São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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Governo dos EUA sabia de tortura no Brasil

Embaixador detalhou violações dos direitos humanos, mas sua prioridade eram os ganhos na venda de equipamento militar

"Negar assistência não faria com que o Brasil mudasse de idéia ou abandonasse seus esforços de segurança", dizia na época John Crimmins

RUBENS VALENTE
DA REPORTAGEM LOCAL

Documentos secretos do serviço diplomático americano no Brasil do biênio 1973-1974, liberados ao público após 32 anos, revelam que a administração do presidente Richard Nixon (1969-1974) foi informada em detalhes sobre as torturas e os abusos contra direitos humanos na ditadura, mas não tornou os fatos públicos.
A pressão americana contrária aos abusos só passou a ocorrer na administração de Jimmy Carter (1977-1981). Entre 1974 e a posse de Carter, foram mortos ou considerados desaparecidos pelo menos 89 militantes da esquerda no Brasil.
Num dos telegramas liberados, intitulado "Presos Políticos", o embaixador em Brasília, John Hugh Crimmins, hoje com 87 anos e vivendo em Maryland (EUA), recomendou que o governo Nixon não usasse contra o governo brasileiro o art. 32 da Lei de Assistência ao Estrangeiro, embora o próprio relatório reconhecesse que isso era legalmente possível.
Por essa regra, os EUA poderiam cortar créditos financeiros ao Brasil em retaliação a supostos abusos contra direitos humanos. Na época, os EUA financiavam programas de cooperação militar e de combate a narcóticos. "Negar assistência não faria [fará] com que o Brasil mudasse de idéia ou abandonasse seus esforços de segurança interna na esperança de reconquistar nossas boas graças; levaria [levará] um Brasil indignado a rejeitar de vez quaisquer esforços dos EUA para melhorar a situação", escreveu Crimmins em seu relatório de 1974.
Dois meses após a primeira recomendação, Crimmins bateu na mesma tecla. Num longo telegrama -de 15 páginas- intitulado "Avaliação do embaixador sobre assistência de segurança dos EUA", ele fala em manter todos os programas de ajuda ao Brasil com a estratégia específica de "influenciar a política brasileira".
"O programa norte-americano de assistência à segurança do Brasil é uma ferramenta essencial aos nossos esforços de influenciar a política brasileira. O programa vem sendo efetivo em começar a restabelecer os EUA como fonte primária de equipamento, treinamento e doutrina para as Forças Armadas do Brasil. Interessa-nos muito, porém, consolidar e expandir nossos ganhos recentes na provisão de equipamento militar ao Brasil", afirma.
Os telegramas mostram que de fato o assunto "direitos humanos" tinha ínfimo espaço nas relações diplomáticas entre Brasil-EUA. Num relatório de seis páginas que narrou um almoço ocorrido em 28 de setembro de 74 entre o então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, e o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Antônio Francisco Azeredo da Silveira (1917-1990), o tema mereceu apenas um parágrafo, e assim mesmo na forma de uma crítica do governo brasileiro: "Direitos humanos. O ministro do Exterior advertiu que os Estados Unidos podem estar "desmoralizando" os direitos humanos ao torná-los uma questão política".

A "costura"
Os telegramas demonstram que os americanos tinham fontes no aparelho da repressão que podiam até mesmo oferecer narrativas dramáticas sobre assassinatos a sangue-frio.
"Outra fonte, informante profissional e interrogador que trabalha para o centro de inteligência militar em Osasco (subúrbio industrial de São Paulo), nos contou em 24 de abril sobre suas atividades "contra-subversivas". (...) Ele também fez um relato em primeira mão sobre a morte de um suspeito de subversão, o que ele designou como "costurar" o suspeito, isto é, disparar uma arma automática contra ele formando uma trilha de balas da cabeça aos pés. (Maiores detalhes em memorando de 26 de abril sobre essa conversação.) Ao longo do ano passado, diversas autoridades de segurança confirmaram que suspeitos de terrorismo são mortos como procedimento padrão. Estimamos que até 12 tenham sido mortos na região de São Paulo, no último ano", diz o telegrama de maio de 73, um ano antes das recomendações do embaixador Crimmins.
O nome desse assassino, se em algum lugar foi anotado, não consta dos papéis liberados. O autor do telegrama foi o cônsul americano em São Paulo Frederic Chapin, morto por câncer aos 59 anos, em 1989.
Chapin também relatou uma onda de violência desencadeada pela ditadura contra integrantes do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), fundado em 1969 por um grupo de professores, entre os quais o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
O relatório tem como foco a prisão do economista Paul Singer, pai do atual porta-voz da Presidência da República, André Singer.
"Outro membro do Cebrap (...), Vinícius Caldeira [Brant, sociólogo, morreu em 1999], foi detido em 19 de setembro, pouco depois de Singer, e severamente torturado por choques elétricos, naquela noite. Singer disse ter ouvido gritos, naquela noite, e que depois foi informado de que se tratava de Caldeira", escreveu Chapin.
O autor da maioria dos telegramas foi o então embaixador, Crimmins. Localizado por telefone pela Folha, disse que não gostaria de se manifestar sobre seu trabalho como embaixador no Brasil (1973-1978).
"Não li os documentos que acabaram de ser liberados. Então não posso comentá-los em detalhes, especificamente, depois de 30 anos", disse Crimmins. Indagado se gostaria de receber cópias, o embaixador disse que não, e que no momento estava muito ocupado e precisava desligar o telefone.
Procurada, a Embaixada norte-americana em Brasília não havia se manifestado até a noite da última sexta-feira.

Leia mais telegramas do período 1973-1974, traduzidos pela Folha, em http://www.folha.com.br/070122


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