São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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1964 - 40 ANOS DO GOLPE - 2004

Em 13 de março de 64, João Goulart e Leonel Brizola discursaram em frente à Central do Brasil, no Rio, para cerca de 100 mil pessoas; 18 dias depois, os militares tomaram o poder

O dia em que Jango começou a cair

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Naquela noite, Maria Teresa escolheu um vestido azul-piscina e optou por prender os cabelos negros no alto da cabeça. Quando subiu ao pequeno palanque de 1,60 metro de altura postado na praça da República, em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, fez-se silêncio entre os 100 mil presentes. Eram 19h44 de 13 de março de 1964.
Ela ainda não sabia, mas, aos 24 anos, a primeira-dama mais bonita que o país já teve participava do primeiro e último comício ao lado do marido, João Belchior Marques Goulart, 20 anos mais velho. Dezoito dias depois daquela noite, o presidente João Goulart, o Jango, seria apeado do poder por um golpe de generais que daria início à ditadura militar que vigeu até 1985.
Segundo alguns historiadores, o golpe viria de qualquer maneira, mas o que ficou conhecido como Comício da Central do Brasil o precipitou. Para outros, a concentração daquele dia serviu apenas para provocar os conspiradores e assim uni-los mais em torno do mesmo objetivo, derrubar Jango.
Em discurso de 65 minutos, João Goulart anunciou que havia assinado decreto que encampava todas as refinarias particulares de petróleo e outro que desapropriava e destinava à reforma agrária terras em torno de ferrovias e rodovias federais e pedia reforma urgente da Constituição, "acima da qual está o povo".
Na mesma noite, o então deputado federal (PTB) e ex-governador gaúcho Leonel Brizola sugeriria como "única solução" pacífica o fechamento do Congresso e a formação de uma assembléia constituinte, formada por "camponeses, operários, muitos sargentos e oficiais nacionalistas".
Quarenta anos depois, a Folha ouviu oradores e participantes do comício e analistas do período, que dão sua visão do que aconteceu naquela noite e de como ajudaria a mudar os rumos do país.

O clima político
O Brasil de março de 1964 era politicamente polarizado. Esquerdista, o Plano Trienal de Jango previa as chamadas reformas de base nos setores agrário, bancário, fiscal, educacional e eleitoral e desagradava aos setores mais conservadores, militares à frente.
"Com exceção da Revolução de 30, foi o momento de maior tensão da história do Brasil no século 20", afirma o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos (leia entrevista à pag. A9). Tensão essa emanada principalmente da relação entre Jango e os militares.
O período de João Goulart na Presidência começou com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, mas os atritos vinham de 1954, quando fora ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e tivera de deixar o cargo após manifesto de coronéis, os mesmos que, dez anos depois, já eram generais.
Eleito vice de Juscelino Kubitschek (1955-1961), foi reeleito para ser o segundo de Jânio Quadros, que renunciaria depois de sete meses. A tentativa de parte do Exército de impedir a posse de Jango foi sufocada pela solução híbrida do parlamentarismo, que um plebiscito derrubaria em 1963.
Chega 1964. "Então, Jango virava ora à esquerda, ora à direita, o que lhe deu o apelido de ônibus elétrico", resume o brasilianista Thomas Skidmore. "Havia golpistas dos dois lados, ele poderia se inclinar por um lado e fechar com os militares ou por outro e fechar com os comunistas."
Segundo o autor de "Brasil - De Getúlio a Castelo", o Comício da Central do Brasil mostra ao país a opção de seu presidente. "Esse comício o define", afirma. "Isso é indicado nos decretos, que são ilegais, porque mudam a Constituição, e insinuam que ele pretendia reformar sem o Congresso, mas com o apoio da esquerda."
Nem todo o governo era favorável ao comício. Alguns o encaravam como uma provocação desnecessária e de conseqüências potencialmente perigosas. Era o caso de João Pinheiro Neto, então presidente da Supra, a Superintendência da Reforma Agrária.
No dia 11 de março, antevéspera do evento, reuniu-se com o presidente no apartamento que Jango mantinha no prédio ao lado do Copacabana Palace. Estavam também Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, e Gilberto Crockat de Sá, assessor sindical de Jango.
Pinheiro Neto, que depois escreveria três livros sobre o período, aproveita o momento em que o presidente se afasta do grupo, segue-o e dispara: "Por que o senhor não cancela o comício e assina os decretos em solenidade no Alvorada? É mais seguro".
Ouve como resposta: "Tu tens razão". "O Jango tinha uma qualidade excepcional", lembra hoje Pinheiro Neto, aos 74 anos. "Concordava com tudo o que as pessoas diziam a ele." No dia seguinte, o jornal "Última Hora", janguista, trazia estampado na manchete: "Todos ao comício de Jango na Central do Brasil".

O comício
O evento começou às 17h com o nome oficial de Comício Pró-Reformas de Base. Segundo os planos de João Goulart, seria o primeiro de uma série que culminaria com uma concentração de 1 milhão de trabalhadores no dia 1º de maio, em São Paulo.
A localização do evento era estratégica. Primeiro, porque os trens da Central poderiam despejar milhares de pessoas na praça em poucas horas. Ainda mais com as passagens gratuitas, como determinou o governo federal que elas fossem naquele dia 13.
Pois de trem acorreram manifestantes de diversas regiões do país. Só de São Paulo saíram pelo menos duas composições, uma batizada de Vanguarda e outra de Reforma, com 2.200 trabalhadores. Num dos trens vinham Fernando Henrique Cardoso e seus colegas, intelectuais da USP.
Segundo, porque pegava a ala lateral do Ministério da Guerra, o que deu margem à interpretação do "recado" aos militares. Ainda assim, o palanque, apertado e ao lado de um outdoor da Gordura de Coco Carioca, contou com a presença dos três ministros militares do governo Jango.
Além disso, a segurança do evento foi feita por 2.500 soldados da polícia do Exército e da Aeronáutica, muitos a bordo de veículos militares e tanques, no que seria definido pelo "Jornal do Brasil" como "a maior força bélica em atos desta natureza".
O primeiro dos 15 oradores foi José Lélis da Costa, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara. Logo veio José Serra, aos 21 anos presidente da UNE. Falou por oito minutos, a maior parte dos quais registrada em filme.
"Lembro ter sido carregado até as proximidades do palanque e de ter percebido que quem fazia toda a segurança era o Exército, o que achei esquisito", diz Serra. Não estava claro se ao futuro senador seria dado o direito de falar, devido ao discurso duro que havia feito na frente de Jango e dos ministros militares no ano anterior, no comício de 23 de agosto.
Ao ser apresentado no palanque, Serra foi aplaudido e instado a discursar. Hoje, avalia o comício em dois aspectos: "Por um lado, mostrou que havia uma capacidade de mobilização popular; por outro, deu às forças que promoveriam o golpe a sensação de risco em progressão geométrica, o que não era verdade, pois o risco era de progressão aritmética, ou seja, menor".
Mas o orador mais polêmico e que causaria maior comoção seria mesmo Leonel Brizola. Enquanto fazia sua crítica ao Congresso e sugeria a formação de um outro, era incentivado aos gritos de "Fecha!", "Fecha!". Por algum motivo, as palavras daquele dia não ficaram na memória do ex-governador: "Com toda a franqueza, não me recordo do texto; não confirmo nem nego".
Mas lembra um detalhe importante: "Vim de Porto Alegre para o Rio naquele dia especialmente para o evento, apesar de não ter sido convidado". Mesmo assim, chegou ao palanque. "Fui entrando e, em seguida, pedi para falar. Não puderam me negar o microfone, e nem preciso dizer que a receptividade foi calorosa."
A praça estava tomada, mas o número exato de participantes é objeto de disputa. Vai de 100 mil a 200 mil, dependendo da fonte da época. Chamava a atenção também a bela figura de Maria Teresa Goulart no palanque. "A presença de Jango com ela foi entendida como um recado ao país de que ele estava tomando o comando", diz Skidmore, no Rio naquele dia, que assistiu ao comício pela TV.
Terminada a noite às 21h15, João Goulart passou mal e deixou a praça em direção ao Palácio das Laranjeiras no assento de trás do carro oficial, deitado com a cabeça no colo da primeira-dama, a quem chamava de Teca, que lhe acariciava os cabelos -antes ela declarara, para a delícia dos jornalistas presentes, ter achado "maravilhoso" o comício.
No dia seguinte, a reação dos jornais cariocas variou de acordo com o matiz ideológico. "Concentração servirá de senda para invasão de terras", berrava a "Tribuna da Imprensa", de Carlos Lacerda, inimigo político de Jango, que, governador da Guanabara, tentou boicotar o evento dando folga opcional aos funcionários públicos.
A face mais evidente da reação, porém, viria seis dias depois. Apoiadas pela UDN, pelos governadores Adhemar de Barros (SP) e Carlos Lacerda e outras lideranças conservadoras, organizações católicas levaram 500 mil pessoas às ruas de São Paulo -10% da população da cidade à época-, em sua maioria de classe média.
Era a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade, importante por mostrar aos militares que conspiravam que também eles tinham potencial apoio popular.
Seria o próximo lance do xadrez político que levaria ao golpe do dia 31 de março de 1964.


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