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DENTRO DO PODER
"Entreatos", de João Moreira Salles, mostra presidente na intimidade ao longo do último mês da eleição de 2002
Filme revela bastidores da campanha de Lula
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
"No Brasil de hoje -esse é um
dado triste-, a única figura de dimensão nacional sou eu." Estamos na reta final, a poucos dias do
segundo turno da eleição presidencial de 2002. Quem fala é o futuro presidente, Luiz Inácio Lula
da Silva. Está a bordo de um jatinho, suado e com cabelo desalinhado, indo de Macapá, no Amapá, para Belém, no Pará.
Esta é apenas uma das muitas
imagens e declarações preciosas
dos bastidores da campanha que
conduziu Lula ao poder. Estão
reunidas no documentário "Entreatos", dirigido pelo cineasta
João Moreira Salles, previsto para
estrear em circuito comercial em
São Paulo e no Rio no dia 26.
Antes disso, o filme terá sua pré-estréia na terça-feira, em São Paulo, dentro de um ciclo no qual
também será apresentado pela
primeira vez o filme "Peões", documentário dirigido por Eduardo
Coutinho com depoimentos colhidos em 2002 de ex-metalúrgicos que conviveram com Lula durante as greves do ABC.
"Entreatos" está longe de ser
um retrato oficial ou oficialesco
da campanha petista. Apesar da
afeição inequívoca do diretor pelo
personagem central, a imagem de
Lula que sai do filme é controvertida e no mínimo ambígua. Além
disso, o filme joga nova luz sobre
muito do que se viu de lá para cá,
em quase dois anos de governo.
Das 240 horas de gravação que
acumulou entre o final de setembro e o dia 27 de outubro, quando
Lula derrotou José Serra, o cineasta privilegiou nas quase duas horas que chegarão ao público a intimidade do candidato e de seu entorno, mostrando coisas que hoje
podem constranger ou incomodar o presidente e seus próximos.
"Está gravando?"
A percepção de que a exposição
das entranhas da campanha poderia ser inconveniente ou perigosa está registrada no próprio filme. Lula e alguns auxiliares estão
reunidos em torno de uma mesa
redonda para discutir a estratégia
para um debate na TV ainda no
primeiro turno. José Dirceu toma
a palavra. Mal começa a falar e
percebe que está sendo filmado.
"Tá gravando? De quem é esse
pessoal? Do João? Que João?",
pergunta Dirceu. Informam que
se trata de um documentário
combinado com Lula. "Vão fazer
uma cena e vão embora. São de
confiança", diz Duda Mendonça.
E Dirceu: "Eles são de confiança,
mas não existe confiança absoluta
porque a fita de Lula sobre Pelotas
acabou na mão dos nossos inimigos". Gilberto Carvalho argumenta: ""A fita é guardada no cofre
todo dia". E Dirceu contra-ataca:
"Vai nessa... Se você soubesse o
que eu tenho das outras campanhas, você não falaria isso, Gilberto Carvalho".
A citação refere-se à frase de Lula flagrada no intervalo de uma
gravação e divulgada em 2000, segundo a qual Pelotas era "um pólo exportador de veado".
O mal-estar com Dirceu é o momento mais tenso do filme, o único em que a equipe é hostilizada.
Favre, macacão e álcool
A espontaneidade de Lula durante as filmagens é responsável
por vários momentos reveladores
do documentário. No intervalo de
uma gravação, o candidato pega o
telefone e finge falar com o "companheiro Bush". A seguir, em
"portunhol", simula falar com
Eduardo Duhalde, então presidente argentino: "Olá, Duhalde,
quieres Favre de vuelta? Yo mandaré". A piada com o marido de
Marta Suplicy arranca risos no estúdio. Passagens jocosas e prosaicas como essa abundam no filme.
Logo no início, Lula conversa
no jatinho com o vice, José Alencar, sentado ao seu lado. A certa
altura, diz, referindo-se ao Palácio
da Alvorada: "Aquele palácio é
triste porque o Fernando Henrique Cardoso nunca jogou bola.
Ele não dança". "Não bebe um
gole", emenda Alencar. "Não bebe um gole", repete Lula.
O consumo de bebida alcoólica
aparece em outro trecho, em que
Lula relembra os tempos do sindicato. ""A gente tomava três, quatro
doses de pinga na hora do almoço, comia em 15 minutos e ia jogar
bola num sol quente [...] Não tenho um milímetro de saudade.
Tenho saudade só dos amigos."
É também nesta seqüência, durante a preparação para uma sessão de gravações para a TV, quando está escolhendo sua gravata,
que Lula critica aqueles que condenam seu aburguesamento.
"Outro dia um companheiro
xiita do PT disse: "Eu prefiro o Lula de macacão, não o Lula de gravata". (...) Eu não estava presente,
me contaram. Aí fui no microfone
e falei: "Tem um companheiro
aqui que disse que prefere o Lula
de macacão. Vamos fazer o seguinte: eu dou meu macacão de
graça pelo terno e gravata dele. Ele
vai trabalhar numa fábrica para
ver se é bom". Só fala isso quem
não conhece o que é trabalhar de
macacão debaixo de uma telha de
Brasilit. Depois do almoço aquela
porra esquenta e você fica todo
suado até três horas da tarde."
A obsessão de Lula com sua
aparência é recorrente no filme.
Logo no começo, a seis dias do
primeiro turno, quando termina
de fazer a barba e cortar o cabelo
em São Bernardo, ele se olha no
espelho e diz, sorridente: "Se minha mãe me visse assim, ia dizer
"mas que baianinho jeitoso'".
Duda em ação
A atuação de Duda Mendonça é
um capítulo à parte. A imagem do
marqueteiro intuitivo e estelar,
meio malandrão, sai reforçada do
filme. Também ficam explícitas as
técnicas de construção da imagem do candidato, o controle que
exerce o aparato de propaganda
sobre o político -fato sabido,
mas que ganha outra dimensão
quando escancarado. Duas passagens se destacam.
Numa delas, Duda grava o primeiro programa de TV de Lula
para o segundo turno. Dirige um
auditório repleto de personalidades e petistas, ensaiando-os a fazer um gesto sincronizado com o
braço e a gritar juntos a palavra
"vem". No palco, estão Ciro Gomes, o novo aliado, e Alencar,
além de Lula. Na platéia, perto da
primeira-dama, Marisa Letícia, as
futuras radicais Heloísa Helena e
Luciana Genro, depois expulsas
do PT, e Fernando Gabeira, que
desembarcou do governo atirando. A ação de Duda lembra Silvio
Santos ou Faustão.
Em outra cena, Moreira Salles
mostra a filha do marqueteiro,
Eduarda. Ela está longe dos estúdios da Globo, onde se realiza o
último debate da campanha.
Acompanha sem ser vista, como
num Big Brother, um grupo de
eleitores que assiste ao debate numa sala. Com o celular na mão,
Eduarda vai transmitindo ao vivo
os resultados da pesquisa qualitativa (as reações do grupo) a Luiz
Gushiken. Diz em detalhes e em
tom afirmativo o que Lula deve
fazer, como deve falar, o que está
funcionando e o que corrigir. A
seqüência é muito pedagógica.
O documentário termina com
uma longa filmagem do dia da vitória, realizada quase toda no hotel Meliá, em São Paulo, pela filha
do senador Aloizio Mercadante,
Mariana. Lula está com a família e
a cúpula do PT. São cenas memoráveis, ao mesmo tempo íntimas e
históricas. Dois detalhes chamam
atenção quando a TV anuncia o
sucessor de FHC: o choro discreto
de Antonio Palocci ao fundo e o
abraço formal e sem jeito que Dirceu dá no presidente eleito.
ENTREATOS
Direção: João Moreira Salles
Produção: Brasil, 2004
Quando: terça, dia 16, às 19h
Onde: Seminário Documentário e
Sociedade, no Espaço Unibanco de
Cinema (r. Augusta, 1.475, tel. 0/xx/11/
3288-6780)
Quanto: grátis, senhas distribuídas a
partir das 18h30
Após a exibição do filme, haverá debate
com Amir Labaki, Carlos Alberto de
Mattos, Eduardo Coutinho e João
Moreira Salles. Mediador: José Geraldo
Couto
PEÕES
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Brasil, 2004
Quando: segunda, dia 15, às 19h
Onde: Seminário Documentário e
Sociedade, no Espaço Unibanco de
Cinema
Quanto: grátis, senhas distribuídas a
partir das 18h30
Os dois filmes entram em circuito
comercial no dia 26 deste mês
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