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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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Carta a José Genoino

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Meu caro Genoino,
A afirmação que você defende em seu artigo "Liberdade de opinião e disciplina partidária", publicado em 12/12/03 na Folha, é da mais alta relevância: "Se a vida dos partidos deve ser orientada por um bom e democrático estatuto normativo, então um partido, principalmente quando adota decisões legítimas em suas instâncias dirigentes, não pode se submeter ao arbítrio da vontade individual de poucos. Isso significaria derrogar o próprio conceito de partido político". Se a própria definição de partido diz que se trata de uma associação de cidadãos que se ligam em vista dos interesses da pólis, está desde logo rejeitada a tese de que venha a ser o lugar do arbítrio. Dada a definição, segue-se a inferência: os radicais do PT têm participado ativamente das discussões sobre as reformas constitucionais; tendo sido derrotados em eleições democraticamente conduzidas e, não cumprindo a vontade coletiva, devem ser simplesmente excluídos da associação.
Raciocínio perfeito se não fosse apenas formal. Um partido é uma associação em vista de um projeto político, cabendo-lhe exprimir determinados interesses dos cidadãos e modificar aspectos importantes de suas formas de vida, de modo tanto mais profundo quanto vem a ser mais radical. Ora, o PT, reconhecendo os novos desafios do capitalismo contemporâneo e as novas (e antigas) necessidades da sociedade brasileira, mudou substancialmente seu projeto. Convém até mesmo dizer que está reformando sua constituição e refazendo tacitamente o contrato originário que lhe deu origem. Não assiste apenas a um choque de opiniões e de estratégias sobre as novas posições, mas coloca em discussão o porquê de as pessoas se associarem. Desse modo, manter-se fiel às teses antigas não significa romper com a maioria, mas simplesmente continuar associando-se a ela segundo o contrato original.
Nos partidos, as minorias se submetem à maioria desde que não tenham sido postos em dúvida certos pontos comuns a todos os militantes. Convenhamos: ideologicamente o PT é hoje um espelho partido, incapaz de conciliar diversos modos de agir politicamente. Mas, como partido, a despeito de abrigar diferenças radicais, não pode abandonar seu projeto de transformar a sociedade e, por conseguinte, de se transformar a si mesmo. Nesse processo, o critério para julgar a indisciplina partidária torna-se vago, pois não se sabe precisamente quem está cometendo a infração, o grupo dominante ou os dissidentes. Em toda constituição democrática existem cláusulas pétreas que levam o Poder Judiciário a anular leis que foram votadas democraticamente pelo Congresso Nacional. Quando um partido refaz seu projeto original, é ele mesmo que passa a desenhar os limites, aglutinando seus próprios associados. Nessas condições, será democrático impor a todos decisões tomadas pela maioria quando cada associado está refazendo seu próprio perfil?
Impondo-lhes a pena máxima em vez de outras punições, a direção do partido está dizendo a eles e à sociedade que os chamados infratores deixam de ser companheiros, que perderam o elo básico que os unia anteriormente. Esse corte não é questão de democracia, mas de convencimento. Numa associação política, a disciplina também é questão política a ser exercida conforme valores e circunstâncias. Cabe aos rebeldes julgar até que ponto podem continuar marginais, sofrendo as punições cabíveis, e avaliar o momento de ajustar-se ao novo projeto ou abandonar o PT em nome da fidelidade às suas convicções e aos seus eleitores. Nessas condições, a mera expulsão corre o risco de tolher a diversidade, impor um padrão vindo de cima e vir a ser mais um sintoma de burocratização institucional.
Como você sabe, não tenho simpatia por esse grupo dito radical e não os defendo porque assume posições tradicionais que eram do partido antes do segundo turno das eleições presidenciais; um partido que não muda se esclerosa. A questão é outra e diz respeito às regras da democracia interna de uma associação política. No caso de mudança constitucional, temos outro exemplo de situação em que certos juízos devem ser suspensos. Também não sou petista nem estou ligado formalmente a qualquer partido, interessa-me o desenvolvimento do sistema político brasileiro como um todo, e me aproximo deste ou daquele partido da esquerda ou do centro que me parece trazer no momento a luz da renovação e justiça social. A vitória do PT nas últimas eleições foi fruto de uma enorme aspiração por mudanças. Até agora, não me parece que o governo Lula tenha correspondido a essa esperança.
Haverá também o PT de afogar o novo em nome de um princípio formal? Ou pretenderá ele, depois de ter chegado ao poder, não ser mais do que o braço partidário desse poder?


José Arthur Giannotti, 73, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)


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