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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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Governo saberá contrariar interesses, afirma Dirceu

Ministro convoca servidores para debater com a sociedade e admite ajuda do BNDES a setores "estratégicos"

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

Homem-forte do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, 57, reage à fama de ser concentrador dizendo que primeiro é preciso "ver os resultados".
O ministro defende e elogia a linha-dura adotada pelo colega Antonio Palocci, da Fazenda, como antídoto para evitar o desastre da economia, mas diz que nem o presidente nem ele estão satisfeitos com a situação atual.
A próxima grande batalha do governo, sugere o ministro, será pela reforma da Previdência. O regime dos servidores, uma das bases sociais históricas do PT, é uma "iniquidade", diz.
Na avaliação dos cem primeiros dias do governo, Dirceu reconhece erros e aponta correções nas ações da área social, onde também começa a operar, presidindo a câmara de políticas sociais.
O ministro não descarta que o BNDES venha auxiliar tanto a aviação civil como a mídia, setores em crise financeira, segundo ele estratégicos para o país.
No início da entrevista concedida à Folha, na tarde da última quinta-feira, em seu gabinete, Dirceu disse estar numa "fase ótima", apesar do cansaço. Perguntado se estaria vivendo um período paz e amor, respondeu de bate-pronto: "Eu nunca sou paz e amor. Paz e amor é o presidente."  

Folha - A política econômica adotada pelo governo radicalizou aquela praticada por Fernando Henrique. Os mercados gostaram. Muita gente que votou no PT nem tanto. O sr. está convencido de que fizeram a coisa certa?
José Dirceu -
Estou convencido de que foi certo, era necessário, não nos envergonhamos e temos o apoio da opinião pública. Há consciência na sociedade de que o governo tem que ter um tempo para reorganizar a máquina administrativa, os programas, a economia. Em segundo lugar, a guerra do Iraque só nos deu razão. Se tivéssemos adotado outra posição, evidentemente o país não resistiria, dada a sua fragilidade.
Considero fantástico o que nós fizemos. Construir maioria no Congresso, fazer uma transição administrativa sem solução de continuidade, fazer a transição econômica, reverter o risco-Brasil e o dólar sem permitir que o país entrasse numa crise maior.

Folha - Mas a chamada economia real, o setor produtivo, não está tão feliz assim. Está insatisfeito.
Dirceu -
Satisfeitos nós não estamos também. Nem o presidente nem nós, do governo.

Folha - O vice, José Alencar, tem reclamado. E a Maria da Conceição [Tavares,economista e mentora intelectual do PT" disse numa reunião diante da bancada do partido que, se os juros não baixarem, o país vai atrair uma enxurrada de capital especulativo e cair numa cilada como aquela do primeiro FHC. Tem prazo para a queda dos juros?
Dirceu -
Não tem prazo. Não é razoável pedir isso. Tem estratégia. O país estava à beira do desastre. Vamos fazer mudanças institucionais que viabilizam a redução dos juros.

Folha - A gestão do BNDES tem sido controvertida. Muitos dizem que virou um hospital. No caso da fusão Varig/TAM, o governo vai pôr dinheiro?
Dirceu -
O BNDES está trabalhando para evitar o pior na aviação civil. Mas não sem garantias. Nós não somos e não seremos banco-hospital, como se entendeu das declarações do presidente Carlos Lessa. Nem ele aceita isso. É preciso ter garantias.

Folha - Quais garantias?
Dirceu -
O BNDES não pode fazer aventura e emprestar recursos como no passado. Evitar que a Varig deixe de funcionar não basta. Precisa reorganizar todo o setor. Desregulamentar, como estavam fazendo, liberar as tarifas e liberar as linhas, não sei se é má-fé ou incompetência.
O que nós vamos fazer? Vamos reorganizar o setor com a menor participação possível de recursos públicos. Os recursos são escassos e são decisões difíceis que precisam ser tomadas. Eu empresto 200, 400, 600 milhões para que um setor se reorganize ou eu empresto para outro e crio 300 mil empregos e movo a economia de uma região? É complicado. O governo tem que pensar muito. Nós encontramos o BNDES numa situação muito grave. Gravíssima.

Folha - Mas tem muita gente que não está convencida de que o BNDES não está atuando como hospital. Como fica o caso do setor elétrico, por exemplo?
Dirceu -
Essa questão tem que ser discutida reservadamente porque envolve riscos altos para o Brasil. Todo mundo sabe que o governo norte-americano tem interesse nisso. Envolve riscos para o BNDES e para a economia do país. O problema do setor energético não é só de uma empresa que quebrou. Fizeram tudo errado. Ninguém está satisfeito.
Qual a nossa situação? As empresas vêm e pedem 44% de aumento na revisão quinquenal. Isso com dados, no contrato. Nós temos que manter o equilíbrio econômico e financeiro das empresas, mas do país também. Não podemos perder o controle das tarifas, simplesmente dolarizá-las. Não podemos simplesmente atender o pedido das empresas por aumento tarifário, mesmo o da Petrobras. Temos que olhar a economia brasileira.

Folha - O governo não está disposto a ceder neste ponto?
Dirceu -
Está disposto a negociar. Mas não vai reproduzir o modelo anterior. O modelo é outro. Agora é público-privado, não privado-público, vamos dizer assim. A privatização não deu certo no setor, como também não deu no ferroviário. Isso significa reestatização? Não. Nem rompimento de contratos. Mas, dentro dos limites dos contratos, vamos fazer tudo que pudermos para atender o interesse da economia nacional e do consumidor. Mais do que isso quem fala é a ministra Dilma [Roussef, das Minas e Energia".

Folha - E em relação à mídia, o que fazer? As grandes empresas de mídia estão quase todas em situação crítica de endividamento. O governo estuda algum auxílio ao setor, por considerá-lo estratégico?
Dirceu -
Nós consideramos, sim, a mídia um setor estratégico. Até para a democracia. Agora, como diria o presidente Lula, o governo tem dez filhos e só tem comida para três. Precisamos portanto pensar muito bem onde vamos alocar os recursos. A primeira orientação é trabalhar para que o setor bancário privado ajude. Segunda orientação: procurar que as empresas encontrem entre si soluções de fusões, de reestruturação. Terceiro: se, no limite, for necessária a participação do governo, fazê-la da maneira mais transparente e mais pública, com o menor aporte de recursos possível. Temos outras necessidades. Considero isso mais do que razoável. Não podemos deixar uma empresa como a Varig quebrar ou uma empresa como a Globo quebrar. É preciso pesar o custo-benefício para o país. Aqui tem racionalidade. Não têm influências escusas ou superficialidade.

Folha - Jornalistas têm reclamado muito da falta de acesso a informações, da falta de transparência e até de uma certa dureza no trato por parte do governo. Vocês até emitiram internamente um documento, ou uma cartilha, com orientações para controlar informações.
Dirceu -
Não tem cartilha nenhuma . O setor responsável pela segurança do Palácio do Planalto emite, através do sistema interno de comunicação, todo dia, um dos artigos, um pedaço daquilo que é o estatuto do funcionário público, daquilo que são as leis que existem de informação. Aí se transformou que era uma cartilha, se transformou que era uma lei. Não há nem lei nem cartilha. Tem isso. Não acho errado, porque nós temos que preservar as informações. Não existe só a imprensa. Existe interesse estrangeiro, existem interesses comerciais, existem interesses políticos, existe a oposição. Não há nada de ilegal nisso, nem nada que se volte contra a imprensa.
Pode ter havido, no começo do governo, falta de tempo, falta de estrutura, falta de atendimento, mas não há nada deliberado. No meu caso, por exemplo, uma absoluta falta de tempo e uma decisão política de só falar em "on" em coletivas, e eu assumo, evidentemente, as consequências dela.

Folha - O sr. está trabalhando quantas horas por dia?
Dirceu -
Eu chego à Casa Civil todo dia entre 8h e 8h30 e saio entre 21h e 22h. Procuro descansar pelo menos um fim de semana sim, um não, almoço regularmente, durmo muito bem, faço ginástica três vezes por semana, leio sinopses -não consigo ler como eu lia. Leio muito documento do governo, muito relatório, muito estudo, mas não consigo ler a imprensa como eu lia antes, nem ler os livros que eu quero ler.

Folha - A impressão que se tem é que o sr. concentra muitas coisas, e há setores que criticam isso.
Dirceu -
Primeiro, precisa ver os resultados. A vida é assim. Segundo, é o presidente que decide. Ele me conhece. O presidente Lula sabe que eu volto a ser deputado, vou fazer só uma tarefa se ele me pedir. Fico aqui na Casa Civil, da maneira que ele mandar e determinar que deve ser organizada a Casa Civil. Funcionamos objetivamente, vamos fazer avaliação a cada três, quatro meses.
Folha - O governo está disposto a comprar a briga com os servidores até o fim?
Dirceu - A reforma da Previdência é vital porque é preciso fazer justiça social. Salta à vista a iniquidade, num país que tem os problemas sociais que o Brasil tem, do regime dos servidores comparado com o regime geral. Isso é culpa dos servidores públicos? Não. Segundo, a Previdência é inviável do ponto de vista atuarial. Lógico que é viável, se o governo tirar sempre cada vez mais do Orçamento para colocar na Previdência. Nós vamos submeter essa decisão ao país. Os servidores públicos têm que fazer o debate com a sociedade e conosco, e nós vamos chegar a uma maioria. Podem protestar, se manifestar, fazer greve, a única coisa que eles não podem dizer que não está havendo debate, que o debate não é transparente, não é público, não é democrático. Estamos colocando tudo em cima da mesa para se discutir. Os números estão aí.

Folha - O Fome Zero recebeu muito apoio público. Mas houve muita cabeçada na condução do programa e entre os ministros da área social. Haverá mudança?
Dirceu -
Primeiro, nós recebemos uma herança de programas de transferência de renda e de benefício continuado. O diagnóstico de alguns deles era precário, de alguns nunca tinham sido feitos, e nós tivemos a coragem de fazer.
Temos uma avaliação de que é preciso ter um cartão unificado, um cadastro unificado, que tinha sido começado e nós precisamos concluir. Tudo indica que há fraudes demais nos cadastros. Há desperdício, portanto. O país precisa caminhar para um cadastro unificado, com um cartão do governo federal, não desse ou daquele ministério, um programa que seja bem gerenciado.
Nós, quando criamos a câmara de políticas sociais, criamos exatamente para procurar estudar e analisar tudo isso e fazer uma proposta para o presidente. O presidente vai tomar uma decisão sobre o que fazer.

Folha - O sr. acha que tem de haver uma coordenação maior?
Dirceu -
Já tem, tanto é que o presidente constituiu a câmara de políticas sociais. E me deu essa atribuição de coordenação da câmara no sentido de que é o presidente da República que está coordenando, porque quando a Casa Civil coordena alguma coisa, não sou eu, ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, quem está coordenando. Significa que o presidente avocou para si, porque eu presto contas diariamente para ele. Não faço política governamental sem o apoio e a anuência do presidente. Quando dá errado, a responsabilidade é minha.

Folha - A estratégia paz e amor esbarra no fato de que o governo terá que contrariar interesses em algum momento.
Dirceu -
Mas a isso nós estamos dispostos. Todos nós crescemos na adversidade. Nenhum de nós está onde está por favor de ninguém. Tudo isso aqui foi conquistado. Nosso povo conquistou, porque a maioria do povo votou. Todas as classes sociais, não estou discriminando nenhuma classe social. Todas as classes sociais do Brasil trabalharam por este momento. A democracia brasileira está se consolidando.
Os compromissos que nós assumimos de desenvolver o país, combater a corrupção, a pobreza, consolidar a democracia brasileira são factíveis. Não são impossíveis para os próximos 20 anos.

Folha - Isso quer dizer 20 anos com o PT no poder?
Dirceu -
Não. Se nós dermos uma contribuição em quatro anos, está importante, se forem oito, está importante. Espero que surjam novas lideranças. Não é todo dia que surge um Lula. Leva 20, 30, 50 anos para surgir um.


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