São Paulo, segunda-feira, 12 de abril de 2004

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Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
O antropólogo Otávio Velho, professor titular do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro; ao fundo, o Pão de Açúcar


ENTREVISTA DA 2ª

OTÁVIO VELHO

Antropólogo afirma que política tem ética própria e vê "amadurecimento" a partir do escândalo Waldomiro

Lula paga o preço por ter sido eleito com discurso moralista

CLAUDIA ANTUNES
COORDENADORA DE REDAÇÃO DA SUCURSAL DO RIO

MURILO FIUZA DE MELO
DA SUCURSAL DO RIO

O antropólogo Otávio Velho, professor do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), acredita que o caso Waldomiro, ao desmistificar o discurso ético que o próprio PT ajudou a criar, deixou claros os limites do moralismo na política.
"Do ponto de vista da lógica da ação política, eles [o governo] tinham mesmo que evitar essa CPI. Eu não faço nenhum julgamento moral a respeito disso. Agora, como ele [Lula] se elegeu carregando muito em cima do discurso moralista, está pagando o preço por isso. E tem que pagar, não tem outro jeito."
Para Velho, a política tem uma ética própria na qual, sem cair no vale-tudo, o importante é o resultado. Ele lembra a distinção que há, na língua inglesa, entre "politics" (a política partidária propriamente dita) e "policy" (as políticas implementadas por meio de acordos políticos), e diz acreditar que a maioria da população entende a diferença melhor do que a academia.
O antropólogo não compartilha da opinião de que a frustração das expectativas provocadas pela eleição de Lula, expressa na recente queda de popularidade do presidente, pode provocar desencanto com a democracia.
"Talvez uma das coisas boas dessa experiência que estamos vivendo seja o amadurecimento político. A gente deixa de depositar toda esperança em cima do jogo político para passar a ver a política apenas como algo instrumental. Nesse sentido, a idéia de um bom gerenciamento é fundamental. O ideal é ter um bom gerenciador e não acreditar em grandes rupturas ou alterações profundas e absolutas", disse Velho, em entrevista à Folha.
Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Folha - Em novembro de 2002, logo após a eleição de Lula, o sr. disse que o assédio popular a ele não deveria ser confundido com "messianismo", porque o presidente era visto pelos eleitores como um igual, e não como um salvador. Como o sr. avalia a imagem de Lula agora?
Otávio Velho -
Muitas vezes, a elite acredita que suas preocupações são imediatamente universalizadas, quando isso não acontece necessariamente. É impressionante que a perda de popularidade de Lula seja muito mais gradativa e menos abrupta do que a gente poderia imaginar pelas manchetes dos jornais e pelo debate político. Sem dúvida nenhuma, estamos diante de uma situação complicada na política. Fernando Henrique [Cardoso, ex-presidente] não deixa de ter razão quando fala da inexperiência do PT, mas isso é óbvio. A gente tem que passar por isso, a não ser que queiramos acabar com a democracia e permitir que haja monopólio de um grupo político que se acha iluminado e insubstituível.

Folha - Segundo Fernando Henrique, o que há é inoperância no governo e falta de um projeto de longo prazo...
Velho -
A sensação de paralisia, fora os aspectos operacionais que possam estar ocorrendo, se deve a uma expectativa exagerada para os dias de hoje sobre o que se pode fazer quando se está no governo. A gente sabe que a margem de manobra dos Estados nacionais é muito pequena, justamente porque eles estão subordinados a uma dinâmica e a uma lógica global que os impede de agir independentemente. É por isso que dizem que o governo Lula repete o de Fernando Henrique. Talvez uma das coisas boas dessa experiência que estamos vivendo seja o amadurecimento político de uma parte considerável da população brasileira.

Folha - Como assim?
Velho -
Amadurecimento político no sentido de que a gente deixa de depositar toda esperança em cima do jogo político para passar a apostar mais em outras coisas da vida, vendo a política apenas como algo instrumental. Nesse sentido, a idéia de um bom gerenciamento é fundamental. O ideal é ter um bom gerenciador e não acreditar em grandes rupturas ou alterações profundas e absolutas.

Folha - Mas há quem afirme que essa situação pode resultar em dois riscos: a perda de interesse pela política eleitoral, pelo voto, ou a eleição de um candidato com discurso salvacionista. Com o sr. avalia isso?
Velho -
Nós temos que navegar para evitar dois grandes obstáculos na política: a ingenuidade e o cinismo. O primeiro permite a eleição de um salvacionista. O cinismo é fruto da idéia de que é "tudo a mesma coisa". Não é isso. Temos que olhar com uma lente de aumento para perceber na micropolítica as diferenças entre as propostas.

Folha - A Europa passou por essa situação de desilusão com promessas de mudanças profundas, depois dos governos socialistas de François Mitterrand na França [1981 a 1993] e de Felipe González na Espanha [1982 a 1996]. Isso pode acontecer no Brasil em relação ao governo Lula?
Velho -
Pode gerar uma desilusão para aqueles que tinham uma esperança desmedida, algo que não faz mais parte da nossa época. Por outro lado, não podemos cair no pólo oposto, de achar que é tudo a mesma coisa. Está bem claro que há uma diferença entre os governos Clinton e Bush, ou, na Espanha, entre Aznar e o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol). Há diferenças também entre o governo Lula e o de Fernando Henrique.

Folha - Por exemplo?
Velho -
A política externa. Para mim, o ponto alto do governo Lula. Houve realmente uma ousadia, uma capacidade, que faz diferença. Agora, voltando à questão da desilusão, há uma certa dificuldade hoje de se saber qual é de fato a natureza da atividade política, uma tendência de avaliar a política com parâmetros que não são dela.

Folha - O sr. pode explicar melhor?
Velho -
Nesses momentos de escândalo e de corrupção, por exemplo. A idéia de que saiu alguma coisa errada permite que surja uma espécie de moralismo pelo qual tudo é julgado a partir da moral e da ética. Não é assim que as coisas acontecem. Você não julga um bom artista pelo seu aspecto moral, mas por ele ser bom naquilo que faz. Um bom político não é necessariamente o mais moral ou o mais ético.

Folha - Mas essa análise não leva à velha máxima do "rouba, mas faz"?
Velho -
Isso é imagem caricata. A minha afirmação é de que o predicado principal não é ser moral ou ético, mas ser um bom político. Isso não significa que não exista uma moral e uma ética da política. Nesse caso, a moral e a ética devem ser instrumentos para que a política se realize bem. Em inglês existem dois termos que tratam disso: "politics" e "policy". Eu diria que a boa "politics" é a capacidade de realizar a "policy", ou seja, a capacidade de agregar recursos humanos e não-humanos para alcançar objetivos.
Acredito que o moralismo da sociedade moderna está tirando o espaço da política e isso é muito grave. Acho que a política tem suas regras próprias e que essas regras devem ter um controle externo, feito, por exemplo, pela mídia. O problema é que a própria mídia tem a sua dinâmica. Ela tem que vender jornal, fazer notícia e há essa história de ficar o tempo inteiro criando slogans. Numa hora é o salvacionismo, outra hora é a mexicanização [suposta tentativa do PT de perpetuar-se no poder por meio do controle da máquina pública] do país. Ora, a mexicanização ruiu rapidinho. Tudo é muito efêmero.

Folha - Ao falar do moralismo que cerceia a política, o sr. está se referindo à crítica às coalizões partidárias, à disputa por cargos?
Velho -
Sim. É o mesmo raciocínio do sujeito que prometeu alguma coisa na eleição e não cumpriu quando foi eleito. A idéia de uma absoluta transparência nesse campo não existe e às vezes resulta em uma situação patológica que permite a instrumentalização de demandas morais e éticas com intenções oportunistas e hipócritas. O PT fez isso antes da eleição, continuou a fazer depois que ganhou e, agora, é vítima desse jogo.
Cito o exemplo da demissão do Luiz Eduardo Soares [ex-secretário nacional de Segurança Pública, demitido por contratar a mulher e a ex-mulher para estudos sobre a violência], uma pessoa próxima a mim. Foi uma vergonha, porque se utilizaram motivos morais para realizar um ato imoral, por meio da divulgação de documentos apócrifos acusando o sujeito disso e daquilo. Ou seja, a moral, que parece uma coisa boa, está seguidamente na política a serviço do mal.

Folha - E no caso Waldomiro Diniz?
Velho -
Alguma coisa de ruim aconteceu aí, mas há uma grande hipocrisia no sentido de que a gente sabe que todos [os partidos e candidatos] montam caixa dois em busca de recursos. O negócio é fazer isso e não ser pego. Agora, se você não faz direito e é apanhado, então, vira escândalo, que tem a função de focalizar um caso para abafar os outros. Nesse caso, seria melhor entender essas necessidades de recursos [de campanha] para se criar uma legislação adequada.

Folha - Por essa lógica, o sr. acha que o PT agiu certo ao bloquear a criação da CPI do caso Waldomiro no Congresso?
Velho -
Do ponto de vista da lógica da ação política, eles tinham mesmo que evitar essa CPI. Eu não faço nenhum julgamento moral a respeito disso. Agora, como ele [Lula] se elegeu carregando muito em cima do discurso moralista, está pagando o preço por isso. E tem que pagar, não tem outro jeito. O que se espera é que, a partir de um amadurecimento político, não ocorra mais esse tipo de expectativa, de ilusões.

Folha - Pesquisas do Datafolha mostram que a expectativa do cumprimento rápido de promessas de campanha de Lula é menor nas faixas de menor renda e escolaridade. Por que isso ocorre, na sua opinião?
Velho -
Em geral, o povão é mais realista em relação à política, vista como uma espécie de mal necessário. O povão não tem as ilusões dos bem-pensantes, que somos nós. A partir daí, eles avaliam a política do ponto-de-vista mais pragmático, que eventualmente pode levar ao "rouba, mas faz", mas não necessariamente. A política pode ser, para eles, algo mais grandioso.

Folha -O sr. não acha que esse realismo não é desmobilizante, uma ameaça à democracia?
Velho -
Pelo contrário, acho que ameaça à democracia são justamente essas ilusões da elite e, portanto, a outra face que são as desilusões.

Folha - Como professor de uma universidade pública, qual é a sua avaliação sobre a reforma da Previdência?
Velho -
Evidentemente que a gente sabia que a situação da Previdência era insustentável e que alguma coisa tinha que ser feita. Se a gente quer redistribuição de renda, em alguma medida a nossa faixa tinha que ceder. Na verdade, a gente está sempre se queixando da vida. Agora, se o governo será capaz de gerenciar essas mudanças e se de fato haverá benefícios concretos para as camadas populares, a gente não sabe.



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