São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2000

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QUESTÃO INDÍGENA
Segundo lideranças, "proteção" atrapalha vida nas aldeias
Índios querem "liberdade" e dispensam tutela da Funai

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Índios aprendem idioma Kaingang em escola bilíngue da aldeia, na reserva Xapecó, em SC


CÉLIA CHAIM
DA REPORTAGEM LOCAL

Os cerca de 350 mil índios que sobreviveram ao extermínio nos primeiros 500 anos do Brasil estão dispostos a estabelecer uma nova relação com os brancos para o que chamam de "os outros 500". A maioria deles está se organizando para desembarcar em Brasília e pressionar o Congresso a aprovar um novo estatuto que os liberte da tutela da Funai (Fundação Nacional do Índio).
Segundo as principais lideranças, a tutela não só reforça a "incapacidade relativa do índio" (como está escrito no estatuto em vigor) como atrapalha a vida das aldeias e cerceia uma preciosa característica indígena: a liberdade.
Os índios estão percebendo a sutil e decisiva diferença entre tutela sob o ponto de vista jurídico, que concede à Funai o controle de seu patrimônio, e a tutela no sentido de defesa, amparo, tutoria. "Sob o disfarce da proteção e defesa, os defensores da manutenção da tutela estão de olho no patrimônio indígena", diz o professor Carlos Frederico Marés, ex-presidente da Funai.
O governo não admitiu, como queriam os índios, a denominação "povos" sob a justificativa de proteção à soberania nacional.
Até a Constituição de 1988, os índios contam que não saíam da aldeia sem o salvo-conduto da Funai. Nos anos de ditadura foram obrigados a registrar seus filhos com nomes não-indígenas. Só agora o direito de registrar um nome indígena está sendo usufruido. Os brancos ignoravam, por exemplo, que, dependendo da aldeia, a criança recebe três nomes. "Quando nasce o filho, a aldeia põe o nome e pronto. Não precisamos dessa coisa de papel", diz Marcos Terena, índio terena e coordenador geral da Coordenação Geral e Defesa dos Direitos Indígenas.
Eles não querem o fim da Funai. Querem uma outra função para a fundação, uma nova visão da questão indígena, sem assistencialismo e sem paternalismo.
O chefe do departamento de patrimônio indígena da Funai, Wagner Sena, diz que a tutela não atinge os direitos individuais. "O índio é um cidadão como outro qualquer, mas, quando se trata de negócios, ele não tem condições de discutir. Seria como colocar o leão para brigar com a galinha."
Sena diz que os caiapós, assim como parte dos xavantes, resistem ao fim da tutela. Para líderes indígenas, por falta de informação: eles estariam confundindo o fim da tutela com o fim da proteção, assegurada na Constituição.
Estariam, também, temerosos de perder algumas regalias de cooptação concedidas pela entidade. Por exemplo: na gestão de Márcio Lacerda, os xavantes receberam vários veículos como "mimo" da Funai.
Esse fato foi exceção. Os índios estão cada vez mais organizados para reivindicar respeito à sua cultura, à sua língua. à sua história e, principalmente, à sua terra e às riquezas nela contidas. Eles têm pelo menos 10 organizações zelando por seus direitos. Têm 90 vereadores eleitos, três vice-prefeitos e um prefeito. Estão estudando cada vez mais. Estudam direito e sociologia, justamente as áreas em que enfrentam mais problemas.
"Por que não podemos falar por nós?", pergunta o advogado e líder Samuel Yriwana, eleito pelo voto direto de seu povo (de quem empresta o sobrenome), processo cada vez mais frequente entre os índios. Fazem eleição para escolher o que os brancos chamariam de "chefe-executivo" da aldeia.
Por que nunca um índio dirigiu a Funai? Esse tipo de pergunta é cada vez mais frequente entre os índios. "Aos poucos fomos estudando e percebendo que essa história de tutela não é bem aquilo que nos falaram", diz a índia e socióloga Azelene Inácio Kaingáng.


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