São Paulo, quinta-feira, 14 de maio de 2009

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JANIO DE FREITAS

O vício


O vício da tapeação não permite que motivos e explicações se exponham com clareza à população

DURANTE o intenso noticiário de duas semanas sobre mudanças na caderneta de poupança, Lula, ministros, petistas do Congresso e muitos jornalistas abusaram da palavra transparência. É uma palavra com razoável clareza em sua acepção mais recente, aplicada à coisa pública. Mas está sendo entortada, para cobrir o buraco onde deveriam estar palavras como veracidade, verdadeiro, real, ou equivalentes precisos. O vício da tapeação opera o transplante verbal.
Guido Mantega e Henrique Meirelles, da Fazenda e do Banco Central, praticaram ontem a transparência à moda da casa com primor ilustrativo. Encarregados, em nome do governo transparente de Lula, de explicitar em entrevista coletiva as decisões a respeito da caderneta, não fizeram restrição alguma às expressões "mudança na caderneta", "mudança na poupança", "nova regra". Muito bem, afinal divulgavam cobrança de impostos, dos quais a caderneta estava isenta por sua própria natureza; limite de isenção; e, por menos que citassem vários dos principais, a relação dos beneficiários maiores da mudança de regra, entre os quais os grandes bancos não citados nem por uma só vez.
Mas a aceitação do conceito de mudança e o que eles próprios comunicavam não foram bastantes para fazer Guido Mantega e Henrique Meirelles pouparem-se de aplicar sua ênfase no que os desmentia.
Mantega, por exemplo, em seguida a detalhar parte das mudanças: "Portanto, não estamos mexendo na poupança, estamos fazendo uma adaptação". Ainda que se ficasse só nessa frase e fosse mesmo só uma adaptação, como adaptar sem mexer? Lá para tantas, e ainda bem, Mantega decidiu ser definitivo: "Não mexemos na poupança, que é a aplicação mais sagrada". Dizer isso é até sacrilégio na religião da Bolsa.
Meirelles, depois de referência à isenção de imposto só para "o pequeno investidor": "Por que isso? Por que a caderneta de poupança é uma aplicação para o pequeno poupador". Não é verdade. Se fosse, na sua já distante criação haveria um limite fixado para as aplicações ou, em alguma altura desde lá, seria aplicado um truque como agora. Muito ao contrário, a caderneta queria o máximo, porque a sua finalidade foi formar uma expressiva massa de recursos para financiamento da casa própria. Razão pela qual ofereceu condições exclusivas de atração. Sempre justificada pela finalidade social, que nem os estouros no Sistema Financeiro da Habitação, por excesso de vigarice, alteraram.
O governo Fernando Henrique/ Pedro Malan meteu garfo e faca na poupança, tomando-lhe rendimentos que a deixavam em perda relativamente até a inflação. Uma reprodução sem espalhafato do confisco feito por Collor. O governo Lula não vai assaltar, como os antecessores. Vai impedir que a queda da inflação e maior queda dos juros permitam a recuperação de perdas por poupadores da caderneta. Perdas que não poderiam ocorrer, porque a peculiaridade atrativa da caderneta, para pequenos e grandes, era exatamente a garantia legal de que teriam sempre a reposição da inflação, além dos juros modestos mas sem imposto.
O vício da tapeação, uma espécie de boca torta do governo, não permite que motivos e explicações se exponham com clareza à população, jamais. Há sempre uma deformação enganadora, a incompletude deliberada, e subterfúgios a granel. Não por boca torta, não, mas por alma torta. Porque o vício da tapeação é também uma obra da consciência de estar aprontando alguma que precisa de tapeação.


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