São Paulo, segunda-feira, 13 de agosto de 2007

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ENTREVISTA JOÃO MOREIRA SALLES

Cineasta aborda o fiasco do projeto de conferir ao país relevância no cenário mundial a partir de filme sobre memórias do mordomo que serviu sua família em três décadas

"As ambições do Brasil se tornaram mais medíocres"

O CINEASTA João Moreira Salles, 45, cresceu numa casa na Gávea, onde seu pai, o diplomata e banqueiro Walther Moreira Salles, recebia o jet set das artes, da economia e da política do Brasil e de fora, nos 50 e 60. Entrelaçando suas memórias e as de Santiago, o mordomo da casa, o diretor fez seu quarto filme -"Santiago", um documentário sobre como o tempo passou para o mordomo, a família e o país. (SILVANA ARANTES)

 

FOLHA - Como propôs ao ex-mordomo de sua família filmá-lo? Ele relutou ou aceitou prontamente?
JOÃO MOREIRA SALLES
- Faz tanto tempo que não sei se me lembro direito. Eu pretendia fazer um filme sobre a casa em que cresci. Quando filmei [em 1993], a casa estava abandonada [hoje abriga o Instituto Moreira Salles, no Rio], tinha perdido o sentido, o que refletia, pelo menos para mim, a trajetória da cidade e do país.
Pretensiosamente, achei que a casa abandonada podia ser uma espécie de alegoria, porque era um esqueleto. Podia representar esse Brasil sem sentido. Evidentemente, não era uma boa idéia: filmes alegóricos são de amargar.
Santiago seria o segundo personagem do filme, e o único em carne e osso. Caberia a ele preencher a casa com as suas histórias e a sua imaginação. O filme alternaria a decadência do presente com o esplendor do passado. Até onde me lembro, ele aceitou na hora.

FOLHA- A que se refere quando diz que o país perdeu o sentido?
SALLES
- Aquela é uma casa da década de 50, quando o Brasil tinha uma arquitetura importante; produzia uma literatura muito inovadora; teve grande ambição no cinema, com o cinema novo; e na música, com a bossa nova. De uma maneira miúda, a casa se inseria na idéia de que, no concerto geral das nações, o Brasil não era irrelevante. Isso inclui a dimensão econômica, política e social. Do ponto de vista dessas esferas, a casa era uma espécie de centro. Por ali passava muita gente que tinha expressão na política, na economia, no mundo social. O Rio era uma cidade importante, ainda não tinha perdido o rumo.
Quando fiz o filme, o país estava inteiramente sem rumo. Tornava-se a cada dia mais irrelevante. Não sei se melhoramos muito de lá para cá.

FOLHA - De Collor de Mello para cá?
SALLES
- Sim. O Brasil perdeu importância e está tentando encontrar uma maneira de voltar a ter alguma, mas não sei se encontrou. Sem dúvida, o país tem menos rumo hoje do que tinha na década de 50. A promessa do Brasil era maior.
A gente podia imaginar que o país seria melhor na virada da década de 50 do que pode imaginar hoje o que será o país daqui a dez anos.

FOLHA - Encurtou o horizonte?
SALLES
- Encurtou. Tornou-se mais medíocre. Não estou dizendo que o Brasil é um país medíocre. Essa é a frase do [presidente] Fernando Henrique [Cardoso, na revista "Piauí", editada por João Moreira Salles], não minha. Estou dizendo que as nossas ambições se tornaram mais medíocres. Disso não tenho dúvida.

FOLHA - No cinema também? Hoje temos um cinema sem ambições?
SALLES
- O cinema é importante dentro de determinado caldo cultural. Quando esse caldo desaparece, pode haver cineastas extraordinários, e eles existem, mas os filmes não têm mais centralidade. O cinema teve o seu momento, e o momento passou. A centralidade hoje está na tecnologia, na ciência.
Houve um deslocamento do que é vital para uma cultura. O que há de vivo hoje nas artes e tem algum impacto é a arquitetura. Não consigo imaginar em nenhuma outra manifestação das artes um impacto tão grande quanto o museu de Bilbao produziu na cidade de Bilbao e por conseguinte na Espanha.

FOLHA - No filme "Santiago", você afirma não ter se dado conta, nas filmagens, que o conflito de classe contido na relação patrão/empregado estendia-se à relação diretor/ entrevistado. É porque pensava em sua relação com Santiago pela perspectiva do afeto, não como patrão?
SALLES
- De maneira nenhuma quero parecer alguém que tinha maior identificação com quem está do outro lado do conflito de classe, que eu era mais próximo dos empregados. Não é nada disso!
É algo tipicamente brasileiro. Está em Gilberto Freyre, em "Casa Grande & Senzala" -a impossibilidade de a gente não transformar as relações profissionais, principalmente as ligadas à vida domiciliar, em relações que também são pessoais.
É muito diferente do que acontece no mundo anglo-saxão, por exemplo. Aqui a coisa se mistura e se torna impura.
Nesse caso específico, havia um genuíno afeto, de parte a parte. E o afeto atravessa o conflito de classe, rompe um pouco da barreira imposta, é subversivo nesse sentido. No filme, você pode detectar os momentos em que o afeto é mais vivo do que a relação patrão/empregado e os em que a relação patrão/empregado se sobrepõe à relação de duas pessoas que têm um carinho recíproco. Isso é uma coisa muito brasileira. A gente não consegue ser inteiramente impessoal. Não acho que isso seja necessariamente uma virtude. Nem sempre é, porque te permite, muitas vezes, ser pessoal quando deveria ser impessoal.

FOLHA - Quando seguia Lula num carro inferior ao dele, filmando "Entreatos", sobre a campanha presidencial de 2002, ele o chamou com ironia de "pau-de-arara"? O conflito de classe não está sempre presente?
SALLES
- Eu diria que, num documentário, a questão do poder está sempre presente e talvez transcenda até a questão de classe. Posso filmar alguém mais poderoso do que eu, mas, no momento em que o filme é meu, o poder é meu também.
Posso filmar o Bush, a Condoleezza Rice. No momento da filmagem, quem manda sou eu. Que ela ou ele não se enganem. Não há como fugir do fato de que o poder de quem filma é sempre maior do que o poder de quem é filmado, ainda que você esteja filmando alguém que, na escala geral do poder, esteja acima de você.
Porque sou eu que enquadro, sou eu que escolho o que perguntar, sou eu que escolho o que editar.

FOLHA - Ainda pretende filmar os últimos dias do governo Lula, como havia anunciado?
SALLES
- Tudo é descontínuo, principalmente a vontade. O que estou dizendo hoje talvez não valha amanhã. É possível que, no final do governo Lula, eu tenha vontade de fazer o que fiz [em "Entreatos"].
Mas não precisa ser um filme, posso fazer para a "Piauí". Mas talvez seja mais fácil fazer um filme. Não descarto a possibilidade.

FOLHA - Sobre a "Piauí", que tal a experiência na "mídia burguesa"?
SALLES
- Somos imprensa nanica! Somos combativos. A gente é contra o sistema [risos]. A "Piauí" tem sido um barato. Entrei no cinema meio acidentalmente e nunca achei que pertencesse a ele.
Não que eu me sinta pertencendo ao mundo do jornalismo, mas me sinto mais próximo e mais à vontade nele do que no mundo do cinema. Cineastas são muito apaixonados e falam do cinema com uma paixão à qual eu nunca soube corresponder. Acho saudável que seja assim. Quisera eu poder achar que alguma coisa tem tanta importância. Mas sempre me senti deslocado nesse negócio.

FOLHA - Fazer "Santiago" exigiu coragem?
SALLES
- De jeito nenhum. Foi uma edição prazerosa, não foi um parto doloroso, uma agonia. Por ser muito pessoal, as pessoas têm a impressão de que cada dia na ilha de edição era uma sessão de psicanálise, que eu saía chorando.
A gente [os montadores Eduardo Escorel, Lívia Serpa e Salles] realmente ria e ria muito, até pelo ridículo do meu comportamento que o material bruto revelava. Não sei direito por que falam em coragem.

FOLHA - De se expor.
SALLES
- O que me aflige quando as pessoas dizem que o filme é corajoso é que entendo isso assim: "Olha como ele é vaidoso!". Porque exibir publicamente suas fragilidades parece uma espécie de expiação em praça pública na qual você diz: "Agora sou virtuoso. Olha como eu era, e olha como eu fiquei. Tenho a coragem de mostrar como eu era. Então houve um progresso moral". Não é isso.
Eu quis fazer um filme. E não havia como fazer o filme de outra maneira. Esse filme, sem deixar claro a natureza da minha relação com Santiago, é um filme inexistente. É o que tentei fazer em 1993 e fracassou.

FOLHA - Você diz que, ao ver seu mordomo vestindo fraque para tocar Beethoven a sós, aprendeu com ele "certa noção de respeito". Qual?
SALLES
- Uma noção de respeito ligada à tradição, talvez até um pouco conservadora. Diante de determinadas coisas e pessoas, é preciso certa liturgia, certa solenidade. Acredito nisso.
Dito de outra maneira, tenho a impressão de que isso não me faz um iconoclasta. Acho que me alinho mais com as pessoas que estão do lado da tradição do que com as que derrubam a tradição. Tenho um grande respeito pela tradição.


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