|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA DA 2ª
Para o brasileiro Alfredo Valladão, está na hora de a classe política ser mais séria no país vizinho
Analista vê vácuo de liderança na Argentina
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Como não investiram no país
nem fizeram o que era necessário
para modernizar sua estrutura
produtiva, as elites argentinas
contribuíram para que a situação
chegasse ao ponto atual. O principal problema argentino não é econômico, mas político. Trata-se de
um vácuo de liderança que assola
a esquerda, o centro e a direita. Os
líderes criaram a anomia atual.
Assim, está na hora de a Argentina ter uma classe política mais
responsável e mais séria.
A análise é do brasileiro Alfredo
Valladão, responsável pela cátedra Mercosul no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences
Po). Para ele, a problemática atual
constitui uma espécie de crise de
crescimento ou de amadurecimento da democracia na América
Latina, onde há uma forte tomada
de consciência por parte das populações no que se refere à necessidade da existência de honestidade e de idoneidade na política.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - O sr. acredita que a crise
atual argentina se insira dentro de
um processo histórico?
Alfredo Valladão - Sim, creio que
ela se insira num processo histórico bastante amplo. Nos últimos
60 ou 70 anos, a Argentina viveu
com uma ilusão do começo do século 20. Trata-se de uma tese que
era bastante popular na América
Latina, a idéia de que bastava ter
alguns recursos naturais importantes e vendê-los ao exterior para
que a população do país pudesse
viver em boas condições.
Assim, o que aconteceu agora se
enquadra nesse contexto. Afinal,
as elites políticas argentinas nunca tentaram modernizar verdadeiramente a economia do país
para buscar inseri-lo no processo
de modernização da economia
mundial. Como não investiram
nem fizeram o que era necessário
para modernizar a estrutura produtiva argentina, as elites contribuíram para que a situação chegasse a esse ponto.
Logicamente, também há motivos circunstanciais para a crise
atual. Entretanto a razão fundamental e mais profunda diz respeito a essa inadaptação da classe
política e da economia argentina
ao mundo moderno. Como era
um país relativamente abastado e
com uma população educada, a
Argentina conseguia empurrar o
problema, porém essa situação
era insustentável a longo prazo.
Folha - O fato de a população argentina ter participado ativamente da cena política recentemente
mostra a maturidade democrática
do país e da América Latina ou
constitui uma ameaça às instituições democráticas?
Valladão - Os dois aspectos coexistem. De um lado, há uma tomada de consciência muito marcante por parte das populações da
América Latina no que se refere à
necessidade da existência de honestidade e de idoneidade na política. Essa tendência está se intensificando, e as demonstrações de
cidadania vistas na Argentina
mostram isso, o que é um fator
bastante positivo.
Por outro lado, o aspecto negativo é que, na Argentina -talvez
mais do que em outros países da
América do Sul-, há uma espécie de desconfiança generalizada
da população em relação aos políticos. Isso não só contra um determinado partido mas contra toda a
classe política -seja de esquerda,
seja de direita.
Isso ocorre porque as elites latino-americanas e, sobretudo, as
argentinas não se comprometem
verdadeiramente com o crescimento de seu próprio país. Ninguém quer assumir as responsabilidades necessárias. Esse é, portanto, o lado negativo, já que a
desconfiança generalizada em relação aos políticos pode levar ao
aparecimento de caudilhos ou de
"salvadores da pátria". E sabemos
o quanto isso é prejudicial às instituições democráticas.
Não podemos esquecer, no entanto, que há essa vontade popular de manter e de solidificar a democracia, acabando com a corrupção que mina as instituições
democráticas. Assim, sabemos
que há tanto o lado positivo quanto o negativo nesse contexto.
Folha - Vários países latino-americanos viveram sob regimes militares na segunda metade do século
passado e, em seguida, passaram
por processos de democratização.
O sr. crê que o que ocorreu na Argentina possa propagar-se para
outros Estados da região?
Valladão - Toda a problemática
atual me parece uma espécie de
crise de crescimento ou de amadurecimento da democracia na
América Latina. Além disso, devemos separar o lado andino da
América do Sul do que poderíamos chamar de Cone Sul, no qual
se encontra o Brasil.
No Cone Sul, houve um fortalecimento dos movimentos e das
instituições democráticas na última década. Algo fundamental
nesse quadro é a cláusula democrática que faz parte dos textos do
Mercosul. Se não for democrático, um Estado não poderá fazer
parte do bloco. Outro exemplo foi
o trabalho realizado pelos países
vizinhos [Brasil e Argentina"
quando houve uma tentativa de
golpe no Paraguai em meados da
década de 1990.
Não acredito que, atualmente,
haja uma involução. Afinal, o que
realmente existe é uma participação cada vez maior da sociedade
civil dentro da cena política, o
que, além de ser positivo, é novo
na América Latina. É claro que isso leva a grandes discussões políticas, podendo até provocar crises, mas isso é benéfico para a democracia. Essa tendência só será
prejudicial se desembocar no velho populismo latino-americano,
como aconteceu na Venezuela
com o presidente Hugo Chávez.
Por enquanto, não vejo esse perigo rondando o Brasil, pois as
populações tanto no Brasil quanto na América Latina estão cada
vez mais conscientes de que não
há um "salvador da pátria". Não
existe solução miraculosa. O único remédio é mais democracia,
mais trabalho, mais seriedade
econômica e menos corrupção, o
que não pode ser atingido com regimes autoritários.
Folha - Apesar disso, se o presidente Eduardo Duhalde fracassar,
assim como seu antecessor, Adolfo
Rodriguez Saá, há o perigo de um
golpe militar na Argentina?
Valladão - Acho muito difícil por
algumas razões. É quase inviável
pôr no poder um Exército que
perdeu uma guerra. Após a derrota na Guerra das Malvinas [1982,
contra o Reino Unido" e todo o
período de repressão ocorrido no
final da década de 1970, os militares argentinos perderam boa parte de sua credibilidade.
Hoje as Forças Armadas argentinas encontram-se bastante enfraquecidas, e duvido de que haja
militares dispostos a assumir a
responsabilidade de gerir a situação gravíssima que o país está vivendo. Seria mais um modo de
macular a instituição militar.
Assim, é improvável que haja
um golpe militar. Isso só ocorreria se a anomia atual levasse o país
a um estado de anarquia total. E,
mesmo assim, creio que os militares só agiriam se encontrassem
respaldo político ou popular.
Folha - Como a crise afeta o Mercosul (bloco composto por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai)?
Valladão - Temos de torcer para
que a instabilidade argentina dê
novo impulso ao Mercosul, já
que, a partir de agora, o Brasil e a
Argentina podem ter políticas
econômicas convergentes. Nenhum dos dois Estados pode
prescindir do Mercosul. Mesmo o
Brasil, que é um país muito maior
e mais industrializado que a Argentina, não tem condições de ser
bem-sucedido sozinho dentro da
cena internacional.
Para que possam participar ativamente da economia global, ambos os países precisam do Mercosul. O Brasil não pode abrir mão
dele nem das relações privilegiadas com seu maior parceiro, a Argentina. Queiramos ou não, a Argentina sempre será nossa vizinha. Temos interesse em viver ao
lado de uma Argentina forte e
próspera, não ao lado de um país
enfraquecido e anárquico.
Nesse contexto, é possível que
essa crise atual ajude o Mercosul.
Isso ocorrerá se os dirigentes brasileiros tomarem consciência da
necessidade de intensificar a integração institucional do bloco, o
que Brasília não fez muito nos últimos anos. Isso permitirá que esse tipo de crise seja mais bem administrado no futuro.
Ao mesmo tempo, na Argentina, a classe política terá de perceber que o Brasil é um parceiro indispensável. Além disso, o fim do
Mercosul seria grave para ambos
os países no que se refere a negociações internacionais futuras.
Folha - Como a Alca (Área de Livre
Comércio das Américas) se insere
nesse quadro?
Valladão - As negociações relacionadas à Alca vão depender
muito da atitude dos EUA nos
próximos meses. Creio que tanto
a Argentina quanto o Brasil precisem da Alca, pois o continente
americano é o maior mercado de
ambos no que concerne aos grandes blocos mundiais atuais. Isso é
irrefutável, e quem diz que a China, a Índia e a Rússia podem substituir o mercado das Américas
não sabe o que está falando.
Isso talvez se torne verdade
num futuro longínquo, mas, por
enquanto, nossos maiores mercados estão na América do Sul e na
América do Norte. Nosso problema hoje diz respeito ao modo de
negociar a Alca, porém sua existência não é mais questionada.
Num primeiro momento, a crise
argentina mina a posição brasileira e a do Mercosul no que se refere
às discussões relacionadas à Alca.
Assim, será ótimo se a Argentina e o Mercosul puderem estar
em condições mais estáveis quando as negociações tiverem início.
Todavia não há apenas a Alca, visto que também negociamos uma
aproximação com a União Européia. Esse "triângulo atlântico",
entre a América do Sul, a América
do Norte e a Europa, é fundamental para a Argentina e para o Brasil, já que, assim, ambos terão
mais margem de manobra em
discussões internacionais. A Alca
é um desafio, mas não é negativa.
Folha - Voltando à crise propriamente dita, qual é a diferença, se é
que ela existe, entre o consenso
contrário aos políticos e a idéia de
que a democracia é incapaz de resolver os problemas argentinos?
Valladão - Não creio que possamos dizer que essa idéia já está
enraizada na Argentina. Como vimos recentemente, os argentinos
querem mais democracia, buscam um verdadeiro sistema democrático. Atualmente, os argentinos lutam contra essa pseudo-democracia, contra um regime
em que há corrupção generalizada e irresponsabilidade política.
Na Argentina, o problema central hoje não diz respeito à democracia, mas às elites do país: investidores, industriais, políticos etc.
Não há um consenso sobre o rumo que o país deve seguir. O setor
financeiro não se entende com o
industrial, que, por sua vez, não
concorda com o agrário e assim
por diante. Falta mais responsabilidade à classe política e às outras
elites argentinas.
Uma das grandes diferenças entre a Argentina e o Brasil diz respeito a essas elites. Na Argentina,
elas preferiram enviar dinheiro ao
exterior a investir dentro do próprio país, o que não ocorreu nem
ocorre em grande escala no Brasil.
Assim, creio que as elites argentinas passem por uma crise de responsabilidade. E é possível que
esse terrível período que a Argentina está atravessando seja um
momento de conscientização dessas elites. Afinal, elas têm de decidir se estão comprometidas com
o futuro do país ou se querem
mudar-se para Miami.
Folha - Duhalde poderá conquistar a legitimidade que a eleição
presidencial de 1999 lhe negou?
Valladão - Atualmente, a legitimidade de qualquer político argentino depende do modo como
a crise será administrada. Isso
porque qualquer solução será
muito dolorosa para a população.
Tudo gira, portanto, em torno da
questão de como essa dor será administrada. Será que ela será gerida como sempre? Ou seja, a população pagará o preço mais alto enquanto as elites serão poupadas
mais uma vez? Se agir assim, Duhalde não conquistará a legitimidade de que tanto precisa.
Folha - As articulações políticas
dos últimos dias demonstraram a
montagem de um mecanismo de
apoio baseado sobretudo nos governadores. No plano político, isso
sinaliza algo sólido e viável ou apenas denota que o fisiologismo deve
marcar os próximos anos?
Valladão - Ambos os casos são
possíveis. Obviamente, os governadores representam canais privilegiados de fisiologismo. Por
outro lado, na situação atual argentina -em que o governo central praticamente deixou de existir-, não há solução possível sem
a participação dos governadores.
Outro grave problema argentino diz respeito às divisões existentes dentro do Partido Justicialista [peronista". Afinal, a maioria
dos governadores é peronista, e
cada um deles é um barão dentro
do peronismo. Cada governador
tem suas ambições pessoais, gerando um caos político. O próprio
Rodriguez Saá acabou caindo
porque não queria aceitar o jogo
do partido. Foi a pressão de seus
próprios companheiros de partido que o derrubou.
Como dizia [o escritor Jorge
Luis" Borges, "os peronistas não
são nem bons nem maus, eles são
incorrigíveis". Aí está o problema.
O peronismo, que tem sido a espinha dorsal da cena política argentina nos últimos 50 anos, terá de
modernizar-se, já que, se não o fizer, ele acabará explodindo. Sem
dúvida, a solução da crise passa
por essa transformação do peronismo, no qual os governadores
são bastante influentes.
Em resumo, o vácuo de liderança é um problema gravíssimo.
Desde o princípio, tenho dito que
o principal problema argentino
não é econômico, mas político.
Trata-se de um vácuo de liderança que assola a esquerda, o centro
e a direita. Os líderes atuais criaram a anomia política argentina.
Está na hora de a Argentina ter
uma classe política mais responsável e mais séria.
Texto Anterior: Rio de Janeiro: Garotinho vai deixar dívidas para Benedita Próximo Texto: Frases Índice
|