São Paulo, quinta-feira, 14 de setembro de 2006

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ENTREVISTA / FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Reação à carta é sinal de que país está perdido

Ex-presidente volta a criticar o governo, diz que documento não foi entendido nem por líderes tucanos e rebate papel de "desagregador"

No dia 7 de setembro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) publicou no site do PSDB uma carta dirigida aos eleitores de seu partido. Nas sete páginas, sobrava um pouco para todos: do senador tucano Eduardo Azeredo, acusado de operar caixa dois na campanha de 1998, ao próprio PSDB, passando, obviamente, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde então, FHC se recolheu, enquanto se esguiava de balas disparadas pelo governo, pela oposição e por seu próprio partido. Foi chamado de "velho" (por Cláudio Lembo, governador de São Paulo) e acusado de "ação desagregadora" (por Aécio Neves, de Minas). A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, viu "desespero".

SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON

De passagem por Washington e a caminho de Austin, Texas, onde lançaria a segunda edição em inglês de sua biografia, "The Accidental President of Brazil" (o presidente acidental do Brasil), FHC falou com exclusividade à Folha e partiu para o contra-ataque. Leia os principais trechos:

 

FOLHA - O sr. vê as eleições como jogo jogado? Daí a carta?
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO -
Não, é o contrário, acredito que vamos para o segundo turno, faço um chamamento para que nós defendamos com força nossas posições.

FOLHA - Não vê Lula reeleito?
FHC -
Acho que nós vamos para o segundo turno. Mesmo com pesquisa ou sem pesquisa. Veja a questão do desarmamento: todo o mundo dizia que ia dar o "sim". Deu o "não". Existe um sentimento difuso contra o governo, e talvez por isso essa carta tenha provocado tanta reação. Ela dá um choque, diz: "Olhe aqui, é uma coisa grave o que está acontecendo no Brasil, ninguém se sente mais indignado com tanto horror".

FOLHA - O sr. previa a reação?
FHC -
Não, não, não. E não fiz para isso. Basicamente, é um chamamento ao PSDB e seus partidários no sentido de retomar sua linha programática.

FOLHA - O sr. acha que o partido abandonou o programa?
FHC -
Não, não digo isso. Estou dizendo que é necessário, de certa maneira, estar reavivando. Não tem nenhuma relação com campanha, o que falo sobre nosso candidato é só para defendê-lo. O que falo sobre o governo não sou eu quem fala, é o procurador-geral da República, são fatos conhecidos, que escandalizam todo mundo. É que como agora tem eleição, isso pode chamar a atenção para o fato de que estamos aí diante de uma situação anômala. Ninguém disse uma palavra sobre o conteúdo da carta. Nem os líderes políticos do meu partido. Ninguém disse uma palavra sobre a proposta política da carta. A carta é política, não no sentido de politiquinha eleitoral, ela é doutrinária. Isso mostra como nós estamos perdidos no Brasil, discutindo o secundário e esquecendo o principal.

FOLHA - E a reação?
FHC -
A reação, inclusive de alguns companheiros meus, mostra que nós precisamos fazer mais política no Brasil.

FOLHA - O sr. poderia comentar especificamente? O governador Aécio Neves (PSDB-MG) disse que a carta é "desagregadora"; o vice-presidente, José Alencar, pediu que o senhor apresentasse as provas...
FHC -
Se é que o governador Aécio realmente disse isso, não deve ter lido a carta. Porque mesmo quando eu me referi ao senador Azeredo, foi chamando-o de uma pessoa decente.

FOLHA - O senador Eduardo Azeredo [acusado de praticar caixa dois na campanha de 1998] é um dos únicos do PSDB que o sr. cita pelo nome.
FHC -
Mas por quê? Porque eu estou criticando tão duramente o comportamento do PT e do governo que, ou eu digo que nós deveríamos também ter um comportamento mais estrito, ou não tenho força moral para criticar. E faço a distinção entre caixa dois e mensalão. Não entendo por que chamar a isso de desagregação, se estou pedindo que se juntem todos ao redor de um conjunto de valores e defendam com força as idéias. Já o governo não tem o que dizer. Quando não tem o que dizer, não tem como se defender, porque não é a mim, é ao procurador-geral da República. É nos tribunais que está a questão, não é mais uma questão política, mas de polícia. Deve ser tratado como crime. Aí, eles só têm de desviar, como disse a Dilma, que eu tenho reminiscências do militarismo. Ela não leu a carta. O povo está vendo o quê? Dois anos de escândalos. Agora, você falar disso é ter resquício de militarismo. Está errado. Já o vice-presidente não sei o que disse e, também, o que ele diz não chega a alterar o curso da história. [sorri]

FOLHA - Mas por que a carta agora, a dias das eleições?
FHC -
Em política tem de ter coragem. Mesmo que as coisas doam a quem pronuncia ou a seus amigos, têm de ser ditas, em certos momentos. Muita gente fica dizendo: qual é a diferença? Minha carta diz: somos diferentes. Não porque somos melhores ou porque somos "éticos", como o PT fazia, mas objetivamente: queremos isso, isso e isso. Em política, você pode ganhar ou perder, mas não pode perder a cara. Minha intenção era dizer: a cara do PSDB é essa. E, diante de um país que passa pela fase em que o PT se dissolveu no processo de governar, perdeu sua face, é o momento de reafirmar nossa cara. Como é que vai chamar de desagregador isso? Só não tendo lido.

FOLHA - Mas e o peso extra que ela tem, por ser de um ex-presidente a dias das eleições?
FHC -
Mas tudo o que eu falo ganha esse peso. Sou ex-presidente! Não respondo a essas provocações baratas, como a que fez o Aloizio [Mercadante], ao dizer que estou enciumado porque não estou na campanha. Não estou porque não quero, não acho apropriado, não estou agindo eleitoreiramente, estou agindo responsavelmente como ex-presidente.

FOLHA - O sr. faz distinção entre mensalão e caixa dois. Ambos são crimes. Porque um seria menos condenável do que o outro?
FHC -
Todos são condenáveis. O mensalão, entretanto, é corrupção das instituições, é crime de responsabilidade. É o crime mais grave, politicamente falando, da República: corrupção da instituição.

FOLHA - Mas isso não tira o crime da prática do caixa dois.
FHC -
Na carta, digo que nós aqui também temos de ter cuidado, porque, por causa de uma pessoa decente que é o Eduardo [Azeredo], nós paralisamos, deixamos confundir coisas. Mensalão é uma coisa gravíssima, porque envolve o Congresso. Paga dinheiro, e não é só isso: quem fez? Os líderes do partido que estavam no governo? É o que diz o procurador da República, nomeado pelo presidente, não vi a papelada. Qual é a responsabilidade do presidente? Dizer que não viu nada. Tinha de ter visto. Tinha de demitir depois que soube. Não demitiu. Pediram exoneração.

FOLHA - Outra leitura que se faz da carta é que o sr. assume sua preferência por José Serra.
FHC -
Isso é de uma ingenuidade cruel de quem formula e, de novo, é pequenez da política brasileira. Como é que eu vou ter candidato para uma eleição que vai se dar daqui a quatro anos? Só se eu fosse um irrealista, o que eu não sou.

FOLHA - Mas o governador Aécio Neves não representa a nova geração do PSDB? E, ao chamar sua carta de desagregadora, ele não está sendo alienado do partido pelo senhor? O sr. não está rompendo com ele?
FHC -
Mas por que romper? Não estou rompendo, acho que ele é uma boa possibilidade.

FOLHA - O sr. não o vê em outro partido, como se cogita hoje?
FHC -
Nunca, sou amigo dele. Não creio que ele vá para outro partido, isso é fazer o jogo da destruição do PSDB, começar a perguntar agora se vai para outro partido. Isso é gente contra o PSDB, eu sou a favor.

FOLHA - Na hipótese da reeleição do presidente Lula, o que acontece ao PSDB?
FHC -
Depende disso, de dar uma cara. Também o Geraldo ganhando, você tem de ter cara. Veja o que aconteceu com o PT. O partido fez um programa, o Lula fez outro. É um partido que não vai governar.

FOLHA - Qual o perigo de partido e presidente terem programas diferentes?
FHC -
Não sei se ele [Lula] tem programa. Acho que é mais grave. O país tem sempre condições de se manter, é muito diversificado, forte, não tenho uma visão pessimista. Mas qual o rumo que foi dado nesse último governo? Mudou o quê? Eu provoquei, até: nem a reforma agrária! O modelo foi o nosso. Isso está bom? Não, isso está ruim, porque tem muita coisa que tem de mudar, tem de atualizar. O que se chama de esquerda hoje? É o antiamericanismo e a antiglobalização e o Estado. Isso antigamente se chamava de populismo. Os países que têm uma esquerda mais consistente, que são o Uruguai e o Chile, não são assim. Ao contrário, o Uruguai quer fazer acordo direto com os EUA.

FOLHA - E o sr. vê o Brasil nesse momento mais para Chile e Uruguai ou Venezuela e Bolívia?
FHC -
É ambivalente. Nosso problema é que nunca tomamos posição. Temos de ter integrações mais amplas no comércio mundial. Nós enfiamos a cabeça na areia com a Alca.
Você vê uma América Latina hoje que pela primeira vez na história está formando um alinhamento no Pacífico de um lado e no Atlântico do outro. Em que o Chile passa a ter um papel influente nos antigos países andinos, e a Venezuela, nos países do Mercosul. E nós? Você não governa, você vai se ajeitando. O presidente Lula vai para cá e vai para lá. Vai a Mar del Plata, faz aquela confusão com o Bush e em seguida chama o Bush e faz uma homenagem a ele: qual é a do Brasil?


Leia a íntegra da carta de FHC www.folha.com.br/062412

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