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Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
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O antropólogo Otávio Velho, professor titular do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro; ao fundo, o Pão de Açúcar |
ENTREVISTA DA 2ª
OTÁVIO VELHO
Antropólogo afirma que política tem ética própria e vê "amadurecimento" a partir do escândalo Waldomiro
Lula paga o preço por ter sido eleito com discurso moralista
CLAUDIA ANTUNES
COORDENADORA DE REDAÇÃO DA SUCURSAL DO RIO
MURILO FIUZA DE MELO
DA SUCURSAL DO RIO
O antropólogo Otávio Velho,
professor do Museu Nacional da
UFRJ (Universidade Federal do
Rio de Janeiro), acredita que o caso Waldomiro, ao desmistificar o
discurso ético que o próprio PT
ajudou a criar, deixou claros os limites do moralismo na política.
"Do ponto de vista da lógica da
ação política, eles [o governo] tinham mesmo que evitar essa CPI.
Eu não faço nenhum julgamento
moral a respeito disso. Agora, como ele [Lula] se elegeu carregando muito em cima do discurso
moralista, está pagando o preço
por isso. E tem que pagar, não tem
outro jeito."
Para Velho, a política tem uma
ética própria na qual, sem cair no
vale-tudo, o importante é o resultado. Ele lembra a distinção que
há, na língua inglesa, entre "politics" (a política partidária propriamente dita) e "policy" (as políticas implementadas por meio
de acordos políticos), e diz acreditar que a maioria da população
entende a diferença melhor do
que a academia.
O antropólogo não compartilha
da opinião de que a frustração das
expectativas provocadas pela eleição de Lula, expressa na recente
queda de popularidade do presidente, pode provocar desencanto
com a democracia.
"Talvez uma das coisas boas
dessa experiência que estamos vivendo seja o amadurecimento
político. A gente deixa de depositar toda esperança em cima do jogo político para passar a ver a política apenas como algo instrumental. Nesse sentido, a idéia de
um bom gerenciamento é fundamental. O ideal é ter um bom gerenciador e não acreditar em
grandes rupturas ou alterações
profundas e absolutas", disse Velho, em entrevista à Folha.
Abaixo, os principais trechos da
entrevista.
Folha - Em novembro de 2002, logo após a eleição de Lula, o sr. disse
que o assédio popular a ele não deveria ser confundido com "messianismo", porque o presidente era
visto pelos eleitores como um
igual, e não como um salvador. Como o sr. avalia a imagem de Lula
agora?
Otávio Velho - Muitas vezes, a
elite acredita que suas preocupações são imediatamente universalizadas, quando isso não acontece
necessariamente. É impressionante que a perda de popularidade de Lula seja muito mais gradativa e menos abrupta do que a
gente poderia imaginar pelas
manchetes dos jornais e pelo debate político. Sem dúvida nenhuma, estamos diante de uma situação complicada na política. Fernando Henrique [Cardoso, ex-presidente] não deixa de ter razão
quando fala da inexperiência do
PT, mas isso é óbvio. A gente tem
que passar por isso, a não ser que
queiramos acabar com a democracia e permitir que haja monopólio de um grupo político que se
acha iluminado e insubstituível.
Folha - Segundo Fernando Henrique, o que há é inoperância no governo e falta de um projeto de longo prazo...
Velho - A sensação de paralisia,
fora os aspectos operacionais que
possam estar ocorrendo, se deve a
uma expectativa exagerada para
os dias de hoje sobre o que se pode fazer quando se está no governo. A gente sabe que a margem de
manobra dos Estados nacionais é
muito pequena, justamente porque eles estão subordinados a
uma dinâmica e a uma lógica global que os impede de agir independentemente. É por isso que dizem que o governo Lula repete o
de Fernando Henrique. Talvez
uma das coisas boas dessa experiência que estamos vivendo seja
o amadurecimento político de
uma parte considerável da população brasileira.
Folha - Como assim?
Velho - Amadurecimento político no sentido de que a gente deixa
de depositar toda esperança em
cima do jogo político para passar
a apostar mais em outras coisas
da vida, vendo a política apenas
como algo instrumental. Nesse
sentido, a idéia de um bom gerenciamento é fundamental. O ideal é
ter um bom gerenciador e não
acreditar em grandes rupturas ou
alterações profundas e absolutas.
Folha - Mas há quem afirme que
essa situação pode resultar em dois
riscos: a perda de interesse pela política eleitoral, pelo voto, ou a eleição de um candidato com discurso
salvacionista. Com o sr. avalia isso?
Velho - Nós temos que navegar
para evitar dois grandes obstáculos na política: a ingenuidade e o
cinismo. O primeiro permite a
eleição de um salvacionista. O cinismo é fruto da
idéia de que é
"tudo a mesma
coisa". Não é isso.
Temos que olhar
com uma lente de
aumento para
perceber na micropolítica as diferenças entre as
propostas.
Folha - A Europa
passou por essa situação de desilusão com promessas de mudanças
profundas, depois
dos governos socialistas de François Mitterrand na
França [1981 a
1993] e de Felipe
González na Espanha [1982 a 1996].
Isso pode acontecer no Brasil em
relação ao governo Lula?
Velho - Pode gerar uma desilusão para aqueles que tinham uma
esperança desmedida, algo que
não faz mais parte da nossa época.
Por outro lado, não podemos cair
no pólo oposto, de achar que é tudo a mesma coisa. Está bem claro
que há uma diferença entre os governos Clinton e Bush, ou, na Espanha, entre Aznar e o PSOE
(Partido Socialista Operário Espanhol). Há diferenças também
entre o governo Lula e o de Fernando Henrique.
Folha - Por exemplo?
Velho - A política externa. Para
mim, o ponto alto do governo Lula. Houve realmente uma ousadia,
uma capacidade, que faz diferença. Agora, voltando à questão da
desilusão, há uma certa dificuldade hoje de se saber qual é de fato a
natureza da atividade política,
uma tendência de avaliar a política com parâmetros que não são
dela.
Folha - O sr. pode explicar melhor?
Velho - Nesses momentos de escândalo
e de corrupção, por
exemplo. A idéia de
que saiu alguma coisa
errada permite que
surja uma espécie de
moralismo pelo qual
tudo é julgado a partir
da moral e da ética.
Não é assim que as
coisas acontecem.
Você não julga um
bom artista pelo seu
aspecto moral, mas
por ele ser bom naquilo que faz. Um
bom político não é necessariamente o mais
moral ou o mais ético.
Folha - Mas essa análise não leva à velha máxima do
"rouba, mas faz"?
Velho - Isso é imagem caricata. A
minha afirmação é de que o predicado principal não é ser moral
ou ético, mas ser um bom político. Isso não significa que não exista uma moral e uma ética da política. Nesse caso, a moral e a ética
devem ser instrumentos para que
a política se realize bem. Em inglês existem dois termos que tratam disso: "politics" e "policy".
Eu diria que a boa "politics" é a
capacidade de realizar a "policy",
ou seja, a capacidade de agregar
recursos humanos e não-humanos para alcançar objetivos.
Acredito que o moralismo da
sociedade moderna está tirando o
espaço da política e isso é muito
grave. Acho que a política tem
suas regras próprias e que essas
regras devem ter um controle externo, feito, por exemplo, pela mídia. O problema é que a própria
mídia tem a sua dinâmica. Ela tem
que vender jornal,
fazer notícia e há
essa história de ficar o tempo inteiro criando slogans. Numa hora
é o salvacionismo,
outra hora é a mexicanização [suposta tentativa do
PT de perpetuar-se no poder por
meio do controle
da máquina pública] do país.
Ora, a mexicanização ruiu rapidinho. Tudo é muito efêmero.
Folha - Ao falar
do moralismo que
cerceia a política,
o sr. está se referindo à crítica às
coalizões partidárias, à disputa por
cargos?
Velho - Sim. É o mesmo raciocínio do sujeito que prometeu alguma coisa na eleição e não cumpriu
quando foi eleito. A idéia de uma
absoluta transparência nesse
campo não existe e às vezes resulta em uma situação patológica
que permite a instrumentalização
de demandas morais e éticas com
intenções oportunistas e hipócritas. O PT fez isso antes da eleição,
continuou a fazer depois que ganhou e, agora, é vítima desse jogo.
Cito o exemplo da demissão do
Luiz Eduardo Soares [ex-secretário nacional de Segurança Pública, demitido por contratar a mulher e a ex-mulher para estudos
sobre a violência], uma pessoa
próxima a mim. Foi uma vergonha, porque se utilizaram motivos morais para realizar um ato
imoral, por meio da divulgação de
documentos apócrifos acusando
o sujeito disso e daquilo. Ou seja, a
moral, que parece
uma coisa boa, está
seguidamente na política a serviço do
mal.
Folha - E no caso
Waldomiro Diniz?
Velho - Alguma coisa de ruim aconteceu
aí, mas há uma grande hipocrisia no sentido de que a gente
sabe que todos [os
partidos e candidatos] montam caixa
dois em busca de recursos. O negócio é
fazer isso e não ser
pego. Agora, se você
não faz direito e é
apanhado, então, vira
escândalo, que tem a
função de focalizar
um caso para abafar
os outros. Nesse caso, seria melhor entender essas necessidades
de recursos [de campanha] para
se criar uma legislação adequada.
Folha - Por essa lógica, o sr. acha
que o PT agiu certo ao bloquear a
criação da CPI do caso Waldomiro
no Congresso?
Velho - Do ponto de vista da lógica da ação política, eles tinham
mesmo que evitar essa CPI. Eu
não faço nenhum julgamento
moral a respeito disso. Agora, como ele [Lula] se elegeu carregando muito em cima do discurso
moralista, está pagando o preço
por isso. E tem que pagar, não tem
outro jeito. O que se espera é que,
a partir de um amadurecimento
político, não ocorra mais esse tipo
de expectativa, de ilusões.
Folha - Pesquisas do Datafolha
mostram que a expectativa do
cumprimento rápido de promessas
de campanha de Lula é menor nas
faixas de menor renda e escolaridade. Por que isso ocorre, na sua
opinião?
Velho - Em geral, o povão é mais
realista em relação à política, vista
como uma espécie de mal necessário. O povão não tem as ilusões
dos bem-pensantes, que somos
nós. A partir daí, eles avaliam a
política do ponto-de-vista mais
pragmático, que eventualmente
pode levar ao "rouba, mas faz",
mas não necessariamente. A política pode ser, para eles, algo mais
grandioso.
Folha -O sr. não acha que esse
realismo não é desmobilizante,
uma ameaça à democracia?
Velho - Pelo contrário, acho que
ameaça à democracia são justamente essas ilusões da elite e, portanto, a outra face que são as desilusões.
Folha - Como professor de uma
universidade pública, qual é a sua
avaliação sobre a reforma da Previdência?
Velho - Evidentemente que a
gente sabia que a situação da Previdência era insustentável e que
alguma coisa tinha que ser feita.
Se a gente quer redistribuição de
renda, em alguma medida a nossa
faixa tinha que ceder. Na verdade,
a gente está sempre se queixando
da vida. Agora, se o governo será
capaz de gerenciar essas mudanças e se de fato haverá benefícios
concretos para as camadas populares, a gente não sabe.
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