São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NOVA REPÚBLICA - 20 ANOS

Ex-presidente, que ainda destaca desemprego como falha da gestão Lula, diz ter rompido com ortodoxia

"Renda é ponto fraco do governo", diz Sarney

VALDO CRUZ
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

FERNANDA KRAKOVICS
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Na véspera de completar 20 anos de sua posse na Presidência da República, o senador José Sarney (PMDB-AP), 74, avalia que os pontos fracos do governo Luiz Inácio Lula da Silva são a distribuição de renda e o combate ao desemprego.
"A taxa de desemprego não abaixou significativamente e continuamos no patamar quase paralisado de distribuição de renda", disse ele. Apesar das críticas, avalia que o petista não tem concorrente em 2006, porque está "fazendo um governo bom".
Aliado de Lula, Sarney não gosta de dar palpites na atual gestão como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. "Eu acho que um ex-presidente colabora mais ficando calado." Entretanto, também não adota o mesmo estilo de Lula, evitando criticar FHC, "um homem talentoso".
Sarney assumiu interinamente, no dia 15 de março de 1985, e em definitivo, após a morte de Tancredo Neves, em 21 de abril de 1985. Para ele, esse foi o pior dia de seu governo.
Ao analisar sua própria gestão (1985-1990), Sarney avalia que foi um erro fazer o Plano Cruzado 2 . "[Hoje] eu preferia cortar a minha mão a fazer o Cruzado 2."
Durante a entrevista, feita em seu gabinete no Senado, o ex-presidente da Casa mobilizou assessores para procurar livros com números revelando os resultados "excepcionais" de seu governo. "O Brasil cresceu cerca de 5% ao ano, até hoje esses números não foram superados", afirmou.
Mostrou-se incomodado, porém, ao ser lembrado que não conseguiu controlar a inflação. Pediu dados a assessores que apontam, segundo ele, que a inflação estava dentro de parâmetros normais. "Em dólar, que é a inflação verdadeira, a média anual foi de 17,3%".
Apesar disso, Sarney disse que o melhor dia de seu governo foi o último e considerou um "milagre" ser aplaudido quando desceu a rampa do Palácio do Planalto depois de passar o cargo a Fernando Collor de Mello.

 

Folha - Vinte anos depois, qual a sensação daquele susto de acordar presidente?
Sarney -
Foi uma sensação de grande responsabilidade, perplexidade. Uma pessoa que é avisada às três horas da manhã que vai assumir a Presidência da República, sem ter formado seus ministérios, sem ter participado da formulação de um programa de governo, sem ter acompanhado as articulações que constroem a montagem da administração.

Folha - Qual o principal legado do seu governo?
Sarney -
O legado foi a transformação democrática que o Brasil viveu.

Folha - Hoje o que o senhor faria diferente?
Sarney -
É muito difícil. Ninguém faz o que faz porque deseja. Quem governa governa com circunstâncias.

Folha - Mas olhando no retrovisor é mais fácil.
Sarney -
Eu não faria jamais o [Plano] Cruzado 2, eu preferia cortar a minha mão a fazer o Cruzado 2. Realmente foi um erro porque a concepção econômica dele estava errada e graças a esse erro nós tivemos um processo longo de aprendizagem.

Folha - O senhor teria feito o ajuste antes ou não teria feito nada?
Sarney -
Os ajustes foram feitos, mas não funcionaram. Fomos levados a um processo de tentar reajustamentos que também não deram certo, mas isso tudo foi um aprendizado. Sem isso não poderia existir o Plano Real. Nós tivemos a coragem de romper com a ortodoxia. Fugimos do processo ortodoxo pelo qual iríamos à recessão, que iria inevitavelmente criar uma área de desemprego.
Eu não tinha poder político para fazer isso [recessão], eu não me sustentaria, o governo seria condenado a cair. Eu tive a grande tarefa de primeiro legitimar-me no poder e essa tarefa eu fiz.

Folha - Fazendo uma reflexão hoje, em que outros pontos o senhor teria adotado um caminho diferente?
Sarney -
Outro foi que eu não interferi na sucessão. Eu tomei uma posição de magistrado e devia ter feito tudo para unir. O meu desejo era ter o Ulysses [Guimarães] como candidato e o Aureliano [Chaves] como vice-presidente, mas eu não consegui. Eu acho que foi um erro que eu fiz e que repercutiu no Brasil, porque terminou na eleição do Collor, que foi um trauma para o país.

Folha - Um terceiro ponto.
Sarney -
Eu devia ter procurado criar um respaldo político para assegurar a transição final. Eu sempre achei que era um presidente que substituiu o Tancredo [Neves] e tinha deveres com o PMDB. Quando o PMDB rompeu comigo, eu ainda fiquei preso nesse dever moral com o PMDB e me senti inibido de procurar uma outra solução.

Folha - Foi um erro ruim esse...
Sarney -
São as dificuldades de uma transição democrática, nunca ninguém deixa de ter trauma, mas eu fui capaz de administrá-la. E os resultados não foram ruins porque nós tivemos a menor taxa de desemprego do Brasil, 2,29%. O Brasil cresceu cerca de 5% ao ano, até hoje esses números não foram superados. Nós éramos o terceiro exportador do mundo e também nunca mais houve aquele crescimento de renda.

Folha - São números inegáveis, mas o senhor não conseguiu vencer a inflação.
Sarney -
Hoje a gente já pode ver que não se pode tratar o que é inflação com correção monetária e o que é uma inflação sem correção monetária. Os parâmetros são outros, não se pode julgar coisas desiguais.
Isso foi uma opção minha, porque eu não tinha força de impor um programa dessa natureza, recessivo, eu optei por outra área. Enfrentei a área internacional por isso, mas o resultado foi que o desemprego foi o menor possível, a renda subiu, nunca houve uma redistribuição de renda igual àquela que houve naquele período do Plano Cruzado.

Folha - E o PIB?
Sarney -
Olha aqui, 100,6% nos meus cinco anos. No governo Itamar-Collor, 34,15%; no governo FHC, 8,61% nos seis primeiros anos. Então, se nós examinarmos esses resultados, vamos verificar que foram excepcionais e foram abafados por causa de uma campanha política. Eu não tinha apoio político, não tinha partido.

Folha - Esses números foram ofuscados pela inflação?
Sarney -
Todo mundo ganhou dinheiro na inflação. A coisa que eu mais vejo hoje é o sujeito me dizer: ""Olha, no seu tempo eu tinha dinheiro, hoje não tenho".

Folha - Tinha dinheiro quem tinha conta remunerada no banco.
Sarney -
Não, todo mundo. Como assalariado você tinha uma correção mensal. Depois o seguinte, a inflação que dizem que era de 80%, em dezembro ela era 27%. Ela estava dentro dos parâmetros normais. O que a inflação subiu nos três meses não foi minha, foi uma inflação psicológica. E se nós fizermos uma apuração em dólar, que é a inflação verdadeira, a média anual do governo Sarney é 17,3%.

Folha - Fazendo um paralelo com a atual gestão, o senhor falou que teve coragem de romper com a ortodoxia. O senhor acha que o atual governo não está tendo essa coragem e esse seria o caminho?
Sarney -
O mundo hoje é inteiramente diferente. O mundo que eu enfrentei era um mundo dividido, era um período de absoluta guerra fria, o que me dava maior respaldo porque eu tive coragem de enfrentar o sistema financeiro internacional.

Folha - Se o senhor tivesse de sintetizar em um só dia, qual foi o melhor dia do seu governo?
Sarney -
O melhor dia do meu governo? Foi o dia em que eu o deixei.

Folha - Verdade?
Sarney -
Verdade. No dia em que eu saí do governo eu disse à minha mulher e a meus filhos: "Aí fora tem uma multidão extraordinária. Metade é para aplaudir o Collor, a outra metade, do PT, é para vaiar o Collor. E os dois lados são para me vaiar. Eu vou descer a rampa, sair pela frente, mas naturalmente vai ter hostilidade. Estou felicíssimo porque cumpri o meu dever". A minha perspectiva era ser deposto. Fiz aquela doutrina e saí disposto. Quando cheguei no meio da rampa eu tirei um lenço e fiz o gesto de quem está se despedindo. Aí houve um milagre, as duas metades se juntaram e me aplaudiram na saída.

Folha - O senhor se sente injustiçado?
Sarney -
Pelo contrário, o que eu ouço é que Sarney é um homem bom, fez o que pôde. Colocamos na agenda do país o problema social. Tudo pelo social, seguro-desemprego, vale-transporte, vale-alimentação, programa do leite.

Folha - O melhor dia foi o último, e o pior?
Sarney -
Foi o dia da morte do Tancredo [21 de abril de 1985]. Foi uma sensação de extremo desalento, assim como se o destino tivesse feito comigo uma coisa que eu não merecia.

Folha - Mas o senhor estava ganhando a coisa mais importante...
Sarney -
Eu nunca tive a noção de que a Presidência era para mim um ponto de glória.

Folha - Por quê?
Sarney -
Porque não é do meu estilo, o poder passa por mim e não consegue me transformar. Eu achava que a morte do Tancredo e a minha posição de ex-presidente do PDS seria uma frustração para o povo brasileiro. E podia ter até uma interpretação de que eu tinha sido um homem que tinha aderido para poder usufruir uma parcela de poder.

Folha - Tanto seus aliados como seus inimigos dizem que o senhor tem uma grande capacidade de se manter no poder ao longo desses anos todos.
Sarney -
Mas eu não sei mandar. Nas minhas decisões eu nunca usei o verbo ""determino", eu sempre ponho ""recomendo".

Folha - O senhor veio lá da Arena, passou pelo PDS, foi para o PMDB e agora continua no poder com Lula...
Sarney -
Nunca fiquei em uma posição de colocar interesses pessoais à frente dos interesses do país. E apoiei o governo Lula porque acho que é o fim do ciclo republicano.

Folha - O senhor vai ser candidato ao Senado novamente no ano que vem?
Sarney -
Eu não tenho mais futuro, eu tenho passado. Se eu pudesse sair da política eu queria sair.

Folha - O senhor não consegue?
Sarney -
Eu tenho deveres com o país que não me permitem sair.

Folha - Ou seja, o senhor vai se candidatar novamente.
Sarney -
Não é o mandato que me mantém na política.

Folha - O senhor poderia ficar como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que está presente na vida política mesmo sem mandato?
Sarney -
O Fernando Henrique continua dentro da política, apenas não tem mandato. Às vezes, o mandato até atrapalha.

Folha - Como o sr. avalia a atuação do ex-presidente Fernando Henrique no momento atual da política brasileira?
Sarney -
Eu acho que o Fernando Henrique é um homem talentoso. Eu acho que, dos presidentes do nosso país, todos aqueles que tiveram um temperamento forte não se deram bem.

Folha - O senhor acha que ele está dando muito palpite nesse momento?
Sarney -
Não, cada um tem seu estilo, ele gosta de dar palpite, eu não gosto.

Folha - São bons ou maus palpites que ele está dando no momento?
Sarney -
Em todo palpite que ele dá ele expressa um depoimento de um homem que foi presidente da República. O meu estilo é outro, eu acho que um ex-presidente colabora mais ficando calado.

Folha - Quem é o candidato do senhor em 2006?
Sarney -
Eu não vejo nenhum concorrente para o Lula hoje. Acho que ele está fazendo um governo bom.

Folha - Se o senhor tivesse de apontar um erro do governo Lula, nesses dois primeiros anos de mandato, qual seria?
Sarney -
Eu acho que ele não tem tido muita sorte em relação aos problemas de distribuição de renda e também ao emprego. Eu acho que esses são os dois pontos mais fracos que nós podemos encontrar no governo.

Folha - Por quê?
Sarney -
Porque a taxa de desemprego não baixou significativamente e continuamos no patamar quase paralisado de distribuição de renda.

Folha - O senhor acha que ele deixa a desejar na relação com o Congresso?
Sarney -
Não, ao contrário, ele está sendo de grande competência.

Folha - Apesar da eleição de Severino Cavalcanti na Câmara?
Sarney -
Não acredito que ele tenha tido derrotas pessoais, acho que foi mais uma divisão dentro do Congresso.

Folha - O senhor não está descolando a imagem do presidente do governo dele?
Sarney -
Com o seu carisma ele passou a ser um ícone popular, então isso o preserva de muitas das coisas que ocorrem.

Folha - O presidente está para fazer uma reforma ministerial. Em seu governo, esse era um momento de aflição?
Sarney -
Sempre foi uma coisa muito difícil.

Folha - Tem alguém que o senhor tenha se arrependido de ter demitido?
Sarney -
Olha, tem alguns que eu me arrependo de ter nomeado.

Folha - Quem?
Sarney -
Não vou revelar.

Folha - É público e notório que a sua filha, Roseana Sarney, vai virar ministra.
Sarney -
É público e notório que ela é um grande orgulho que eu tenho e é grande o carinho que tenho por ela. O resto eu não sei, ela caminha pelos próprios pés.

Folha - A indicação dela para um ministério pacificou a sucessão no Senado, acabando com a disputa entre o senhor e o atual presidente [Renan Calheiros]...
Sarney -
Seria muito menor na minha vida que a essa altura eu fosse brigar para ser presidente do Congresso Nacional. Isso aqui também não me acrescenta nada, até tira muito do meu tempo. Eu gosto de escrever, e isso aqui é uma compulsão, não pára.


Texto Anterior: Ex-prefeita está desinformada, diz governo de SP
Próximo Texto: Jânio de Freitas: Oportunidades de oportunista
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.