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Vida de Reale oscilou entre o direito e a política
TAÍS GASPARIAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nascido em 1910, no interior do
Estado de São Paulo, Miguel Reale
teve uma vida que oscilou entre o
mundo jurídico e o político. Com
trânsito fluente nessas duas áreas,
Miguel Reale contribuiu para a
elaboração dos mais importantes
documentos jurídicos brasileiros
da segunda metade do século 20.
Esteve presente na elaboração da
Constituição Federal de 1946; colaborou para a redação da emenda constitucional nš 1, em 1969; foi
o responsável pela sistematização
do anteprojeto do Código Civil;
deu importantes subsídios quando da elaboração da Constituição
Federal vigente e foi presidente da
Comissão Paulista de Estudos
Constitucionais, criada na Secretaria de Estado da Justiça, que tinha por objetivo elaborar sugestões para a revisão constitucional.
No que se refere à sua atuação
política, Miguel Reale teve um
passado de proximidade com o
poder. Em 1935, estava na linha de
frente do movimento anticomunista, tendo sido um dos líderes
da Ação Integralista Brasileira,
que possuía forte inspiração fascista. Foi grande colaborador de
Adhemar de Barros, candidato vitorioso ao governo do Estado de
São Paulo, em 1947, pelo PSP,
ocupando o cargo de secretário da
Justiça. Foi um dos fundadores do
Instituto Brasileiro de Filosofia e,
em 1950, foi nomeado reitor da
Universidade de São Paulo.
Em 1962, apesar da distância
que então o separava de Adhemar
-em razão de ter sido preterido
na indicação de seu sucessor-,
novamente eleito ao governo de
São Paulo, Miguel Reale retorna à
Secretaria da Justiça. Dali, participou das articulações do Movimento de 1964, acreditando, verdadeiramente, serem as Forças
Armadas, àquela época, as intérpretes fiéis da opinião pública.
Ultrapassados 13 anos da revolução, Miguel Reale, em depoimento à Folha, reafirmou sua
crença no movimento: "Felizmente a estrutura janguista esboroou-se tal como se constituiu,
melancolicamente, sem grandeza,
e a Revolução, resolvida em poucas horas, quedou perplexa diante
de seu próprio destino, até que
fossem emanados atos definidores de uma diretriz até hoje ainda
não claramente formulada, mas
que, desde as suas origens, só pode ter por objetivo a realização de
uma democracia social com liberdade e segurança". Mais cético,
no mesmo ano de 1977, em análise das reformas então apregoadas
pelo presidente Geisel, Reale afirmou que "o processo revolucionário possui raízes mais profundas do que aquelas que condicionaram as primeiras atitudes aparentes, fazendo, com o tempo,
brotar e desenvolver resultados
que levam de roldão as intenções
ou os cálculos originários".
Mais uma vez assumiu a reitoria
da USP entre 1969 e 1973, implantando a reforma administrativa e
universitária. Em 1970, foi cogitado para suceder a Abreu Sodré no
governo de São Paulo e, em 1975,
em razão de problemas familiares, recusou convite de Leitão de
Abreu para o cargo de ministro
do Supremo Tribunal Federal.
Mais tarde, por volta de 1978,
defendeu a institucionalização do
regime de 1964, inclusive tendo se
manifestado a favor da anistia e
da adoção de medidas visando à
"abertura política". Reconheceu,
então, que a consolidação democrática somente se daria com a revogação do AI-5. Sempre cauteloso, não advogava a tese da revogação sumária, mas sim a substituição desse mecanismo por outros
que pudessem "proteger a sociedade da grave ameaça de atos de
violência e subversão". Assentiu
ser o AI-5 sempre indesejável,
proclamando, em contrapartida,
ser esse recurso sempre utilizado
cada vez que o "Legislativo invade
a área de segurança que o governo
revolucionário reservou para si".
Em 1984, elogiou a campanha pelas eleições diretas, pelo seu caráter de "entusiasmo popular".
Como filósofo e jurista, destacou-se, sem qualquer sombra de
dúvida, como o maior paradigma
que a filosofia do direito já teve no
Brasil. Para Tristão de Athayde, a
carreira filosófica de Miguel Reale
teria sido uma tentativa crescente
para libertar-se do rótulo de "integralista", que o perseguiu durante décadas. Presente ou não
uma atitude deliberada nesse sentido, o fato é que, apesar de a atuação de Reale sempre ter tido um
caráter conservador, sua obra é
um dos pilares de qualquer análise progressista do direito.
Extremamente inovadora para
a época em que foi formulada, a
Teoria Tridimensional do Direito,
da qual Miguel Reale é considerado o fundador, é expressada pela
integração de três fatores -fato,
valor e norma- na experiência
jurídica. Miguel Reale foi o primeiro, de acordo com os maiores
centros de cultura jurídica mundiais, a conceber a experiência jurídica com essa conotação tríade,
o que veio a proporcionar a compreensão do direito como experiência concreta. Rejeitou a antiga
interpretação que considerava esses fatores de modo isolado, tendo com isso aberto nova fase nos
estudos filosóficos nessa área.
Cursou a Faculdade de Direito
do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, no início
dos anos 30, e em 1940, depois de
um concurso conturbadíssimo,
assumiu a cátedra de filosofia do
direito da USP, dela só se aposentando em 1980, aos 70 anos.
Dizem, sobre o seu concurso de
cátedra, que Miguel Reale foi
aprovado pela banca examinadora, mas o parecer desta teria sido
rejeitado pela congregação da faculdade. Reale teria, então, recorrido administrativamente da decisão ao interventor. Este, por sua
vez, consultou Getúlio Vargas,
que mandou que fosse lavrada a
nomeação de Reale. Contam, ainda, que em 1943, os alunos da Faculdade de Direito permaneceram meses em greve, recusando-se a aceitar Reale como professor.
Seus alunos guardam a lembrança de um professor didático,
porém rígido. Não fez sucessores
na faculdade, sendo que Tercio
Sampaio Ferraz Jr. e José Eduardo
Faria talvez sejam, atualmente, os
seus mais brilhantes discípulos.
Sua vasta obra na área jurídica
conta com mais de 30 livros, destacando-se, dentre eles, "Fundamentos do Direito" (1940), sua tese de cátedra; "Teoria do Direito e
do Estado" (1940), no qual já se
nota a concepção da Teoria Tridimensional; "Filosofia do Direito"
(1953), no qual sistematizou a metodologia da Teoria Tridimensional, sendo extrato dessa obra o livro "Teoria Tridimensional" (publicado em 1968), que ganhou repercussão internacional; e "O Direito Como Experiência" (1968).
Em 1962, escreveu um trabalho
sobre "O Cansaço das Ideologias", no qual, parodiando Machado de Assis, proclamou que
por onde quer que se andasse,
"havia um desencanto por toda e
qualquer idéia encaixotada".
Taís Gasparian é advogada, sócia do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell
de Figueiredo, Gasparian e Tourinho, e
mestre pelo Departamento de Filosofia e
Teoria Geral do Direito da Faculdade de
Direito da USP.
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