São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009

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JANIO DE FREITAS

Os bens da liberdade


Se o Supremo entende que a liberdade não poderia ser cassada, os bens também não poderiam ser tomados

A ESTREIA da libertação, pela maioria do Supremo Tribunal Federal, até que os condenados já presos percam o último recurso possível na última das instâncias (o próprio STF), esteve à altura da novidade por obra e graça dos cinco beneficiados. Ministros se desentenderam mais do que durante a criação da novidade no dia 5, porque na estreia de quinta-feira dois deles entraram em desacordo até consigo mesmos. Mas, entre os processos em questão, nenhum crime chinfrim, que não estivesse à altura da ocasião especial: estupro, roubo qualificado, estelionatos como especialidade pessoal e, com diferentes autorias, dois casos de apropriação de bens públicos e de rendas idem.
Tudo, na sessão, muito representativo do Brasil atual. Mas a decisão do Supremo continua parecendo um passo incompleto, em que um pé ficou no ar. A maneira de completá-lo, ou não, promete ser o mais interessante -depois da novidade em si, é claro.
A própria novidade, por sinal, ficou mais saborosa. No dia 5, aos sete votos vencedores opuseram-se, com ênfase e pareceu mesmo que com algum pasmo, os ministros Ellen Gracie, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia e Carlos Alberto Direito. Já na concessão da liberdade nos cinco casos, os dois últimos citados entenderam não mudar de opinião dando o seu voto contra ela, para servir à "coesão do tribunal". Pode-se deduzir que a coesão sem coerência.
E um pouco além: sabia-se, até então, que o Supremo e os outros tribunais têm composição múltipla para proporcionar ponderações variadas, das quais aflore a decisão por maioria. E não para demonstrar coesão do coletivo, inclusive por serem os julgamentos atos sempre infiltrados de interpretação pessoal.
Se sou desculpável pela memória infeliz, a coesão com dois votos contrários lembra a frase mais repetida pelos comandos militares, enquanto o pau comia nas casernas entre as suas diferentes linhas golpistas, dos anos 20 até há pouco: "Os militares estão unidos e coesos". Não estiveram, jamais, nem por um dia. Os ministros do Supremo, também não. Mas, por sorte nossa, e sobretudo deles, nossos impostos não lhes compram armas. (A ressalva "até há pouco" não é uma certeza, é um gesto de relações públicas.)
Enfim, o meio passo. A propósito da liberdade concedida aos cinco, título do "Globo" informou que a "Decisão pode ajudar Nicolau e Nardoni", o juiz implicado no desvio de R$ 170 milhões na obra do Fórum da Justiça Trabalhista de São Paulo e o casal acusado de jogar pela janela alta a menina Isabela.
O nome de Nicolau dos Santos Neto, há tempos em prisão domiciliar, suscita a questão de que inúmeros acusados perdem mais do que liberdade: a polícia apreende e o Judiciário toma-lhes os bens. Onde estão o Ferrari e o Porsche de Nicolau, o que foi feito do seu apartamento-latifúndio em Miami, e das riquezas acumuladas em São Paulo? E os carros e os aviões e as mansões de incontáveis nicolaus, que a Polícia Federal em parte põe no seu uso, a Receita põe em leilão e alguma repartição dispõe das contas, ações e do dinheiro?
A liberdade e os bens foram tomados em razão dos mesmos atos. A liberdade por serem atos presumidamente ilegais, os bens porque obtidos como fruto dos atos. Se, porém, o Supremo entende que a liberdade não poderia ser cassada, pelo menos até que o último dos recursos possíveis fracassasse na última das instâncias, pela mesma presunção extremada de inocência -apesar de condenação na primeira instância e no recurso à segunda- os bens não poderiam ser tomados. A presunção de inocência mesmo para condenações já confirmadas, como decidiu o Supremo, implica a admissão de que os bens foram obtidos legalmente.
Isso, a que o Supremo não chegou e precisará chegar, é que será interessante ver os seus ministros descascarem, quando comecem a lhes chegar pedidos de liberdade da multidão de nicolaus despojados dos seus ou nossos bens.


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