São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

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DENTRO DO PODER

"Entreatos", de João Moreira Salles, mostra presidente na intimidade ao longo do último mês da eleição de 2002

Filme revela bastidores da campanha de Lula

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

"No Brasil de hoje -esse é um dado triste-, a única figura de dimensão nacional sou eu." Estamos na reta final, a poucos dias do segundo turno da eleição presidencial de 2002. Quem fala é o futuro presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. Está a bordo de um jatinho, suado e com cabelo desalinhado, indo de Macapá, no Amapá, para Belém, no Pará.
Esta é apenas uma das muitas imagens e declarações preciosas dos bastidores da campanha que conduziu Lula ao poder. Estão reunidas no documentário "Entreatos", dirigido pelo cineasta João Moreira Salles, previsto para estrear em circuito comercial em São Paulo e no Rio no dia 26.
Antes disso, o filme terá sua pré-estréia na terça-feira, em São Paulo, dentro de um ciclo no qual também será apresentado pela primeira vez o filme "Peões", documentário dirigido por Eduardo Coutinho com depoimentos colhidos em 2002 de ex-metalúrgicos que conviveram com Lula durante as greves do ABC.
"Entreatos" está longe de ser um retrato oficial ou oficialesco da campanha petista. Apesar da afeição inequívoca do diretor pelo personagem central, a imagem de Lula que sai do filme é controvertida e no mínimo ambígua. Além disso, o filme joga nova luz sobre muito do que se viu de lá para cá, em quase dois anos de governo.
Das 240 horas de gravação que acumulou entre o final de setembro e o dia 27 de outubro, quando Lula derrotou José Serra, o cineasta privilegiou nas quase duas horas que chegarão ao público a intimidade do candidato e de seu entorno, mostrando coisas que hoje podem constranger ou incomodar o presidente e seus próximos.

"Está gravando?"
A percepção de que a exposição das entranhas da campanha poderia ser inconveniente ou perigosa está registrada no próprio filme. Lula e alguns auxiliares estão reunidos em torno de uma mesa redonda para discutir a estratégia para um debate na TV ainda no primeiro turno. José Dirceu toma a palavra. Mal começa a falar e percebe que está sendo filmado.
"Tá gravando? De quem é esse pessoal? Do João? Que João?", pergunta Dirceu. Informam que se trata de um documentário combinado com Lula. "Vão fazer uma cena e vão embora. São de confiança", diz Duda Mendonça. E Dirceu: "Eles são de confiança, mas não existe confiança absoluta porque a fita de Lula sobre Pelotas acabou na mão dos nossos inimigos". Gilberto Carvalho argumenta: ""A fita é guardada no cofre todo dia". E Dirceu contra-ataca: "Vai nessa... Se você soubesse o que eu tenho das outras campanhas, você não falaria isso, Gilberto Carvalho".
A citação refere-se à frase de Lula flagrada no intervalo de uma gravação e divulgada em 2000, segundo a qual Pelotas era "um pólo exportador de veado".
O mal-estar com Dirceu é o momento mais tenso do filme, o único em que a equipe é hostilizada.

Favre, macacão e álcool
A espontaneidade de Lula durante as filmagens é responsável por vários momentos reveladores do documentário. No intervalo de uma gravação, o candidato pega o telefone e finge falar com o "companheiro Bush". A seguir, em "portunhol", simula falar com Eduardo Duhalde, então presidente argentino: "Olá, Duhalde, quieres Favre de vuelta? Yo mandaré". A piada com o marido de Marta Suplicy arranca risos no estúdio. Passagens jocosas e prosaicas como essa abundam no filme.
Logo no início, Lula conversa no jatinho com o vice, José Alencar, sentado ao seu lado. A certa altura, diz, referindo-se ao Palácio da Alvorada: "Aquele palácio é triste porque o Fernando Henrique Cardoso nunca jogou bola. Ele não dança". "Não bebe um gole", emenda Alencar. "Não bebe um gole", repete Lula.
O consumo de bebida alcoólica aparece em outro trecho, em que Lula relembra os tempos do sindicato. ""A gente tomava três, quatro doses de pinga na hora do almoço, comia em 15 minutos e ia jogar bola num sol quente [...] Não tenho um milímetro de saudade. Tenho saudade só dos amigos."
É também nesta seqüência, durante a preparação para uma sessão de gravações para a TV, quando está escolhendo sua gravata, que Lula critica aqueles que condenam seu aburguesamento.
"Outro dia um companheiro xiita do PT disse: "Eu prefiro o Lula de macacão, não o Lula de gravata". (...) Eu não estava presente, me contaram. Aí fui no microfone e falei: "Tem um companheiro aqui que disse que prefere o Lula de macacão. Vamos fazer o seguinte: eu dou meu macacão de graça pelo terno e gravata dele. Ele vai trabalhar numa fábrica para ver se é bom". Só fala isso quem não conhece o que é trabalhar de macacão debaixo de uma telha de Brasilit. Depois do almoço aquela porra esquenta e você fica todo suado até três horas da tarde."
A obsessão de Lula com sua aparência é recorrente no filme. Logo no começo, a seis dias do primeiro turno, quando termina de fazer a barba e cortar o cabelo em São Bernardo, ele se olha no espelho e diz, sorridente: "Se minha mãe me visse assim, ia dizer "mas que baianinho jeitoso'".

Duda em ação
A atuação de Duda Mendonça é um capítulo à parte. A imagem do marqueteiro intuitivo e estelar, meio malandrão, sai reforçada do filme. Também ficam explícitas as técnicas de construção da imagem do candidato, o controle que exerce o aparato de propaganda sobre o político -fato sabido, mas que ganha outra dimensão quando escancarado. Duas passagens se destacam.
Numa delas, Duda grava o primeiro programa de TV de Lula para o segundo turno. Dirige um auditório repleto de personalidades e petistas, ensaiando-os a fazer um gesto sincronizado com o braço e a gritar juntos a palavra "vem". No palco, estão Ciro Gomes, o novo aliado, e Alencar, além de Lula. Na platéia, perto da primeira-dama, Marisa Letícia, as futuras radicais Heloísa Helena e Luciana Genro, depois expulsas do PT, e Fernando Gabeira, que desembarcou do governo atirando. A ação de Duda lembra Silvio Santos ou Faustão.
Em outra cena, Moreira Salles mostra a filha do marqueteiro, Eduarda. Ela está longe dos estúdios da Globo, onde se realiza o último debate da campanha. Acompanha sem ser vista, como num Big Brother, um grupo de eleitores que assiste ao debate numa sala. Com o celular na mão, Eduarda vai transmitindo ao vivo os resultados da pesquisa qualitativa (as reações do grupo) a Luiz Gushiken. Diz em detalhes e em tom afirmativo o que Lula deve fazer, como deve falar, o que está funcionando e o que corrigir. A seqüência é muito pedagógica.
O documentário termina com uma longa filmagem do dia da vitória, realizada quase toda no hotel Meliá, em São Paulo, pela filha do senador Aloizio Mercadante, Mariana. Lula está com a família e a cúpula do PT. São cenas memoráveis, ao mesmo tempo íntimas e históricas. Dois detalhes chamam atenção quando a TV anuncia o sucessor de FHC: o choro discreto de Antonio Palocci ao fundo e o abraço formal e sem jeito que Dirceu dá no presidente eleito.


ENTREATOS
Direção: João Moreira Salles
Produção: Brasil, 2004
Quando: terça, dia 16, às 19h
Onde: Seminário Documentário e Sociedade, no Espaço Unibanco de Cinema (r. Augusta, 1.475, tel. 0/xx/11/ 3288-6780)
Quanto: grátis, senhas distribuídas a partir das 18h30
Após a exibição do filme, haverá debate com Amir Labaki, Carlos Alberto de Mattos, Eduardo Coutinho e João Moreira Salles. Mediador: José Geraldo Couto

PEÕES
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Brasil, 2004
Quando: segunda, dia 15, às 19h
Onde: Seminário Documentário e Sociedade, no Espaço Unibanco de Cinema
Quanto: grátis, senhas distribuídas a partir das 18h30
Os dois filmes entram em circuito comercial no dia 26 deste mês



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