenho procurado mobilizar as várias lideranças mundiais. O Brasil quer
contribuir para que o mundo não desperdice as
oportunidades geradas pela crise de nossos
dias. Pensemos na causa do desenvolvimento,
um imperativo maior. Há um mal-estar indisfarçável no processo de globalização. Não me
refiro a um mal-estar ideológico, de quem é
contra a globalização por princípio, ou de quem
recusa a idéia de valores universais, que inspiram a liberdade e o respeito aos direitos humanos. Mas ao fato de que a globalização tem ficado aquém de suas promessas. Há um déficit de
governança no plano internacional, e isso deriva de um déficit de democracia. A globalização
só será sustentável se incorporar a dimensão da
justiça. Nosso lema há de ser o da "globalização
solidária", em contraposição à atual globalização assimétrica.
No comércio, já é hora de que as negociações
multilaterais resultem em maior acesso dos
produtos dos países em desenvolvimento aos
mercados mais prósperos. Os ministros reunidos em Doha têm uma pesada responsabilidade: a de fazer com que o novo ciclo de negociações multilaterais de comércio seja realmente
uma "Rodada do Desenvolvimento". Para isso,
é indispensável avançar com prioridade nos temas mais relevantes para a eliminação das práticas e barreiras protecionistas nos países desenvolvidos.
O Brasil, que vem liderando negociações para garantir maior acesso aos mercados e melhores condições humanitárias para o combate às
doenças, buscará encontrar o ponto de equilíbrio entre a necessária preservação dos direitos
de patente e o imperativo de atender aos mais
pobres. Somos pelas leis de mercado e pela proteção à propriedade intelectual, mas não ao custo de vidas humanas. Este é um ponto a ser criteriosamente definido. A vida há de prevalecer
sobre os interesses materiais.
Senhor presidente, é necessário renovar as
instituições de Bretton Woods e prepará-las para os desafios do século 21. É preciso dotar o
FMI de mais recursos e de capacidade para ser
um emprestador de última instância, e atribuir
ao Banco Mundial e aos bancos regionais o papel de promotores mais ativos do desenvolvimento. Devemos reduzir a volatilidade dos fluxos internacionais de capital e assegurar um sistema financeiro mais previsível, menos sujeito a
crises, na linha do que vem sendo proposto pelo
G-20.
No mesmo sentido, embora não se ignorem
as dificuldades práticas de um mecanismo como a "taxa Tobin", poderíamos examinar alternativas melhores e menos compulsórias. Proponho que a Conferência sobre o Financiamento do Desenvolvimento, a realizar-se no próximo ano em Monterrey, dedique especial atenção a essas questões. Pensemos, também, em
formas práticas de cooperação para amenizar o
drama da Aids, sobretudo na África. Até quando o mundo ficará indiferente à sorte daqueles
que ainda podem ser salvos das enfermidades,
da miséria e da exclusão?
O final do século 20 marcou o fortalecimento
de uma consciência de cidadania planetária, alicerçada em valores universais. O Brasil está decidido a prosseguir nessa direção. O Tribunal
Penal Internacional será um avanço histórico
para a causa dos direitos humanos.
A proteção do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável são também desafios inadiáveis de nosso tempo. A marcha das alterações
climáticas é um fato cientificamente estabelecido, mas não é inexorável. O futuro depende do
que fizermos hoje, em particular com relação ao
Protocolo de Kyoto. É preciso encontrar a melhor maneira de implementá-lo. Ele não pode
ser posto à margem.
Os eventos atuais, inclusive nesta cidade,
mostram a dimensão da ameaça das armas de
destruição em massa. Quer se trate de armas
bacteriológicas, como o antraz, de armas químicas ou nucleares, não há alternativa ao desarmamento e à não-proliferação. Impedir que a ciência e a tecnologia se transformem em arma dos
insensatos é imperativo ético, que só se efetiva
com a interferência ativa e legítima das Nações
Unidas no controle, destruição e erradicação
desses arsenais.
Senhor presidente, assim como apoiou a
criação do Estado de Israel, o Brasil hoje reclama passos concretos para a constituição de um
Estado Palestino democrático, coeso e economicamente viável. O direito à autodeterminação do povo palestino e o respeito à existência
de Israel como Estado soberano, livre e seguro
são essenciais para que o Oriente Médio possa
reconstruir seu futuro em paz. Esta é uma dívida moral das Nações Unidas. É uma tarefa inadiável. Como inadiável é a superação definitiva
do conflito em Angola, que merece a oportunidade de retomar seu caminho de desenvolvimento. O mesmo futuro o Brasil deseja ao Timor Leste, que esperamos ver em breve ocupando seu assento nesta Assembléia como representação soberana.
Para responder a problemas cada vez mais
complexos, o mundo precisa de uma ONU forte
e ágil. A força da ONU passa por uma Assembléia Geral mais atuante, mais prestigiada, e por
um Conselho de Segurança mais representativo, cuja composição não pode continuar a refletir o arranjo entre os vencedores de um conflito
ocorrido há mais de 50 anos, e para cuja vitória
soldados brasileiros deram seu sangue nas gloriosas campanhas da Itália.
Como todos aqueles que pregam a democratização das relações internacionais, o Brasil reclama a ampliação do Conselho de Segurança e
considera ato de bom senso a inclusão, na categoria de membros permanentes, daqueles países em desenvolvimento com credenciais para
exercer as responsabilidades que a eles impõe o
mundo de hoje. Como considera inerente à lógica das atuais transformações internacionais a
expansão do G-7 ou G-8. Já não faz sentido circunscrever a um grupo tão restrito de países a
discussão dos temas que têm a ver com a globalização e que incidem forçosamente na vida política e econômica dos países emergentes.
Senhor presidente, uma ordem internacional
mais solidária e mais justa não existirá sem a
ação consciente da comunidade das nações. É
um objetivo demasiado precioso para ser deixado ao sabor das forças do mercado ou aos caprichos da política de poder. Não aspiramos a um
governo mundial, mas não podemos contornar
a obrigação de assegurar que as relações internacionais tenham rumo e reflitam a vontade de
uma maioria responsável.
A sombra nefasta do terrorismo demonstra o
que se pode esperar se não formos capazes de
fortalecer o entendimento entre os povos. Esta
organização foi criada sob o signo do diálogo.
Diálogo entre Estados soberanos que sejam súditos de nações livres, cujos povos participem
ativamente das decisões nacionais. Com sua
ajuda, vamos fazer com que o século 21 não seja
o tempo do medo. Que seja o florescimento de
uma humanidade mais livre, em paz consigo
mesma, na caminhada sensata para a construção de uma ordem internacional legítima, aceita
pelos povos e ordenadora das ações dos Estados
no plano global.
Este é o desafio do século 21. Saibamos enfrentá-lo com a visão grandiosa dos fundadores
desta organização, que sonharam com um
mundo plural, baseado na paz, na solidariedade, na tolerância, e na razão que é a matriz de todo o direito. Muito obrigado."
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