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NOVA REPÚBLICA - 20 ANOS
Ex-presidente, que ainda destaca desemprego como falha da gestão Lula, diz ter rompido com ortodoxia
"Renda é ponto fraco do governo", diz Sarney
VALDO CRUZ
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
FERNANDA KRAKOVICS
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Na véspera de completar 20
anos de sua posse na Presidência
da República, o senador José Sarney (PMDB-AP), 74, avalia que os
pontos fracos do governo Luiz
Inácio Lula da Silva são a distribuição de renda e o combate ao
desemprego.
"A taxa de desemprego não
abaixou significativamente e continuamos no patamar quase paralisado de distribuição de renda",
disse ele. Apesar das críticas, avalia que o petista não tem concorrente em 2006, porque está "fazendo um governo bom".
Aliado de Lula, Sarney não gosta de dar palpites na atual gestão
como o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso. "Eu acho que
um ex-presidente colabora mais
ficando calado." Entretanto, também não adota o mesmo estilo de
Lula, evitando criticar FHC, "um
homem talentoso".
Sarney assumiu interinamente,
no dia 15 de março de 1985, e em
definitivo, após a morte de Tancredo Neves, em 21 de abril de
1985. Para ele, esse foi o pior dia
de seu governo.
Ao analisar sua própria gestão
(1985-1990), Sarney avalia que foi
um erro fazer o Plano Cruzado 2 .
"[Hoje] eu preferia cortar a minha
mão a fazer o Cruzado 2."
Durante a entrevista, feita em
seu gabinete no Senado, o ex-presidente da Casa mobilizou assessores para procurar livros com
números revelando os resultados
"excepcionais" de seu governo.
"O Brasil cresceu cerca de 5% ao
ano, até hoje esses números não
foram superados", afirmou.
Mostrou-se incomodado, porém, ao ser lembrado que não
conseguiu controlar a inflação.
Pediu dados a assessores que
apontam, segundo ele, que a inflação estava dentro de parâmetros
normais. "Em dólar, que é a inflação verdadeira, a média anual foi
de 17,3%".
Apesar disso, Sarney disse que o
melhor dia de seu governo foi o
último e considerou um "milagre" ser aplaudido quando desceu
a rampa do Palácio do Planalto
depois de passar o cargo a Fernando Collor de Mello.
Folha - Vinte anos depois, qual a
sensação daquele susto de acordar
presidente?
Sarney - Foi uma sensação de
grande responsabilidade, perplexidade. Uma pessoa que é avisada
às três horas da manhã que vai assumir a Presidência da República,
sem ter formado seus ministérios,
sem ter participado da formulação de um programa de governo,
sem ter acompanhado as articulações que constroem a montagem
da administração.
Folha - Qual o principal legado do
seu governo?
Sarney - O legado foi a transformação democrática que o Brasil
viveu.
Folha - Hoje o que o senhor faria
diferente?
Sarney - É muito difícil. Ninguém faz o que faz porque deseja.
Quem governa governa com circunstâncias.
Folha - Mas olhando no retrovisor
é mais fácil.
Sarney - Eu não faria jamais o
[Plano] Cruzado 2, eu preferia
cortar a minha mão a fazer o Cruzado 2. Realmente foi um erro
porque a concepção econômica
dele estava errada e graças a esse
erro nós tivemos um processo
longo de aprendizagem.
Folha - O senhor teria feito o ajuste antes ou não teria feito nada?
Sarney - Os ajustes foram feitos,
mas não funcionaram. Fomos levados a um processo de tentar
reajustamentos que também não
deram certo, mas isso tudo foi um
aprendizado. Sem isso não poderia existir o Plano Real. Nós tivemos a coragem de romper com a
ortodoxia. Fugimos do processo
ortodoxo pelo qual iríamos à recessão, que iria inevitavelmente
criar uma área de desemprego.
Eu não tinha poder político para
fazer isso [recessão], eu não me
sustentaria, o governo seria condenado a cair. Eu tive a grande tarefa de primeiro legitimar-me no
poder e essa tarefa eu fiz.
Folha - Fazendo uma reflexão
hoje, em que outros pontos o
senhor teria adotado um caminho
diferente?
Sarney - Outro foi que eu não interferi na sucessão. Eu tomei uma
posição de magistrado e devia ter
feito tudo para unir. O meu desejo
era ter o Ulysses [Guimarães] como candidato e o Aureliano [Chaves] como vice-presidente, mas
eu não consegui. Eu acho que foi
um erro que eu fiz e que repercutiu no Brasil, porque terminou na
eleição do Collor, que foi um trauma para o país.
Folha - Um terceiro ponto.
Sarney - Eu devia ter procurado
criar um respaldo político para
assegurar a transição final. Eu
sempre achei que era um presidente que substituiu o Tancredo
[Neves] e tinha deveres com o
PMDB. Quando o PMDB rompeu
comigo, eu ainda fiquei preso nesse dever moral com o PMDB e me
senti inibido de procurar uma outra solução.
Folha - Foi um erro ruim esse...
Sarney - São as dificuldades de
uma transição democrática, nunca ninguém deixa de ter trauma,
mas eu fui capaz de administrá-la.
E os resultados não foram ruins
porque nós tivemos a menor taxa
de desemprego do Brasil, 2,29%.
O Brasil cresceu cerca de 5% ao
ano, até hoje esses números não
foram superados. Nós éramos o
terceiro exportador do mundo e
também nunca mais houve aquele crescimento de renda.
Folha - São números inegáveis,
mas o senhor não conseguiu vencer
a inflação.
Sarney - Hoje a gente já pode ver
que não se pode tratar o que é inflação com correção monetária e
o que é uma inflação sem correção monetária. Os parâmetros
são outros, não se pode julgar coisas desiguais.
Isso foi uma opção minha, porque eu não tinha força de impor
um programa dessa natureza, recessivo, eu optei por outra área.
Enfrentei a área internacional por
isso, mas o resultado foi que o desemprego foi o menor possível, a
renda subiu, nunca houve uma
redistribuição de renda igual
àquela que houve naquele período do Plano Cruzado.
Folha - E o PIB?
Sarney - Olha aqui, 100,6% nos
meus cinco anos. No governo Itamar-Collor, 34,15%; no governo
FHC, 8,61% nos seis primeiros
anos. Então, se nós examinarmos
esses resultados, vamos verificar
que foram excepcionais e foram
abafados por causa de uma campanha política. Eu não tinha
apoio político, não tinha partido.
Folha - Esses números foram
ofuscados pela inflação?
Sarney - Todo mundo ganhou
dinheiro na inflação. A coisa que
eu mais vejo hoje é o sujeito me
dizer: ""Olha, no seu tempo eu tinha dinheiro, hoje não tenho".
Folha - Tinha dinheiro quem tinha conta remunerada no banco.
Sarney - Não, todo mundo. Como assalariado você tinha uma
correção mensal. Depois o seguinte, a inflação que dizem que
era de 80%, em dezembro ela era
27%. Ela estava dentro dos parâmetros normais. O que a inflação
subiu nos três meses não foi minha, foi uma inflação psicológica.
E se nós fizermos uma apuração
em dólar, que é a inflação verdadeira, a média anual do governo
Sarney é 17,3%.
Folha - Fazendo um paralelo com
a atual gestão, o senhor falou que
teve coragem de romper com a ortodoxia. O senhor acha que o atual
governo não está tendo essa coragem e esse seria o caminho?
Sarney - O mundo hoje é inteiramente diferente. O mundo que eu
enfrentei era um mundo dividido,
era um período de absoluta guerra fria, o que me dava maior respaldo porque eu tive coragem de
enfrentar o sistema financeiro internacional.
Folha - Se o senhor tivesse de sintetizar em um só dia, qual foi o melhor dia do seu governo?
Sarney - O melhor dia do meu
governo? Foi o dia em que eu o
deixei.
Folha - Verdade?
Sarney - Verdade. No dia em que
eu saí do governo eu disse à minha mulher e a meus filhos: "Aí fora tem uma multidão extraordinária. Metade é para aplaudir o
Collor, a outra metade, do PT, é
para vaiar o Collor. E os dois lados
são para me vaiar. Eu vou descer a
rampa, sair pela frente, mas naturalmente vai ter hostilidade. Estou
felicíssimo porque cumpri o meu
dever". A minha perspectiva era
ser deposto. Fiz aquela doutrina e
saí disposto. Quando cheguei no
meio da rampa eu tirei um lenço e
fiz o gesto de quem está se despedindo. Aí houve um milagre, as
duas metades se juntaram e me
aplaudiram na saída.
Folha - O senhor se sente injustiçado?
Sarney - Pelo contrário, o que eu
ouço é que Sarney é um
homem bom, fez o que pôde.
Colocamos na agenda do país o
problema social. Tudo pelo social,
seguro-desemprego, vale-transporte, vale-alimentação, programa do leite.
Folha - O melhor dia foi o último,
e o pior?
Sarney - Foi o dia da morte do
Tancredo [21 de abril de 1985]. Foi
uma sensação de extremo desalento, assim como se o destino tivesse feito comigo uma coisa que
eu não merecia.
Folha - Mas o senhor estava ganhando a coisa mais importante...
Sarney - Eu nunca tive a noção
de que a Presidência era para
mim um ponto de glória.
Folha - Por quê?
Sarney - Porque não é do meu
estilo, o poder passa por mim e
não consegue me transformar. Eu
achava que a morte do Tancredo e
a minha posição de ex-presidente
do PDS seria uma frustração para
o povo brasileiro. E podia ter até
uma interpretação de que eu tinha sido um homem que tinha
aderido para poder usufruir uma
parcela de poder.
Folha - Tanto seus aliados como
seus inimigos dizem que o senhor
tem uma grande capacidade de se
manter no poder ao longo desses
anos todos.
Sarney - Mas eu não sei mandar.
Nas minhas decisões eu nunca
usei o verbo ""determino", eu
sempre ponho ""recomendo".
Folha - O senhor veio lá da Arena,
passou pelo PDS, foi para o PMDB
e agora continua no poder com
Lula...
Sarney - Nunca fiquei em uma
posição de colocar interesses pessoais à frente dos interesses do
país. E apoiei o governo Lula porque acho que é o fim do ciclo republicano.
Folha - O senhor vai ser candidato
ao Senado novamente no ano que
vem?
Sarney - Eu não tenho mais futuro, eu tenho passado. Se eu pudesse sair da política eu queria sair.
Folha - O senhor não consegue?
Sarney - Eu tenho deveres com o
país que não me permitem sair.
Folha - Ou seja, o senhor vai se
candidatar novamente.
Sarney - Não é o mandato que
me mantém na política.
Folha - O senhor poderia ficar
como o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, que está
presente na vida política mesmo
sem mandato?
Sarney - O Fernando Henrique
continua dentro da política, apenas não tem mandato. Às vezes, o
mandato até atrapalha.
Folha - Como o sr. avalia a atuação do ex-presidente Fernando
Henrique no momento atual da política brasileira?
Sarney - Eu acho que o Fernando Henrique é um homem talentoso. Eu acho que, dos presidentes
do nosso país, todos aqueles que
tiveram um temperamento forte
não se deram bem.
Folha - O senhor acha que ele está
dando muito palpite nesse momento?
Sarney - Não, cada um tem seu
estilo, ele gosta de dar palpite, eu
não gosto.
Folha - São bons ou maus palpites
que ele está dando no momento?
Sarney - Em todo palpite que ele
dá ele expressa um depoimento
de um homem que foi presidente
da República. O meu estilo é outro, eu acho que um ex-presidente
colabora mais ficando calado.
Folha - Quem é o candidato do senhor em 2006?
Sarney - Eu não vejo nenhum
concorrente para o Lula hoje.
Acho que ele está fazendo um governo bom.
Folha - Se o senhor tivesse de
apontar um erro do governo Lula,
nesses dois primeiros anos de mandato, qual seria?
Sarney - Eu acho que ele não tem
tido muita sorte em relação aos
problemas de distribuição de renda e também ao emprego. Eu
acho que esses são os dois pontos
mais fracos que nós podemos encontrar no governo.
Folha - Por quê?
Sarney - Porque a taxa de desemprego não baixou significativamente e continuamos no patamar quase paralisado de distribuição de renda.
Folha - O senhor acha que ele deixa a desejar na relação com o Congresso?
Sarney - Não, ao contrário,
ele está sendo de grande competência.
Folha - Apesar da eleição de Severino Cavalcanti na Câmara?
Sarney - Não acredito que ele tenha tido derrotas pessoais, acho
que foi mais uma divisão dentro
do Congresso.
Folha - O senhor não está descolando a imagem do presidente do
governo dele?
Sarney - Com o seu carisma ele
passou a ser um ícone popular,
então isso o preserva de muitas
das coisas que ocorrem.
Folha - O presidente está para fazer uma reforma ministerial. Em
seu governo, esse era um momento
de aflição?
Sarney - Sempre foi uma coisa
muito difícil.
Folha - Tem alguém que o senhor
tenha se arrependido de ter demitido?
Sarney - Olha, tem alguns que eu
me arrependo de ter nomeado.
Folha - Quem?
Sarney - Não vou revelar.
Folha - É público e notório que a
sua filha, Roseana Sarney, vai virar
ministra.
Sarney - É público e notório que
ela é um grande orgulho que eu
tenho e é grande o carinho que tenho por ela. O resto eu não sei, ela
caminha pelos próprios pés.
Folha - A indicação dela para um
ministério pacificou a sucessão no
Senado, acabando com a disputa
entre o senhor e o atual presidente
[Renan Calheiros]...
Sarney - Seria muito menor na
minha vida que a essa altura eu
fosse brigar para ser presidente do
Congresso Nacional. Isso aqui
também não me acrescenta nada,
até tira muito do meu tempo. Eu
gosto de escrever, e isso aqui é
uma compulsão, não pára.
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