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Artigo
Centralização de poderes
Discurso de Bento 16 na conferência delineará diretrizes de debates em Aparecida
PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA
O PRONUNCIAMENTO
inaugural da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do
Caribe, que será realizado hoje
pelo papa Bento 16, delineará
as diretrizes que conduzirão os
debates em Aparecida, nos próximos dias, e na América Latina, nos próximos anos, e deverá
consolidar o acirramento da
centralização em detrimento
da colegialidade.
As conferências episcopais
nacionais e continentais, como
a Celam e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), foram criadas no bojo do
pós-guerra, com o objetivo de
reestruturar a evangelização na
América Latina ante a emergência da periferia como ator
social de peso e ante o desafio
do catolicismo de responder à
expansão do espiritismo e das
igrejas neopentecostais. A Celam constituiu-se em 1959, no
Rio de Janeiro; sete anos antes,
havia se formado a CNBB.
A massa enquanto categoria
de evangelização emergia como
desafio para o pensamento teológico que precisava enfrentar
as acusações de eurocentrismo
e de discriminação feitas pelas
ex-colônias africanas e asiáticas; novas nações surgiam no
cenário da Guerra Fria e de
contestação de uma vertente
do "ocidentalismo" que se
constituiu durante a expansão
colonial nos séculos 19 e 20.
A presença do papa em Aparecida neste dia 13 de maio,
quando se encontram os bispos
que representam a metade dos
católicos do mundo, carrega vários simbolismos. Bento 16 estará no santuário de Aparecida
no dia de Nossa Senhora de Fátima. Há exatos 90 anos, em 13
de maio de 1917, os irmãos pastores Francisco e Jacinta Marto teriam visto com a Lúcia de
Jesus, em Fátima, uma "senhora mais brilhante que o sol" em
cujas mãos havia um terço; era
a primeira de uma série de aparições que duraria até outubro.
A data também foi o dia em que
o João Paulo 2º sofreu, em 1981,
um atentado ao qual sobreviveu, segundo sua descrição,
graças à intervenção de Nossa
Senhora -esse foi o teor do terceiro segredo de Fátima.
Foi o pontífice quem designou a basílica de Aparecida para sediar a Celam. O local, projetado pelo arquiteto Benedito
Calixto, é o segundo maior templo católico do mundo -o primeiro é a basílica de São Pedro.
A basílica nova foi inaugurada
por João Paulo 2º em sua primeira visita ao país, em 1980.
A reunião iria se realizar em
Quito, no Equador, e foi transferida para Aparecida a pedido
do papa. Uma das justificativas
seria justamente a preocupação com a evasão de fiéis no
continente, e particularmente
no Brasil, reconhecida pelo papa em encontro com o episcopado brasileiro na catedral da
Sé anteontem.
Em seu pronunciamento no
local, Joseph Ratzinger exaltou
o papel do Brasil como modelo
de evangelização para a América Latina. "É um grande evento
eclesial que se situa no âmbito
do esforço missionário que a
América Latina deverá propor-se, precisamente a partir daqui,
do solo brasileiro", afirmou.
No cenário eclesial e político
do início do século 21, o Vaticano espera que o Brasil se posicione como retaguarda política
e moral para a manutenção de
uma forma de imaginar a igreja
como baluarte de uma idéia de
Ocidente e que se acredita capaz de lidar com a diversidade
das vivências do catolicismo
popular e da dupla pertença religiosa. Nesse aspecto, a canonização de frei Galvão traz a
consagração e o reconhecimento dessa potência católica, mesmo ante o processo de evasão
de fiéis, sobretudo os das regiões periféricas.
A igreja latino-americana
comprovou, a despeito de contrariedades, seu vigor teológico
e pastoral. Para a igreja, o ideal
de família como base civilizacional foi reafirmado como
exemplo para os demais países
do continente e como laboratório social do que se deve reconquistar na Europa Ocidental e
nos Estados Unidos, marcados
pelo laicismo.
Após o Concilio Vaticano 2º
(1962-1965) e as conferências
de Medellín (onde, em 1968, a
igreja latino-americana formalizou sua "opção preferencial
pelos pobres", no pontificado
de Paulo 6º) e Puebla (onde, em
1979, a mesma igreja ratificou
sua opção pela pastoral social,
no início do pontificado de
João Paulo 2º), paralelamente
ao enfraquecimento das CEBs
(as Comunidades Eclesiais de
Base, descritas por Ratzinger
como "células marxistas" e que,
ao que consta, não terão representação na Celam) e das pastorais sociais, o Vaticano conferiu à CNBB uma configuração mais centralizada e marcada
pela rigidez doutrinária.
A colegialidade foi cerceada
com o intuito de garantir o direcionamento das conferências
episcopais por parte do Vaticano e o eventual distanciamento
dos processos decisórios; esse
processo ocorreu por meio da
nomeação dos prelados e do delineamento de diretrizes vindas da Cúria Romana às conferências episcopais.
Em 1998, na carta apostólica
"Apostulos Suos", o pontífice
solicitou a reforma de todas as
conferências episcopais. A pedido da Santa Sé, o estatuto da
CNBB foi reformulado em
2001 para privilegiar a relação
direta do Vaticano com os bispos e para enfraquecer a atuação dos assessores e peritos,
que passaram a ter de indicar
em seus textos que não se trata
de um documento da CNBB.
Outro fator que favoreceu a
centralização foi o desmembramento da arquidiocese de São
Paulo, em 1989, a fim de esmorecer a liderança de d. Paulo
Evaristo Arns. Das cinco subdivisões, quatro ficaram sob a
responsabilidade de bispos indicados sem que d. Paulo fosse
consultado.
Teólogo reconhecido por sua
erudição, Ratzinger foi prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão responsável por
manter a ortodoxia católica,
entre 1981 e 2005, quando foi
eleito papa. Durante esse período, aproximadamente cem
teólogos foram punidos, entre
os quais o suíço Hans Küng e o
brasileiro Leonardo Boff.
Uma censura recente dirigiu-se ao padre belga José Comblin,
que se dedicou à formação de
seminaristas no campo, à "teologia da enxada". Teólogo da libertação, discursara sobre o papel de movimentos como a
Opus Dei na trajetória da igreja,
o que provocou reprimenda.
No livro "O Sal da Terra",
Ratzinger afirma entender que,
"quando entre bons teólogos há
posições doutrinárias claramente distintas, não podemos
declarar, por assim dizer, inspirados do alto, que só uma delas
é válida". A questão que se coloca é quais os critérios que definem a qualidade de um teólogo
-e sua punição ou exaltação.
PAULO DANIEL FARAH é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo
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