São Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 2002

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ENTREVISTA DA 2ª

Bird manipulou estatísticas para apontar diminuição, afirma Robert Wade

Pobreza não caiu, diz economista

ANDRÉ SOLIANI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A conclusão do Bird (Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, conhecido como Banco Mundial) de que a pobreza no mundo diminuiu entre 1980 e 1998 não é confiável, pois é baseada numa comparação ilegítima, afirma o professor de Política Econômica da London School of Economics e ex-economista do próprio Bird, Robert Wade.
Em 1999, o Banco Mundial mudou a metodologia para contar o número de pobres que existem no mundo. A instituição recalculou a pobreza com base na nova metodologia para todos os anos a partir de 1987. De 1987 para trás, porém, ela manteve os números baseados no método anterior.
O professor sustenta que o banco comparou diretamente os anos de 1980 e 1998, uma decisão que desrespeita uma regra básica da estatística: só é possível comparar dados compilados a partir da mesma metodologia. Para o professor, a escolha da metodologia e das datas de comparação foi influenciada por pressão política: "O banco, como instituição, e o seu presidente, [James" Wolfensohn, querem ter boas notícias".
Em artigo, ainda não publicado, Wade conta que no final dos anos 90, o economista Joseph Stiglitz, na época ainda no Bird, escreveu documento no qual o número de pobres no mundo tinha aumentado entre 1987 e 1998. Logo após o relatório de Stiglitz, o Congresso dos EUA montou a Comissão Meltzer, na qual o Banco Mundial foi acusado de não conseguir cumprir sua principal função: reduzir a pobreza no mundo. Wade afirma que o relatório Meltzer, publicado em 2000, influenciou a produção de um novo relatório do banco, o "Globalization, Growth, and Poverty: Building an Inclusive World Economy". No relatório, as datas de comparação foram mudadas, e o resultado foi uma queda na pobreza mundial.
Os novos números foram uma redenção para os defensores do Consenso de Washington. A globalização teria feito com que a pobreza caísse pela primeira vez em 150 anos. O problema, afirma Wade, é que "essa comparação [1980 e 1998" é simplesmente ilegítima". Leia os principais trechos da entrevista telefônica que Wade concedeu à Folha, de Londres.
 

Folha - De um lado, o movimento antiglobalização diz que a pobreza no mundo cresceu. Do outro, temos o relatório "Globalization, Growth, and Poverty: Building an Inclusive World Economy", do Banco Mundial, mostrando que a pobreza caiu de 1980 a 1998. Quem está certo?
Robert Wade -
Você se referiu aos movimentos antiglobalização. Eu tenho problemas com esse termo. As pessoas colocadas debaixo desse guarda-chuva não são necessariamente antiglobalização. Eu não sei qual seria um termo melhor. Um conceito que ganhou alguma importância é o de "Movimento pela Justiça Global". É importante sair dessa dicotomia globalização/antiglobalização. Aceitar esses termos no debate torna fácil a vitória dos defensores da globalização.

Folha - Mas quem está certo? Quem diz que a pobreza cresceu ou quem sustenta que ela diminuiu?
Wade
- A única resposta sincera é que não sabemos. Mas é uma resposta insatisfatória. Podemos estar razoavelmente certos, no entanto, de que o número de pessoas vivendo em extrema pobreza é maior do que o número divulgado pelo Banco Mundial. O Bird afirma que o número de pessoas vivendo na pobreza permaneceu constante desde 1987 e que caiu em 200 milhões entre 1980 e 1998. O banco afirma que isso aconteceu pela primeira vez nos últimos 150 anos. Eu afirmo que os número de pobres é provavelmente maior que o do Banco Mundial (1,2 bilhão de pessoas), e que não podemos ter nenhuma segurança de que o número de pobres caiu. A razão para essa afirmação tem haver com a forma como o banco compila suas estatísticas.

Folha - Qual o problema com a forma que o Bird compila os dados?
Wade -
Um dos problemas -não é o único- é que o banco mudou a metodologia de calcular o número de pobres em 1999. Ele recalculou o número de pobres com a nova metodologia apenas para os anos que vão de 1987 a 1998. Os números de pobreza anteriores a 1987 ainda são baseados na antiga metodologia. No entanto, eles comparam os dados de 1980 com os de 1998. Essa comparação é simplesmente ilegítima. Tem muito pouca validade.

Folha - Uma das regras básicas da estatística é nunca comparar números compilados com metodologias distintas. Por que o Banco Mundial faria isso?
Wade -
O banco, como instituição, e o seu presidente, Wolfensohn, querem ter boas notícias. Boa notícia é a queda do número de pessoas vivendo na miséria. Se a quantidade de pobres está aumentando, serão levantadas questões sobre a eficiência do Bird como uma instituição desenhada para aliviar a pobreza. Por isso existe uma tendência institucional para o otimismo.

Folha - O senhor está afirmando que as questões políticas influenciam a escolha da metodologia?
Wade -
Sim. Mas aí existe um problema sério. Se você conhecesse as pessoas responsáveis por calcular esses dados, você saberia que elas não são de maneira nenhuma corruptas. São profissionais íntegros. Não são marionetes nas mãos da direção. O comentarista, como eu, tem dificuldade de reconciliar essa questão com a afirmação que fiz acima. Eu não tenho resposta. Só posso reconhecer esse problema.

Folha - Pouco antes do relatório mais recente do Bird que mostra queda no número de pobres, o economista Joseph Stiglitz produziu um documento mostrando um crescimento nesse número. O número de pobres no mundo depende de quem escreve o relatório?
Wade -
Sim. É possível dizer que existe uma tendência dos números escolhidos e a forma como eles são apresentados variarem com a pessoa que tem autoridade na parte do banco responsável pelo relatório.

Folha - Quando o Bird mudou a metodologia de contagem dos pobres foi esclarecida a razão da mudança e divulgados os critérios?
Wade -
Muitas das coisas que o Banco Mundial fez nunca foi explicada publicamente. Um economista chamado Sanjay Reddy, da Universidade de Colombia (EUA), precisou gastar muito tempo para descobrir junto a funcionários do Bird qual era a nova metodologia, simplesmente porque eles não haviam divulgado. Não posso dizer que eles esconderam a informação deliberadamente. Eu não sei. Pode ser. Uma segunda hipótese é que eles estavam muito ocupados para prestar atenção a essa questão.

Folha - Os números do Bird são muito importantes. Serviram para ajudar a legitimar uma série de afirmações dos que defendem a globalização. Não é um erro do banco fazer comparações que o sr. diz ilegítimas e não revelar publicamente a nova metodologia?
Wade -
Eu acho que o Banco Mundial foi no mínimo descuidado. O número de pessoas vivendo na pobreza é muito importante. É usado pelo mundo todo. O banco precisaria ser explícito sobre como calcula esse número para que pessoas independentes pudessem escrutinar a metodologia.
Vou mencionar mais um problema com a metodologia do banco, seja a nova ou a antiga. Ambas não são baseadas numa cesta de consumo necessária para superar a pobreza. Elas são baseadas numa cesta média de consumo, que inclui uma lista de produtos e serviços, que não são necessários para sair da pobreza. Até massagens estão incluídas nessa cesta.

Folha - Não se pode confiar nas estatísticas do Banco Mundial?
Wade -
Existem estatísticas do banco que também são produzidas por organizações independentes. Mas há outras, como no caso do número de pobres, em que o banco é o único provedor de informações. Nos casos em que o banco detém o monopólio é preciso muita cautela.

Folha - Se fosse possível provar definitivamente que os dados do Banco Mundial estão errados, o sr. acha que o movimento pró-globalização teria de rever sua agenda?
Wade -
O argumento pró-globalista se baseia no alegado fato de que a pobreza se reduziu nos últimos 20 anos e que a desigualdade no mundo está caindo. Se essas duas tendências não forem verdadeiras, isso forçará uma reconsideração séria das estratégias de desenvolvimento.

Folha - Existe evidência empírica para corroborar a sua tese de que a pobreza e a desigualdade cresceram nos últimos 20 anos?
Wade -
Sobre desigualdade existem vários estudos que concluem que a desigualdade cresce no mundo. Um dos problemas é que a tendência da desigualdade depende da metodologia que se usa. As pessoas que afirmam que a desigualdade caiu estão sendo desonestas, pois não deixam claro que ela está caindo apenas em uma ou duas formas de medi-la. A maioria dos estudos mostra que a desigualdade provavelmente cresceu.

Folha - E no caso da pobreza?
Wade -
- No caso da pobreza, o problema é que não existe nenhum estudo independente que não se baseie nos dados do Banco Mundial. O único que se pode fazer é mostrar a série de problemas na metodologia do banco que reduz a confiança nas conclusões. Quando se analisa como o banco chegou a esses números, se percebe que parece que houve um viés sistemático nas escolhas, cujo efeito é fazer os números parecerem menores e a tendência ser de queda.

Folha - O que é mais importante, a desigualdade ou a pobreza?
Wade -
Essa é uma questão muito complexa. O Banco Mundial está dando pouco importância para a desigualdade no mundo. O Bird não gosta de falar de desigualdade. O seu foco é pobreza. Um das razões para o Bird não falar de desigualdade é que os países ricos não gostariam que o Bird ou outra pessoa qualquer ficasse falando sobre o tamanho do fosso entre as rendas deles e as de outros países.



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