São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JANIO DE FREITAS

Pinochet imortal


Pinochet é prova aberrante de que o ciclo militarista na região perdeu suas ditaduras, mas seu espírito sobrevive

AUGUSTO PINOCHET morre, mas não se vai. E não só pelo que suas escassas idéias e seus tantos feitos signifiquem, em passado e em presente, para a metade do Chile que o idolatra e para a metade do Chile que o abomina.
Augusto Pinochet foi até ontem, em vida, e será ainda por tempos incalculáveis, como memória, a prova mais aberrante de que o ciclo militarista na América do Sul perdeu suas ditaduras, mas o espírito que o constituiu sobrevive e se impõe incontestado em quase todas as ex-ditaduras. Exceto só, em grande parte, a Argentina de Néstor Kirchner.
Augusto Pinochet assassino em massa, corrupto, ladrão, traidor da soberania do seu país desmentiu, até a última respiração, a tão propalada democracia chilena, encanto dos devotos do mercado -esse eufemismo que tanto exprime negócios como negociatas. O Judiciário do Chile não pôde fazer mais do que uns poucos arremedos de iniciativa processual, para logo voltar atrás apesar, ou por isso mesmo, de todas as razões e fundamentos para ir adiante. Arremedos que o restante de brio nacional praticou em nome de alguma aparência humilhada, desde que um juiz espanhol tomou a si a tarefa de mostrar o que o direito e a dignidade humana tinham a dizer sobre o velho criminoso. A exceção no Chile, personificada no condenado general Contreras, decorreu de exigência dos Estados Unidos, até onde a ditadura chilena estendeu sua mão assassina.
Augusto Pinochet mostrou que o Congresso do Chile não pôde contrariar a recusa militar a toda inovação legal que expressasse o predomínio real do poder civil e da Constituição de intenções democráticas. Portador de uma honrosa história pessoal e política, o socialista Ricardo Lagos presidiu o Chile sem poder ir além de cautelosas evidenciações de que não enfraqueceria o poder civil. A presidente Bachelet, também socialista e, também, portadora de história pessoal tão bela quanto triste, está imobilizada pelo justificado risco de que a agitação popular, decorrente de insatisfações econômicas e estudantis, leve militares a mostrar o que continuam pensando e sendo, à imagem do seu grande líder.
Augusto Pinochet viu seus similares uruguaios sobreporem-se à chamada democratização do país tal como Chile e no Brasil. A recente prisão de Juan Maria Bordaberry, títere civil da ditadura militar uruguaia, está recebida como passo inicial do presidente Tabaré Vasquez para dar sentido ao poder civil e à Constituição do Uruguai. A cautela, a demora e a incidência sobre um civil mostram o que é o poder subjacente na vida uruguaia.
Augusto Pinochet é a expressão de um estado que engloba o Brasil. Em 22 anos de regime civil os brasileiros ainda não puderam conhecer os arquivos militares da ditadura. Fernando Henrique Cardoso tratou de aumentar o tempo de proibição ao acesso de grande parte dos documentos históricos nacionais. Uma das promessas solenes de Lula, quando candidato e como presidente, foi o esclarecimento do episódio do Araguaia, mas nunca se passou de pequenas farsas para aplacar a persistência de cobranças. As famílias de desaparecidos nas mãos de militares continuam sem o direito de recolher os despojos de seus filhos e pais assassinados. Uma obviedade destes dias: há outra explicação para o comandante da Aeronáutica não estar exonerado, com toda a vexatória crise do tráfego aéreo e dos aeroportos, senão o fato de ser militar?


Texto Anterior: Outro lado: Construtora culpa demora no pagamento
Próximo Texto: CPI pretende indiciar só três no caso dossiê
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.