São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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A irrelevante leveza da moral tucana


O doutor Pedro Parente, chefe da Casa Civil da Presidência, acaba de adicionar boa filosofada à galeria de astúcias com que o andar de cima faz de bobo ao de baixo.
Colocado diante da proposta de dar ao salário mínimo o mesmo percentual de aumento que o governo aceita oferecer aos deputados (44%), informou que isso não pode ser feito porque "não há relação direta entre o reajuste do teto e o do mínimo". Mesmo assim, considerou a proposta "moralmente relevante".
É isso mesmo. Para que o teto da casa-grande suba, o chão da senzala tem que ficar onde está. Até aí tudo bem. O ministro ganhou o seu lugar na galeria da parolagem do atraso quando saiu-se com o "moralmente relevante".
Velha empulhação. A ekipekonômica deveria comparar os argumentos que usa hoje contra o aumento do salário mínimo com os que o andar de cima usava em 1870 contra a Lei do Ventre Livre e, em 1885, contra a libertação dos sexagenários.
FFHH e todos os seus sábios insistem em dizer que, em tese, são a favor de um salário mínimo justo.
Em 1870, Perdigão Malheiro, propagador do conceito segundo o qual o escravo era uma coisa e não um ser, também combatia a escravidão:
"Abolicionista de cabeça e de coração, não desejo todavia a emancipação precipitada e irrefletida. (...) É preciso que tomemos providências que, gradualmente, como por uma escada, nos conduzam àquele fim."
Os sábios dizem hoje que o aumento do salário mínimo quebra a Previdência.
Em 1870, o deputado Rodrigo Silva condenava a pura e simples libertação dos negros que viessem a nascer perguntando o seguinte:
"Não teremos necessidade, por exemplo, de auxiliar estabelecimentos de educação que recebam as crianças escravas libertas?"
Em 1885, o deputado Ildefonso Araújo perguntava de onde sairiam os recursos para que "o governo criasse em cada município um asilo de inválidos para receber aquelas infelizes criaturas".
Há duas semanas, o governo americano divulgou um relatório no qual disse que o salário mínimo de R$ 136 "não é suficiente para proporcionar um padrão de vida decente para o trabalhador e sua família".
O Palácio do Planalto ofendeu-se:
"São problemas nossos, com os quais nos preocupamos, com ou sem relatório de outro governo."
Velharia. Em 1880 os abolicionistas deram um banquete ao ministro americano no Rio, Henry Hilliard, um ex-combatente das tropas do Sul durante a guerra civil americana. Ele contava que a abolição não arruinara os Estados Unidos. O deputado Moreira de Barros viu na homenagem "clara e manifesta intervenção de um representante de uma nação estrangeira em uma questão nossa, inteiramente doméstica".
O doutor Parente não teve uma idéia relevante. No século passado, ninguém se opunha moralmente à libertação dos escravos, tudo era uma questão de oportunidade.
O discurso do tucanato tem apenas menos estilo e mais mistificação, pois no Império o conselheiro José Antonio Saraiva tinha coragem de expor seu interesse: "Acabar com a escravidão, sem que as nossas rendas diminuam".
Caso algum sábio de Brasília queira conhecer melhor o que sua turma fazia no século passado, pode pedir a FFHH o seu volume de "Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil", do professor Robert Conrad. (É possível que ele tenha a edição da Universidade da Califórnia, em inglês, o que lhes facilitará a leitura.) Se outro sábio quiser saber mais da libertação dos negros velhos, terá que comprar "Entre a Mão e os Anéis - A Lei dos Sexagenários e os Caminhos da Abolição no Brasil", de Joseli Nunes Mendonça. Esse FFHH não tem, porque se o doutor Armínio Fraga descobrir que ele anda lendo coisas da editora da Unicamp, faz as malas e volta para a Casa de Soros.


O médico do DOI deixou uma aula para a procuradora Zandonade


A procuradora da Fazenda Nacional Adriana Zandonade quer inaugurar um novo capítulo na história dos direitos humanos no Brasil. Ela meteu-se numa história comprida e vale a pena contá-la desde o início.
No dia 5 de maio de 1971 a cidadã Inês Etienne Romeu, quadro de chefia da organização terrorista VAR-Palmares, foi presa em São Paulo pelo delegado Sérgio Fleury. Três dias depois, tendo passado pelo Hospital Central do Exército, no Rio, foi levada para uma casa em Petrópolis (rua Artur Barbosa, 668, propriedade de Mario Lodders). Lá ficou até o dia 11 de agosto. Foi sistematicamente torturada e, por duas vezes, estuprada.
Tornou-se a única pessoa a sair viva daquilo que mais tarde viria a se chamar Casa da Morte. Era um aparelho clandestino do Centro de Informações do Exército, tripulado por oficiais no exercício burocrático de suas funções. Pelas contas de Inês, lá foram mortas pelo menos quatro pessoas.
Atualmente, Inês Etienne Romeu está na Justiça, pedindo que se reconheça que foi mantida em cárcere privado por torturadores a serviço do governo da época. Não quer mais nada. Não está pedindo indenização pelo que lhe fizeram.
A doutora Zandonade sustentou que a denúncia de tortura e cárcere privado não se sustenta porque Inês "nem sequer identifica" as pessoas que a mantiveram em cativeiro. Foi clara: "caberia à requerente indicar com clareza quem é o autor dos atos de tortura, incumbindo-lhe produzir a prova".
Beleza. Nesse caso, não desapareceu ninguém na guerrilha do Araguaia. Primeiro, porque o Exército jamais admitiu a sua existência. Segundo, porque os desaparecidos desapareceram. Da mesma forma, ninguém pode dizer que foi torturado no DOI-Codi, a menos que traga a identidade do torturador e o livro de ponto do calabouço.
Os procuradores são pagos para defender os interesses do Estado, mas qualquer vestibulando de direito sabe que isso não significa defender crimes praticados pelos governantes.
A doutora Zandonade não quis levar em conta o depoimento do tenente-médico Amilcar Lobo, que servia no DOI-Codi do Rio de Janeiro e reconheceu ter atendido Inês Etienne Romeu na casa de Petrópolis. Soberba. O depoimento do oficial deveria ser suficiente. Pergunta o advogado de Inês, Fábio Konder Comparato:
"Ela internou-se na casa de Petrópolis para uma cura de repouso? Terá o Exército por função providenciar o atendimento sigiloso de particulares?"
Felizmente, graças a Amilcar Lobo, que foi injustamente massacrado pela esquerda por ter contado o que fizera e o que sabia, a doutora Zandonade pode aprender mais a respeito do caso que rebarbou:
1) Em seu livro "A Hora do Lobo, a Hora do Carneiro", Amilcar contou que foi mandado pelo major Rubens Sampaio (codinome Teixeira) à casa de Petrópolis para cuidar de uma presa ferida. Era Inês.
2) Sampaio contou a Lobo que "existia uma ordem do próprio ministro do Exército (Orlando Geisel) para que todas as pessoas que abandonaram o país, principalmente as que escolheram o Chile como refúgio, deveriam ser mortas após esclarecerem devidamente as atividades terroristas do grupo a que pertenciam. (...) Os presos eram interrogados e, posteriormente, mortos".
4) Noutra ocasião, Lobo foi mandado por Sampaio a Petrópolis para cuidar de um preso chamado Papaleo, que via um tigre no jardim. Quando disse ao major que ele levaria algum tempo para recuperar a razão, viu Sampaio fazer o seguinte:
"Enquanto falava, colocou a mão direita no interior do casaco, na altura do peito e a retirou munida com uma pistola. Em seguida disparou um tiro, um único apenas, e o projétil, creio, atingiu a cabeça de Papaleo.
- Lobo, não é a primeira vez que mato alguém aqui em Petrópolis, você sabe bem disso. Já foram mais de dez que seguiram este destino", disse-lhe o major.
Uma coisa é certa. A doutora Zandonade conseguiu entrar para a pobre história dos direitos humanos nacionais. Não há por que duvidar de que ostentará a sua contestação ao caso de Inês Etienne como um indicador de sua competência profissional.


Honra ao mérito
O leitor Marcos Bechert pede que se registre que a Sociedade Evangélica de Estrela (RS) devolveu-lhe a diferença cobrada pelo aumento de custos resultante do fim das isenções tributárias das escolas particulares pertencentes a entidades filantrópicas.
A isenção foi suspensa pelo Congresso no final de 1998 e restabelecida pelo Supremo Tribunal Federal em julho de 1999. A esmagadora maioria das escolas aumentou as mensalidades para compensar aquilo que gastaria com o fim do subsídio e continuou cobrando mais caro depois que ele foi extinto.
Bechert tem dois filhos no Colégio Martin Luther e recebeu um cheque de R$ 249,56.
A comunidade luterana de Estrela, que já teve como professor Augusto Geisel (pai do presidente), faz filantropia. Quem não devolveu o dinheiro cobrado a mais faz pilantropia.


Saiu um livro que leva Jackie a sério


Saiu nos Estados Unidos a primeira biografia de Jacqueline Kennedy que conseguiu ver nessa grande mulher um personagem da história americana. É "Jacqueline Bouvier Kennedy Onassis", de Donald Spoto.
É um livro simples, quase pedestre. Tem baixíssimos teores de fofoca. (Kennedy só teve um encontro com Marilyn Monroe, à tarde, na casa do cantor Bing Crosby, no deserto da Califórnia. Depois de enviuvar, Jackie teve três, noves fora Onassis e Maurice Tempelsman, com quem vivia quando morreu, em 1993.)
Sua virtude está na capacidade de mostrar uma mulher que lutou para educar os filhos, preservar a memória do marido e sua própria vida pessoal. Conseguiu as três coisas.
Aqui vão algumas pérolas de uma grande vida:
- Quando criança, Jacqueline viu-se sozinha no Central Park, enquanto sua irmã e a babá a procuravam. Ela se aproximou de um guarda e disse:
"Minha irmã e minha babá se perderam."
- "O que o seu pastor alemão come?" - perguntou-lhe um jornalista.
"Repórteres."
- Na véspera:
"Estou adorando a idéia de ir a Dallas."
- No dia, quando um médico não queria que ela entrasse na sala do hospital onde estava o corpo de Kennedy:
"Doutor, o senhor acha que eu vou ficar chocada ao ver o caixão do meu marido? Eu o vi morrer no meu colo. Estou toda ensanguentada. O que eu posso ver de pior?"
- Sua única referência, indireta, às infidelidades do marido na Casa Branca, durante uma conversa sobre o futuro:
"O que é que você vai fazer, John? Eu não quero virar mulher de um diretor de colégio de garotas."
(Só no corpo de estagiárias da Casa Branca, Kennedy tinha duas Monica Lewinsky.)
- Em 1962, quando seu filho Patrick morreu 40 horas depois do parto, Kennedy deu-lhe um catálogo da joalheria Van Cleef & Arpels, dizendo-lhe que podia escolher o que quisesse. Jackie escolheu uma medalha de ouro com a imagem de São Cristovão e a deu de presente a ele. (Kennedy usava a medalha na tarde em que foi assassinado.)
- Quando a quimioterapia provocou-lhe a queda dos cabelos:
"Quem sabe lanço uma moda de turbantes?"


Má idéia
Suspeita-se que tenha ressuscitado um velho projeto de criação de 300 miniagências do Banco do Brasil em municípios do interior.
Elas funcionariam com uma máquina de saques automáticos e um balcão, terceirizado, onde seriam vendidos serviços financeiros do banco.
Num ano de eleições municipais, falta apenas que o Banco do Brasil inaugure cada miniagência com o retrato de seu padrinho político.


Classificado
Valendo-se do abuso adquirido que a lei chama de férias, o signatário oferece o prazer da sua ausência pelos próximos quatro domingos.


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