São Paulo, terça-feira, 15 de maio de 2007

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JANIO DE FREITAS

Desintegração

O Estado laico foi empenhado em um enlaçamento religioso cujo despropósito só pode ter deixado o papa estarrecido

NA HORA MESMA em que o papa chegava a Roma, Lula nos presenteava a primeira revelação, em seu programa "Café com o presidente", de uma miudeza da sua audiência privada com Bento 16, que no Brasil ficou visto mais em sua versão cardeal Ratzinger. A rigor, é uma visão estreita e injusta designar como simples revelação o que é mais uma obra-prima da criatividade presidencial. Meia dúzia de horas mais tarde, Lula deu um passo adiante e, em vez de apenas narrativa, já expôs a primeira conseqüência governamental e social da conversa.
O "Café" é um programa que não deixa o ouvinte indiferente. Ou faz rir de um modo muito saudável para abrir a segunda-feira, ou provoca do desalento à irritação, sem que tais efeitos sejam desejados por seu propósito propagandístico. O presente incluído no "Café" de ontem misturou, com uma pequena frase, todos aqueles possíveis efeitos. Lula, informa o próprio, nas considerações que apresentou ao papa sobre as realidades regionais incluiu, claro que como proposta presidencial do Brasil, a de fazer-se, a par ou acima das demais, também a "integração religiosa da América Latina".
Mesmo sem saber o que o papa disse a respeito, se é que teve condições de dizer alguma coisa, é fácil presumir o que pensou. O papa, afinal de contas, veio ao Brasil a título de presidir mais um ato orientador da secular integração da Igreja Católica por aqui: mais uma Conferência Geral Episcopal da América Latina e do Caribe, por ele aberta em Aparecida e que lá continua ainda por vários dias.
Feitas de público as pressões da Igreja Católica por medidas do governo, em proteção da sua doutrina e do seu patrimônio, aqui para fora Lula adotou a resposta lúcida e cortez de que, à margem de sua opinião pessoal, a Constituição reza que o Estado brasileiro é laico e aberto a todos os credos (resposta cuja sugestão está atribuída ora ao ministro Celso Amorim, ora à ministra Dilma Rousseff). A portas fechadas, porém, o Estado laico foi empenhado em um enlaçamento religioso cujo duplo despropósito -por sua evidência bajulatória e pelo primarismo da idéia- só pode ter deixado o papa estarrecido. Mesmo que, diante da exposição que Lula lhe fez sobre o obsessivo etanol, enquanto ele pensava em aborto e em perda de fiéis, o papa notasse estar diante de uma história pessoal já desintegrada.
A primeira conseqüência objetiva da conversa, uma outra modalidade de entrega do Estado laico, veio logo nas primeiras horas de ausência do papa: não há hipótese, disse Lula, de que o seu governo tome alguma providência relativa ao problema do aborto, ou seja, ao direito da mulher de tê-lo em condições legais e de segurança médica.
Lula reconheceu há pouco que os abortos clandestinos constituem, dadas as decorrências de sua criminosa precariedade, problema grave de saúde pública. Logo, como problema de saúde pública, é obrigação moral e legal do governante, em particular do presidente da República, agir para solucioná-lo ou reduzi-lo ao mínimo possível. O oposto dessa atitude é a omissão que, no mínimo, caracteriza prevaricação. Tanto mais que deliberada e anunciada.


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