São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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Artigo

Centralização de poderes

Discurso de Bento 16 na conferência delineará diretrizes de debates em Aparecida

PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA

O PRONUNCIAMENTO inaugural da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, que será realizado hoje pelo papa Bento 16, delineará as diretrizes que conduzirão os debates em Aparecida, nos próximos dias, e na América Latina, nos próximos anos, e deverá consolidar o acirramento da centralização em detrimento da colegialidade.
As conferências episcopais nacionais e continentais, como a Celam e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), foram criadas no bojo do pós-guerra, com o objetivo de reestruturar a evangelização na América Latina ante a emergência da periferia como ator social de peso e ante o desafio do catolicismo de responder à expansão do espiritismo e das igrejas neopentecostais. A Celam constituiu-se em 1959, no Rio de Janeiro; sete anos antes, havia se formado a CNBB.
A massa enquanto categoria de evangelização emergia como desafio para o pensamento teológico que precisava enfrentar as acusações de eurocentrismo e de discriminação feitas pelas ex-colônias africanas e asiáticas; novas nações surgiam no cenário da Guerra Fria e de contestação de uma vertente do "ocidentalismo" que se constituiu durante a expansão colonial nos séculos 19 e 20.
A presença do papa em Aparecida neste dia 13 de maio, quando se encontram os bispos que representam a metade dos católicos do mundo, carrega vários simbolismos. Bento 16 estará no santuário de Aparecida no dia de Nossa Senhora de Fátima. Há exatos 90 anos, em 13 de maio de 1917, os irmãos pastores Francisco e Jacinta Marto teriam visto com a Lúcia de Jesus, em Fátima, uma "senhora mais brilhante que o sol" em cujas mãos havia um terço; era a primeira de uma série de aparições que duraria até outubro.
A data também foi o dia em que o João Paulo 2º sofreu, em 1981, um atentado ao qual sobreviveu, segundo sua descrição, graças à intervenção de Nossa Senhora -esse foi o teor do terceiro segredo de Fátima.
Foi o pontífice quem designou a basílica de Aparecida para sediar a Celam. O local, projetado pelo arquiteto Benedito Calixto, é o segundo maior templo católico do mundo -o primeiro é a basílica de São Pedro. A basílica nova foi inaugurada por João Paulo 2º em sua primeira visita ao país, em 1980.
A reunião iria se realizar em Quito, no Equador, e foi transferida para Aparecida a pedido do papa. Uma das justificativas seria justamente a preocupação com a evasão de fiéis no continente, e particularmente no Brasil, reconhecida pelo papa em encontro com o episcopado brasileiro na catedral da Sé anteontem.
Em seu pronunciamento no local, Joseph Ratzinger exaltou o papel do Brasil como modelo de evangelização para a América Latina. "É um grande evento eclesial que se situa no âmbito do esforço missionário que a América Latina deverá propor-se, precisamente a partir daqui, do solo brasileiro", afirmou.
No cenário eclesial e político do início do século 21, o Vaticano espera que o Brasil se posicione como retaguarda política e moral para a manutenção de uma forma de imaginar a igreja como baluarte de uma idéia de Ocidente e que se acredita capaz de lidar com a diversidade das vivências do catolicismo popular e da dupla pertença religiosa. Nesse aspecto, a canonização de frei Galvão traz a consagração e o reconhecimento dessa potência católica, mesmo ante o processo de evasão de fiéis, sobretudo os das regiões periféricas.
A igreja latino-americana comprovou, a despeito de contrariedades, seu vigor teológico e pastoral. Para a igreja, o ideal de família como base civilizacional foi reafirmado como exemplo para os demais países do continente e como laboratório social do que se deve reconquistar na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, marcados pelo laicismo.
Após o Concilio Vaticano 2º (1962-1965) e as conferências de Medellín (onde, em 1968, a igreja latino-americana formalizou sua "opção preferencial pelos pobres", no pontificado de Paulo 6º) e Puebla (onde, em 1979, a mesma igreja ratificou sua opção pela pastoral social, no início do pontificado de João Paulo 2º), paralelamente ao enfraquecimento das CEBs (as Comunidades Eclesiais de Base, descritas por Ratzinger como "células marxistas" e que, ao que consta, não terão representação na Celam) e das pastorais sociais, o Vaticano conferiu à CNBB uma configuração mais centralizada e marcada pela rigidez doutrinária.
A colegialidade foi cerceada com o intuito de garantir o direcionamento das conferências episcopais por parte do Vaticano e o eventual distanciamento dos processos decisórios; esse processo ocorreu por meio da nomeação dos prelados e do delineamento de diretrizes vindas da Cúria Romana às conferências episcopais.
Em 1998, na carta apostólica "Apostulos Suos", o pontífice solicitou a reforma de todas as conferências episcopais. A pedido da Santa Sé, o estatuto da CNBB foi reformulado em 2001 para privilegiar a relação direta do Vaticano com os bispos e para enfraquecer a atuação dos assessores e peritos, que passaram a ter de indicar em seus textos que não se trata de um documento da CNBB.
Outro fator que favoreceu a centralização foi o desmembramento da arquidiocese de São Paulo, em 1989, a fim de esmorecer a liderança de d. Paulo Evaristo Arns. Das cinco subdivisões, quatro ficaram sob a responsabilidade de bispos indicados sem que d. Paulo fosse consultado.
Teólogo reconhecido por sua erudição, Ratzinger foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão responsável por manter a ortodoxia católica, entre 1981 e 2005, quando foi eleito papa. Durante esse período, aproximadamente cem teólogos foram punidos, entre os quais o suíço Hans Küng e o brasileiro Leonardo Boff.
Uma censura recente dirigiu-se ao padre belga José Comblin, que se dedicou à formação de seminaristas no campo, à "teologia da enxada". Teólogo da libertação, discursara sobre o papel de movimentos como a Opus Dei na trajetória da igreja, o que provocou reprimenda.
No livro "O Sal da Terra", Ratzinger afirma entender que, "quando entre bons teólogos há posições doutrinárias claramente distintas, não podemos declarar, por assim dizer, inspirados do alto, que só uma delas é válida". A questão que se coloca é quais os critérios que definem a qualidade de um teólogo -e sua punição ou exaltação.


PAULO DANIEL FARAH é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo


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