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ENTREVISTA DA 2ª
ALBA ZALUAR
Para antropóloga, apenas pobreza e desigualdade não explicam a presença de adolescentes na criminalidade
"Hipermasculinidade" leva jovem ao mundo do crime
ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO
De alguém que estuda há mais
de 20 anos o fenômeno da violência urbana brasileira, seria lógico
esperar pessimismo -nesse período, os números da criminalidade não pararam de crescer e de
assustar quem acompanha o problema. Esse não é, entretanto, o
caso da antropóloga Alba Zaluar.
Em entrevista à Folha, a pesquisadora, uma das primeiras a estudar a infiltração do narcotráfico
nas comunidades pobres do Rio
de Janeiro, disse que é possível superar o problema da violência no
Brasil com mais facilidade do que,
por exemplo, nos Estados Unidos. "Eu diria que temos motivos
para otimismo porque não somos
um país de guerreiros. Nos Estados Unidos, as vizinhanças se organizaram em gangues. No Brasil,
elas se organizaram em blocos de
Carnaval e em escolas de samba.
Isso é uma baita diferença", afirma a antropóloga.
Zaluar refuta a idéia de que a
pobreza e a desigualdade sejam as
principais responsáveis pela violência nas grandes cidades. "Se a
desigualdade explicasse a violência, todos os jovens pobres entrariam para o tráfico. Fizemos um
levantamento na Cidade de Deus
[conjunto habitacional favelizado, na zona oeste do Rio] e concluímos que apenas 2% da população de lá está envolvida com o
crime. Como explicar que a maioria das pessoas não se envolveu
com o tráfico? Certamente tem algo a mais aí", diz ela.
Segundo Zaluar, esse "algo a
mais" está ligado a um "etos da
hipermasculinidade", que leva alguns jovens do sexo masculino a
se arriscarem no tráfico de drogas
em busca do reconhecimento por
meio da imposição do medo.
"É preciso fazer políticas públicas mais eficientes e focadas nos
jovens que estão nessa fase difícil
da adolescência, para que eles
possam construir uma imagem
civilizada de homem, que tenha
orgulho de conter a sua violência
e respeitar o adversário, competindo segundo as regras estabelecidas", afirma.
Alba Zaluar é coordenadora do
Nupevi (Núcleo de Pesquisa das
Violências) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). A
pesquisa dirigida por ela na Cidade de Deus, nos anos 80, deu origem ao seu livro "A Máquina e a
Revolta" (editora Brasiliense). Integrante na época de sua equipe
de pesquisadores, Paulo Lins escreveu "Cidade de Deus", origem
do filme de mesmo nome. Nem o
livro nem o longa-metragem
agradam à antropóloga, que está
lançando neste mês um novo livro sobre a violência ("Integração
Perversa").
A Folha tentou entrar em contato com o escritor Paulo Lins para que ele tivesse a oportunidade
de responder às críticas da antropóloga Alba Zaluar ao seu livro
"Cidade de Deus". Na tarde de
sexta-feira, foi enviada uma mensagem para o e-mail do escritor,
mas não houve resposta até o fechamento desta edição. Nos números fornecidos pela assessoria
de imprensa da Companhia das
Letras (editora que publicou "Cidade de Deus"), não foi possível
deixar recado para Lins.
Leia a seguir os principais trechos de sua entrevista.
Folha - A violência nas regiões
metropolitanas brasileiras aumentaram muito nos últimos anos. Por
que, apesar disso, a senhora diz
que temos motivos para otimismo?
Alba Zaluar - Eu diria que temos
motivos para otimismo porque
não somos um país de guerreiros.
Nunca nos envolvemos, por
exemplo, em guerras mundiais.
Nossos heróis são jogadores de
futebol, sambistas e artistas. Somos um país que valoriza muito o
espetáculo e que reconhece que o
talento pode aparecer em qualquer classe social. Nos Estados
Unidos, o [diretor Martin] Scorsese nos mostra [no filme "Gangues de Nova York"] que as vizinhanças se organizaram, desde o
século 19, em gangues.
No Brasil, as vizinhanças se organizaram em blocos de Carnaval
e escolas de samba. Isso é uma
baita diferença. Até hoje, os chefes
do tráfico no Brasil ganham apelidos no diminutivo, como Fernandinho ou Escadinha. Nos Estados
Unidos, os apelidos são de animais ferozes ou nomes de guerreiros africanos. Esse é um indicativo de que nosso etos guerreiro
não é tão forte quanto o de lá. Isso
mostra que é possível superá-lo
com mais facilidade.
Folha - Então por que estamos
tão violentos?
Zaluar - É preciso ter políticas
públicas para superar isso. Houve
no Brasil um fraquejo institucional do Estado. É preciso mudar
nossa polícia e o Judiciário para
que a impunidade diminua, especialmente nas classes mais privilegiadas. É preciso, por exemplo,
achar uma maneira de valorizar o
profissionalismo na polícia. Hoje,
os governos
acabam indicando os delegados e chefes
de batalhão
por critérios
políticos. Os
Estados têm
que acabar
com o bairrismo e trabalhar
em conjunto.
Folha - Em
que período a
senhora identifica o início desse fraquejo do
Estado?
Zaluar - No
que diz respeito à polícia, isso é claro durante a ditadura militar
[1964-1985]. Nesse período, tudo
foi permitido à polícia. A imprensa estava amordaçada e ninguém
podia denunciar abusos. A maneira de combater a corrupção é
criar mecanismos internos de
controle e não amordaçar ninguém. É preciso ter mecanismos
por meio dos quais as pessoas
atingidas pela violência policial
possam fazer reclamações sem temer pela própria vida.
Folha - Pobreza e desigualdade
não são também elementos fundamentais para explicar a violência?
Zaluar - A idéia do nosso projeto
no Nupevi é ultrapassar a argumentação simplista do determinismo econômico que faz com
que se pense que toda a questão
da violência e da criminalidade
possa ser explicada apenas pela
pobreza e pela desigualdade. Trabalhamos com a idéia de um modelo de complexidade. Levamos
em conta vários elementos que se
arranjam de uma determinada
forma que acabam provocando
essa combustão. Estamos falando
apenas que a pobreza, só, não explica o fenômeno.
É bom lembrar que esse é um fenômeno que aparece na década
de 70. Não é verdade dizer que isso surgiu somente agora.
Ao determinar a pobreza como
causa da violência, estamos dando um peso que ela não tem e facilitando a criminalização
dos pobres, porque leva
à conclusão de que são
eles os criminosos. Isso
justificaria o fato de termos 90% de pobres entre nossos prisioneiros,
quando sabemos que há
juízes, banqueiros, comerciantes, deputados,
senadores e governantes
envolvidos no mundo
da atividade criminosa.
Folha - Mas a existência
de um contingente grande de jovens pobres que
convivem diariamente
com a desigualdade não
é um fator que facilita a
entrada deles no tráfico
de drogas?
Zaluar - Não estamos
dizendo que a pobreza e
a desigualdade não têm
nada a ver com o problema. Há
várias pesquisas que mostram
que os Estados mais pobres do
Brasil são também os menos violentos. Londrina é uma cidade riquíssima para os padrões brasileiros, mas é violenta. Campinas
também. Nos Estados, percebe-se
também que os municípios mais
pobres são menos violentos.
Uma parte da explicação dessa
questão está no fato de as regiões
metropolitanas atraírem mais
imigrantes. Essa concentração de
muita gente nessas regiões sem
emprego e sem alternativa facilita
a atração para as atividades do
tráfico. Mas não são todos os que
são atraídos, e é aí que está o mistério. Se a desigualdade explicasse
a violência, todos os jovens pobres entrariam para o tráfico.
Fizemos um levantamento na
Cidade de Deus e concluímos que
apenas 2% da população de lá está
envolvida com o crime. Como explicar que a maioria das pessoas
não se envolveu com o tráfico?
Certamente tem algo a mais aí.
Folha - E o que seria esse algo a
mais?
Zaluar - Parece-me o fato de que
alguns se deixam seduzir por uma
imagem da masculinidade que está associada ao uso da arma de fogo e à disposição de matar, ter dinheiro no bolso e se exibir para algumas mulheres. A partir de entrevistas que
minha equipe
fez com jovens
traficantes, definimos isso
como um etos
da hipermasculinidade.
Esse é um fenômeno que
está sendo
muito estudado nos EUA e
na Europa e diz
respeito a homens que têm
alguma dificuldade de construir uma imagem positiva
de si mesmos.
Precisam da
admiração ou
do respeito por
meio do medo imposto aos outros. Por isso se exibem com armas e demonstram crueldade
diante do inimigo.
Folha - Como combater a construção dessa imagem?
Zaluar - É preciso fazer políticas
públicas mais eficientes e focadas
nos jovens que estão nessa fase difícil da adolescência, para que eles
possam construir uma imagem
civilizada de homem, que tenha
orgulho de conter a sua violência
e respeitar o adversário, competindo segundo as regras estabelecidas, como acontece nas competições esportivas e na disputa dos
desfiles de escolas de samba.
No último capítulo do meu novo livro, eu relato a experiência
que tentei desenvolver em escolas
públicas do Rio. Conseguimos ter
resultados positivos ao desenvolver o projeto Mediadores da Paz,
que tentava mostrar aos jovens a
importância de negociar os conflitos por meio das palavras e como isso podia trazer para eles respeito próprio e das outras pessoas. Nesse projeto, incentivávamos jovens a mediar conflitos entre colegas.
Folha - A senhora faz duras críticas ao livro e ao filme "Cidade de
Deus", mas eles não retratam bem
essa questão da construção do etos
da hipermasculinidade?
Zaluar - O Zé Pequeno [um dos
principais personagens
do filme] seria um
exemplo dessa hipermasculinidade, mas, na
minha opinião, o problema de "Cidade de
Deus" é muito mais sério. Em primeiro lugar,
o Paulo Lins fez o livro
sem consultar as pessoas envolvidas. A pesquisa acadêmica é uma
coisa séria. Eu emprestei
a ele toda a pesquisa que
fizemos na Cidade de
Deus. Esse material tinha o depoimento do
único sobrevivente da
guerra [entre traficantes] retratada no filme,
que é o Ailton Batata,
que aparece no romance
com o nome de Sandro
Cenoura.
Além disso, há uma série de impropriedades no romance. Nunca
existiu, por exemplo, aquele bando de meninos ainda com dente
de leite dando tiro nas pessoas. Isso é mentira, e é muito sério porque cria uma imagem sobre as
crianças que vivem nesses locais
que não é verdadeira. A própria
história do Zé Pequeno é contada
como se ele já tivesse nascido
ruim. É uma volta à teoria do criminoso nato, que, do ponto de
vista da criminologia, já está completamente superada.
Folha - Como a senhora vê a forma como a imprensa tem tratado a
questão da violência urbana?
Zaluar - Estou menos preocupada hoje do que já estive. Já não vejo mais tantas fotos de traficantes
e de matadores colocadas nas primeiras páginas dos jornais com
destaque enorme. Isso dá fama a
essas pessoas e é mais uma atração para os jovens em busca dessa
fama. Os traficantes já são conhecidos pela sua dureza, mas, quando a foto deles aparece nos jornais, isso contribui mais ainda para essa fama. Infelizmente, os jornais ainda continuam dando nomes, o que contribui para a permanência do círculo vicioso de
atração dos jovens.
Folha - A senhora é uma das especialistas mais procuradas pelos jornalistas para comentar casos de
violência. Os jornais não acabam
falando sempre com os mesmos especialistas?
Zaluar - Recentemente, fui procurada para comentar a rebelião
em Benfica [que resultou na morte de 30 detentos e de um agente
penitenciário na casa de custódia
da zona norte do Rio, em maio].
Disse ao jornalista que não sabia
nada sobre esse assunto e indiquei outros especialistas. Quase
sempre aparecem as mesmas pessoas nos jornais. Em alguns casos,
é gente que entende muito pouco
do assunto e diz qualquer coisa só
para aparecer. Isso acaba alimentando essa "Darlene" que existe
dentro dos intelectuais. Tem que
haver seriedade no tratamento
dessa questão.
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