São Paulo, quarta-feira, 14 de janeiro de 2004

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Para Lula, modelo perverso vigorou até 2002

Presidente afirma que política econômica separou "equivocadamente" o econômico do social e "divorciou responsabilidade e justiça"

DO ENVIADO ESPECIAL A MONTERREY

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez ontem talvez a sua mais dura crítica ao modelo de desenvolvimento econômico adotado pelo Brasil até 2002, qualificando-o de "modelo perverso que separou equivocadamente o econômico do social, opôs estabilidade a crescimento e divorciou responsabilidade e justiça".
Como corolário natural, o presidente Lula disparou: "Chegou a hora de resgatar e afirmar de uma vez por todas a primazia do interesse coletivo e da coisa pública nas Américas".
Engatou: "A estabilidade econômica foi pensada de costas para a justiça social. Ficamos sem as duas".
Mas o discurso não combina com o fato de que o presidente, cuja política econômica é essencialmente a mesma que vigorou até 2002, acredita estar assentando "os alicerces para o país crescer com justiça social".
Emendou com uma longa lista do que considera realizações sociais de seu governo, começando com: "Desencadeamos a luta contra a fome. Os famintos não podem esperar".
O discurso foi feito na sessão de trabalho da Cúpula Extraordinária das Américas, em Monterrey, no México, na qual se debateu o desenvolvimento social.
O presidente começou por assinalar que "uma exclusão (social) secular ganhou maior dimensão na década passada".
Citou, em seguida, todos os dados que demonstram um quadro de desespero social na América Latina, entre eles o fato de que o número de pessoas em condições de extrema pobreza saltou de 48 milhões para 57 milhões em dez anos. Foi aí que encaixou a crítica o "modelo perverso".

Balanços e FMI
A partir daí, o líder de esquerda deu lugar ao governante, que repete, uma e outra vez, como o fez ontem de novo, que está hoje mais otimista que há um ano (quando tomou posse).
O motivo para o otimismo não é, no entanto, a mudança do modelo, mas a coleção de números já divulgados nos diferentes balanços oficiais sobre o primeiro ano da gestão Lula.
Exemplos: "Implantamos, dentre outros, programas de micro-crédito e o maior financiamento para a agricultura familiar que o Brasil já teve"; "Estamos também erradicando o analfabetismo": "Essas e outras iniciativas promovem a justiça social e ajudam o crescimento sustentado. Mais que isso, forjam cidadania".
Terminada a propaganda, volta o líder de esquerda ou, ao menos, nacionalista. Na área das negociações comerciais internacionais, por exemplo, Lula defendeu a tese de que elas devem "preservar a capacidade dos Estados nacionais de formularem políticas industriais, agrícolas, de ciência e tecnologia, sociais e ambientais".
É alusão a uma das muitas causas de divergência entre Brasil e Estados Unidos nas negociações da Alca (Área de Livre Comércio das Américas): pela proposta norte-americana sobre investimentos, por exemplo, ficaria inviabilizada a formulação própria dessas políticas.
Lula criticou também o fato de que "receitas rígidas frustram o desenvolvimento de muitos países, ampliam seus impasses econômicos e sociais e, frequentemente, reproduzem de forma ampliada a crise macro-econômica que queriam corrigir".
Pode ser tomada como alusão às receitas do FMI (Fundo Monetário Internacional), aplicadas indistintamente a países em diferentes condições de desenvolvimento econômico e social.
Mas Lula desautorizou tal interpretação, em posterior entrevista coletiva, dizendo que não mencionara nenhum organismo internacional. Seria, na sua própria interpretação, uma crítica à regras fixas sem levar em conta "a realidade de cada país".
Aí também haveria uma contradição: o governo Lula não só manteve as condições do acordo com o Fundo Monetário Internacional acertado pelo governo anterior (e seu "modelo perverso"), como aceitou regras ainda mais rígidas em termos de superávit fiscal (receitas menos despesas do governo, fora juros), o que reduz o espaço para os investimentos da "coisa pública", reivindicada no início do discurso.
Mas o presidente Lula descarta a contradição. "O Brasil está sendo respeitado e está muito à vontade com o acordo", diz.
(CLÓVIS ROSSI)


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